15.2.07
14.2.07
Estar contente sempre foi coisa para o meu corpo, não para mim; estar triste foi sempre coisa do meu coração, não minha. Eu, eu nunca fui corpo nem coração, antes aquilo que a alma lhes vai fazendo. E em mim a alma só sabe ser.
Vem talvez daqui a minha essencial diferença: a alma hierarquiza o mundo. Por ela vejo o mundo - e a mim com ele - a partir dos cumes. Do ponto de vista do falcão.
Alguns não entendem que isto não quer dizer que julgue o mundo. Outros não entendem que isto não quer dizer que o não ame. E uns e outros, se bem os entendo (às vezes é tão difícil) censuram em mim (mesmo que me não conheçam) aquilo a que chamam distância.
Luz nas alturas, como uma chuva lenta.
À minha volta há cores e gritos e plásticos e palavras eléctricas. O vazio devora as coisas e os homens, são valentim do nada, carnaval de carnes sôfregas. Vivemos numa Atlântida do Fim, submersos no turbilhão a que chamamos Vida. Faz-me falta a alma do mundo, como a outros o Sol.
O "Público" passou a ser a cores, eu não: abandono, com alguma pena, uma companhia de muitos anos. E hoje li, em vez dele, os pensamentos de um imperador romano:
12.2.07
Era uma vez uma rapariga linda (treze anos dizem alguns), com olhos como o vento de Março e pele como rosas de anoitecer. Era uma vez uma rapariga, e era uma vez os olhos dela. Tão lindos.
Quando contávamos a sua história dizíamos que se chamava Luzia; noutras terras diziam Lucy, ou Lucie, ou Lucia: e assim sempre lhe chamámos Luz, que era o que todos víamos nos olhos dela. Contavam que tinha nascido na Sicília, mas nós achávamos que foi em Saragoça... Não importa, pois não? Importa só que se chamava Luzia: menina dos meus olhos, que olhava o mundo como se a luz não estivesse nele.
Um dia houve um homem que se perdeu por ela, que quis os olhos de Luzia como se fossem jóia de usar. Casa comigo. Quero nas mãos o vento de Março, quero na pele as rosas de anoitecer. Olha-me com os teus olhos tão lindos: sou um homem que os outros homens temem, brilha em mim a luz do poder, brilha tanto a luz do desejo.
Não, disse a Luzia tão baixinho, e o homem soube de Março a gelar. Não. Nos teus olhos mora o poder, e nos teus olhos grita o desejo. E os meus olhos não são do mundo, não sabem ser jóia de usar. Vou-te contar um segredo. O meu Deus precisa dos meus olhos, eu que sou a menina dos olhos dele. Ele que é a luz toda dos meus.
És cristã, disse o homem. Que pena. Porque eu sirvo os deuses cegos, que são os poderes na terra e que trazem a sua própria luz. Não preciso de te contar um segredo, porque a força é uma história que todos sabem. Esmago-te como se esmagam as rosas, Luzia. Quebro-te como se quebram as jóias de usar.
O meu Deus fez-me vento de Março, disse a Luzia baixinho. E a força dele é uma história que eu sei. Uma vez houve uma cruz feita de rosa esmagada. Feita de rosa a florir.
Hei-de ter os teus olhos, gritou o homem.
Sim, disse a Luzia. Mas não o meu olhar.
E Luzia levou as mãos aos olhos, e foi como se o vento de Março trouxesse consigo o Inverno do primeiro dia. Nas mãos de Luzia a rosa a esmagar, menina do Deus que a olhava: Toma.
Dizem que aconteceram outras coisas. Dizem uns que o homem gritou, na taça os olhos abertos como aberto estava o abismo no seu coração fechado. Dizem que a quis entregar a um bordel, mas que os soldados do rei não tiveram forças para a mover, ela que era só o peso das rosas. Dizem que lhe rasgaram a garganta com uma espada, e que a ouviram falar depois, porque as palavras estavam no coração dela. Dizem que Deus lhe deu os Seus olhos, e que ainda hoje ela O vê. Dizem que todos podemos sentir o vento de Março.
[pintura: Santa Luzia, de Zaganelli. Cerca de 1520. Hoje no Metropolitan de New York]
9.2.07
O Céu sagrado sente desejo de penetrar na Terra,
de gozar esse hímen.
A chuva desce, como o beijo do Esposo celeste.
A Rainha do Mundo como Senhora Negra: Terra renovada, que se faz noite para receber a luz: Fiat mihi voluntas tua.
Sim, só a beleza salvará o Mundo.
[os versos, pagãos, são um dos fragmentos que sobreviveram de As Danaides, de Ésquilo, cerca de 500 a.C.; a pintura é uma Anunciação a Maria, de Gerard David, cerca de 1505]