O Bobo. O Joker. O Arlequim. O Espantalho. O Pierrot. O Pinóquio.
Quando era criança tinha medo de muitas coisas, medo de bruxas e de demónios, de fantasmas e de mortos, da noite e do mar. Quando era muito pequeno fechava à chave a porta do quarto à noite porque achava que o Leão assim não ia conseguir entrar. Passava a correr as páginas do meu Gato das Botas com medo de encontrar o desenho do Gigante, o desenho do Gato a comer o Gigante transformado em Rato.
Mas agora à distância como esses medos eram doces comparados com o Bobo ou o Joker ou Arlequim. O medo do Leão fazia-me só fechar os olhos, e com os olhos fechados o Leão tinha-se ido embora. Mas dentro de mim a Cara Branca continuava a sorrir quando me lembrava dela.
Não sei porquê esse medo, não sei porque é que o Pinóquio me metia um medo igual. Cresci. Já vi mortos e já vi fantasmas, já tive medo da noite no mar. Descobri que medo é principalmente o medo de nós mesmos. Mas ainda não gosto de olhar a Máscara. Troco o Espantalho por todas as bruxas do mundo, todos os dragões. Mas a Máscara, só a posso comparar com o horror frio das aranhas.
Talvez seja o riso, sabes? Talvez seja a loucura. Num mundo normal há leões e lobos e cavalos e casas, talvez haja mesmo os fantasmas que já vi e os que me aguardam na próxima rua, na próxima noite tão grande. E há loucos virados para dentro, que ficam sentados e calam-se a olhar e não dizem nada porque neles o Abismo transbordou como uma taça de águas mortas. Mas não há, não pode haver, esta loucura revirada, esta loucura serena e surda, cega e triunfante. Não pode haver o riso das trevas.
Talvez seja a inversão da ordem das coisas, porque no mundo que eu sou as coisas têm a sua ordem mesmo que sejam coisas más. Tudo vai parar à Grande Mãe, sabes, mas demorava muito tempo a explicar. Tudo. Talvez eu não tenha crescido ou nunca tenha sido uma criança pequena. Talvez o Joker seja o espelho de não sei que mundo terrível, o Pinóquio o espelho de não sei que tremendo deus. E eu fui sempre o Espelho dos Vampiros, que reflecte sem reflectir.
Ah, e também não gosto de palhaços, deve ser a mesma razão, a mesma rasa razão.
A minha Mãe levava-me ao Circo.
[a imagem é de Alfredo Palmero]
11 Comments:
Não vejas o link anterior: é um virus.
Há o riso das trevas... mas não serve de nada.
Abraço!
P. S. Não abras essas merdas, porque são vírus.
Já cá vim várias vezes e nunca consegui dizer nada...preciso de tempo para me habituar, não gosto de dizer disparates:)
Mas gosto da tua escrita, sem dúvida.
"Descobri que medo é principalmente o medo de nós mesmos."
Também acho que sim.
Um beijo.
A Morte está, alhures, no meio sem meio de todos; a vida é o circo sem espelhos, com os reflexos invertidos, a não precisar de películas polidas para o jorro da luz.
Abraço.
Andorinha, diz o que te apetecer. É simples :)
Sim, Klatuu, há o riso. Eu é que me não habituo a ele.
E não é a morte que incomoda; mas isso já sabes.
Abraço
O texto integral de Pinóquio, assim como as ilustrações da edição original, são apavorantes para qualquer criança. Havia ilustrações em bico de pena, mescladas com imagens coloridas hiper-realísticas.
As expressões de Pinóquio eram a de um desajustado, verdadeiro delinqüente juvenil.
Ao longo dos anos, os editores iniciaram um processo de "suavização" do personagem, condensando os textos e, o Walt Disney, finalmente, na década de 40, o transformou num elemento tão bonzinho quanto o Mickey.
Uma das coisas que mais lamento foi a perda de uma edição com o texto e as gravuras originais do livro, que pertencera ao meu pai quando criança.
Um abraço!
Ah, Goldmundo, depois de algum tempo de ausência, volto à net e sorrio ao ler a tua escrita... Felizmente, há coisas boas que nunca mudam ;) bjo
Finalmente alguém que partilha comigo o horror aos palhaços e desses seres cujo riso encoa por todo o lado, escondidos atrás das máscaras trazem horror maior...
tenho medo de muitas coisas, mas a loucura não me assusta. acho-a até um abismo bastante atraente. e o riso de um louco contém o universo inteiro. aprendi isso na rua das portas de santo antão.
*
Muitas vezes é por estarmos presos à realidade que não encontramos a felicidade.
Pelo menos os loucos não são infelizes, porque não têm verdadeira consciência do que os rodeia.
P.S: O Joker e o Pierrot sempre me chamaram a atenção, como uma imagem de perfeição inigualável.
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