Escrevi aqui muita coisa agora e um erro qualquer não o fez gravar. Não consigo repetir. Uma das coisas más neste estado é a impaciência. Falava de mim agora, como se fosse um diário clínico. Mas talvez os pormenores não interessem. Há bocado pensava se o que disser aqui sobre a depressão pode ajudar alguém, mas penso que não. É um estado tão íntimo como o enamoramento, na verdade é apenas um desenamoramento de tudo. Só vivendo, acho.
O folheto que acompanha um dos medicamentos que me deram diz "consulte o médico se notar agravamento da tendência para o suicídio". Esta é extraordinária.
Outubro é um mês assombrosamente bonito. No fundo, todos o são (não gosto muito de Janeiro nem de Agosto), desde que os deixemos ser diferentes. A cidade uniformiza o tempo e o espaço, reduz tudo a mais ou menos sol, mais ou menos horas de luz. Fazem-me falta os cheiros de Outubro. Quando eu era pequeno havia na minha casa nesta época melros, ouriços, ao longe passavam os últimos bandos de pássaros migradores. Havia umas flores brancas, as últimas antes do Inverno. Plantava-se alho, e talvez outras coisas. O azul das hidrangeas (ora aqui está uma palavra que nunca soube escrever). O cheiro da terra começava a saber a musgo. Pedras. E chegavam-nos as uvas do Douro, última homenagem da família que tinha trabalhado para o meu avô, e para o pai dele antes dele. Era assim, nós tomávamos conta dos que vinham para a cidade, e os que ficavam davam-nos uvas e às vezes um cabrito. Sabiam onde ficavam os últimos bosques que nos pertenciam, e que eu ainda visitei aos onze anos. Na geração dos meus pais descobriram que os antigos laços já não faziam sentido. Com dezasseis anos visitei-os pela última vez, joguei bilhar no único café da aldeia e achei engraçado tratarem-me por "morgadinho", como faziam com o avô. Mas era a luz do sol-posto.
Ontem li coisas dispersas. E soube de uma história espantosa: 1812, as tropas de Napoleão avançam sobre Moscovo, como tinham antes avançado para Lisboa. Aqui os reis retiraram para o Brasil. Lá o Brasil era a imensa Sibéria. A diferença foi o incêndio de Moscovo, para que os franceses não tivessem como descansar, apanhados já pelo frio do Inverno russo. O príncipe Rostopchine, conselheiro do Czar (veio a ser o pai da Condessa de Ségur dos livros que as crianças antigamente liam), teve essa ideia terrível. Para dar o exemplo, e antes que o Estado-Maior tomasse qualquer decisão, incendiou o seu próprio palácio, sem se dar ao trabalho de retirar um só papel, uma só jóia. Avisou a família com uma hora de antecedência. A filha Sofia (a escritora) tinha nove anos.
Não sei se mudei de assunto. Tantas vezes temos de incendiar os palácios que habitamos, para salvar o que mais importa. Tantas vezes perdemos tudo a tentar salvar jóias mortas.
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