22.10.04

Dandelion wine



Não procurem este nome, se quiserem ler em português o livro mais luminoso que alguma vez se escreveu. Não procurem a aguardente de dente-de-leão. Por razões estranhas, as duas traduções já feitas chamaram-lhe a "Cidade Fantástica" (bem, eu conto a verdadeira história, cidade fantástica foi o título da tradução francesa e o livro deve ter sido traduzido a partir dela a primeira vez... mistério é porque é que a Caminho manteve o nome enganador). Outro enigma é estar, ambas as vezes, incluído em colecções de ficção científica. É como se alguém tivesse pensado "Principezinho... planetas... já sei, vou editar este Saint-Exupéry junto do Star Trek...".

Dandelion wine (e daí vem o endereço que, como um talismã, uso no meu e-mail) é a história de um Verão numa cidade pequenina da América em 1928, visto pelos olhos muito abertos de um rapazito de doze anos. E percebemos como todas as coisas dependem sempre dos olhos que as queiram ver. Mas isso já sabíamos, não é, se não não tínhamos sequer começado a ler este livro tão grande. Não tínhamos visto coisa nenhuma.

Há uma cidadezinha americana sim, há as ruas e a Fábrica de Gelados e o cinema Elite e o ribeiro das trutas. Há o Avô sentado no alpendre, a Bisavó a fazer compotas para o Inverno, o Pai tão alto que sabe ainda todas as coisas que há para saber. Há a Sr.ª Bentley que nunca foi nova nem num milhão de milhões de anos, e que não pode ser a menina das tranças da fotografia amarelada, o Sr. Leo que quer construir a Máquina da Felicidade antes de perceber que a Máquina da Felicidade é que o constrói a ele todos os dias. Há o Coronel Freeleigh que morre aos cem anos tentando ouvir pelo telefone, uma última vez, as vozes claras da Cidade do México que para ele era a Cidade da Juventude. Há o Assassino Solitário e a incrível Máquina Verde e o eléctrico que faz a sua última viagem e a Bruxa do Clube das Senhoras da Madressilva. Há os vidros coloridos na janela da casa em frente, os pirilampos, correr descalço na relva, cheiros de alfazema e de baunilha e de limão e de hortelã, lençóis lavados de linho e rostos lavados de lágrimas. Há todas as cores de que o mundo é feito, todos os sabores, todos os gestos, ali á nossa frente como se o mundo todo fosse uma maçã verde ou um copo de limonada ou a gargalhada serena de uma senhora de idade.

A certa altura acontece uma coisa triste, muito triste. Há uma história que chega ao fim. E temos três rapazitos a andar devagar pelos caminhos de terra batida.

-Tom, conta-me agora a verdade.

-Mas qual verdade?

-Que foi que aconteceu aos fins felizes?

-Estão a dá-los nas matinées dos sábados.

-Sim, mas e na vida?

-Tudo o que sei é que me sinto bem ao ir para a cama à noite, Doug. É um fim feliz, uma vez ao dia. Na manhã seguinte acordo e pode ser que as coisas corram mal. [...]

-A gente não confessa que gosta de chorar. Ora nós choramos um bocado e logo tudo se compõe. Aí está o teu fim feliz. Ficas em condições de voltar cá para fora e andar outra vez por aí com os outros. E isso é o princípio de sabe-se lá o quê. De modo que agora o Sr. Forrester vai vai pensar em tudo muito bem e vai ver que não há outro remédio senão um bom choro para depois olhar à sua volta e perceber que é outra vez manhã mesmo que já sejam cinco da tarde.

Dandelion wine. A aguardente de dente-de-leão, que o Avô fabrica na Cave para que no Inverno todos possam beber bocadinhos luminosos do Verão guardado. Um rapazito que aprende a guardar o que mais importa. Um livro para ler às cinco da tarde de todas as manhãs do mundo.