21.10.04

Gosto do rio de manhã, disse ela a sorrir, principalmente quando há nevoeiro. Gosto das gaivotas, de ver Gaia a aparecer e desaparecer como se fosse uma ilha longe.

Sim, disse o rapazito, vejo isso quando atravesso a ponte às vezes. Mas deve ser bom ir a pé. Tens sorte em morar perto.

Um dia vens comigo se quiseres, disse ela, e continuou a comer o pão de mel.

Nos dias a seguir continuaram a falar, quase sem dar por ela, quase sem saber. O rapazito foi deixando de ir jogar bilhar quando não havia aulas de português (quase nunca havia aulas de português), ela foi deixando de fazer fosse lá o que fosse que fazia. Era bom esperá-la no corredor grande, olhar com muita atenção a mochila cinzenta, a t-shirt verde com um balão desenhado, os olhos que riam, tão verdes também. Era bom falar e ouvir e perceber como o mundo era feito de tantas coisas diferentes.

Gosto de bolas de berlim, dizia ela, Gosto de ir para casa quando chove devagarinho. Na Rua da Paz há sempre um morcego que tenta pousar no meu cabelo.

Em que dia fazes anos, perguntou ele de repente, e ficou espantado quando ela demorou a responder. Sou três meses mais velha que tu, disse ela devagar, tem mal? Mas ele não percebeu o que ela queria dizer, e disse ah, então é Dezembro. Novembro, disse ela baixinho. Já tenho dezassete anos.

Porque nos dias de Nevoeiro o Douro não é um rio como os outros. E sim, as gaivotas são de certeza as almas mortas dos marinheiros, e os marinheiros as almas pousadas das gaivotas, por isso gostam do mar. Acreditas em fantasmas? Uma vez a lâmpada da minha rua apagou-se quando eu passei, disse ela.

A minha casa, dizia ele, e ela ficava com os olhos tão abertos.

Nesse dia o nevoeiro não quis ir embora.

Dá-me uma madressilva, disse ela de repente. Dá-me uma madressilva para eu me lembrar de ti quando fico em casa, quando o meu pai não me deixa sair. Dou claro, disse ele, não sei como são as madressilvas, devem ser trepadeiras. São brancas disse ela, mas também não sei como são, nunca vi nenhuma. Li num livro que são brancas. São parecidas contigo, explicou ele e de repente calou-se. E não disse que eram bonitas.

No meio do rio passava uma sombra que devia ser um barco devagar. Um dia vou subir o rio, disse ela. Há coisas de pedra enormes, há coisas que nunca ninguém viu. Gostava de ter um sítio só para mim, com muitas árvores e musgo e onde o tempo não andasse para a frente. Onde as coisas se calassem para mim.

Andaram devagar, ao longo do país pequeno das margens, a ponte da Arrábida faz medo vista daqui, tão alta. Andaram devagar e as gaivotas aproximaram-se, como se os quisessem avisar de alguma coisa. Mas o rapazito não prestou atenção.

Olha, estamos sentados no terceiro banco a contar da esquerda neste jardim, disse ela. Um dia vou-te perguntar onde estivemos sentados e tu não vais ser capaz de te lembrar. Não é suficientemente importante, pois não? Um dia quando tiveres vinte anos. Vou lembrar, disse ele, um banco vermelho com coisas escritas há muito tempo, e tu sentada com a cabeça encostada aos joelhos como sempre fazes. Vou lembrar esse risco de esferográfica que tens na mão, pareces uma criança pequena sempre com as mãos sujas de tinta. E um restinho de bola de berlim, disse ela a olhar as mãos com muita atenção.

E o rapazito pensou que mais uma vez ela o olhava como se esperasse alguma coisa, como se houvesse alguma coisa que ele devesse dizer. Ainda não te disse, lembrou-se de repente. No Verão vou para Paris.

É tão tarde, disse ela baixinho, como se não fosse aquilo que queria dizer. Vamos embora, a minha mãe já me vai chatear. Apanhamos um eléctrico, está bem?

Porque é que ela não gosta de Paris, pensou o rapazito sem perceber.

Vinha quase cheio o eléctrico, tardes de chuva. Vinha quase cheio e quando ele se quis segurar sentiu a mão dela no corrimão de madeira. Desculpa, começou a dizer, e de repente calou-se. Porque a mão dela era igual ao que queria ter dito. Agora sei porque é que tens as mãos sempre sujas de tinta, pensou, porque é que tens esse sinal no pulso tão magro. Agora sei tantas coisas. Não, não faz mal nenhum teres dezassete anos já. O eléctrico começou a andar num gemido alto. Ela levantou os olhos, meu Deus verdes, olhos tão verdes. Não olhes assim para mim. Não sejas assim o mundo todo.

Chegamos, disse ela baixinho ao fim de muito tempo, e o rapazito deixou de sentir os cabelos pousados no seu ombro, a camisola de lã encostada à sua. O chão outra vez, o mundo. O rapazito ficou parado no passeio como se não soubesse para onde devia ir. Ela tinha os olhos baixos. Vou correr, disse muito depressa. Dá-me uma madressilva então. Dá-me. Dá-me outra vez a tua mão, pensou ele, mas agora já descemos, já não está aqui o corrimão de madeira, então era isto. Sim, disse ele. Dou.

Gosto tanto de ti, disse ela logo a seguir, vou correr. Vai com cuidado.

Isto, pensou o rapazito parado enquanto ela se perdia nas pessoas tantas, e isto foi um beijo. Parecido com as gaivotas, com o nevoeiro do rio. Estou tão feliz, tantas coisas. E começou a andar até ao comboio. Acho, pensou, que isto quer dizer que ela é minha namorada.

3 Comments:

Blogger Luís Filipe C.T.Coutinho said...

dou uma madressilva com todo o gosto, apenas espero que se dissipe o nevoeiro para encontrar o caminho...

21/10/04 21:25  
Blogger I Am No One said...

Estive à pouco tempo na Costa Rica... e fiquei a saber que lá, até à bem pouco tempo, não havia nomes de rua... Eles orientavam-se por pequenos pontos de referência.. uma estátua, uma árvore, uma casa... Percebi que também a nossa vida se regula por pequenos marcos de referência... os bancos, os riscos na mão de alguém que nos marca... são esses os pontos que servem de referência para irmos passeando pela vida...[]

22/10/04 10:54  
Anonymous Anónimo said...

são momentos bonitos que trazemos connosco para sempre.
dentro do coração.

fairy_morgaine
www.ogritodosilencio.weblog.com.pt

22/10/04 20:57  

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