2.4.04

A Madrinha, pela primeira Páscoa

Devo ao improvável encontro de dois góticos e um imperador esta coisa que lês feita de mundos roubados (e aqui roubei um espelho, e roubei uma enciclopédia). Devo-o também a um chapéu e a um leopardo, a uma noite de andar vadio e a uma palavra que não existe. Eram coisas demais para não me deixar ir por aí fora, coisas demais para não chamar outras coisas. E de qualquer modo já é tarde. Madrinha, sim, e ainda bem.
Era uma vez um imperador chamado Bonaparte, que conquistara o Egipto para conquistar o coração dos franceses, e era uma vez uma menina que escrevia para rasgar a luz. Se esta história fosse minha o imperador tinha ficado quietinho porque o Egipto estava a dormir, mas estou só a contar como tudo aconteceu. E portanto era uma vez um imperador que fez muitas coisas, e era uma vez muitas coisas que a menina escreveu.
As coisas que o imperador fez não interessam muito, menos uma delas que foi inspirar um escritor que deu vida a um leopardo que deu vida a um homem. É uma história passada no Egipto no tempo em que esse imperador por lá andou. No princípio há um soldado aprisionado que foge e tenta atravessar o deserto, sem perceber que trazia o deserto atravessado em si há muito tempo. Depois esse homem adormece num sítio que estava no meio do deserto mas que parecia uma praia junto ao mar para que ele parecesse um náufrago, e ao acordar no silêncio da noite percebe que o silêncio dessa noite vive e tem a forma de um leopardo. E podia ter sido a última noite mas não foi, foi o princípio de uma noite que lhe foi entrando por dentro (ele que só sabia da noite de fora) ao mesmo tempo que o leopardo se ia tornando o seu mundo.
Eu não sabia se a menina tinha lido essa história, e na verdade não sabia sequer que havia uma menina para a ler, e por essas e outras coisas ser lida. Li essa história porque ela estava num livro na feira da ladra e porque não estava a olhar para os livros mas para um puto que fazia lembrar um elfo perdido. Vestia de preto e de prata e andava devagar, como se se tivesse esquecido e como se o meio-dia não fosse com ele. "Olha um gótico", pensei eu. E olhei para o livro que ele não chegou a comprar e trouxe a história para casa como quem traz um gatinho com fome.
Não sabia se a menina tinha lido essa história. Mas na noite em que a li eu, uma noite que em mim foi noite de andar vadio por fora e por dentro, entrei por acaso no mundo dos outros (normalmente não me interesso pelo mundo dos outros) e no mundo dos outros estavam as coisas que ela escreveu.
E vou deixar muito por contar para que não contes muito comigo. Devo ao encontro improvável de dois góticos e um imperador esta coisa que lês feita de mundos sentidos; mas nas coisas que ela escreveu há coisas mais improváveis, e há mundos com mais sentido. Lê a Gotika, para saberes como a noite conta.