6.10.04

Lobos

O que há de terrível, e perigoso, num estado de depressão aguda é que não podemos confiar no que nos dizem os sentidos. Os painéis de bordo estão todos lá, e o que transmitem não pode fazer sentido. É em grande escala o que acontece à nossa pele com um "escaldão". Ficamos realmente sozinhos.

O jogo continua (e o que escrevo nestes dias só pode ser sobre isso, para já). Cruzar uma pessoa no passeio dá a mesma sensação de constrangimento que temos nos elevadores. Dizerem-nos "bom dia" bate como se tivesse sido dito a ferros. Há coisas que tenho que fazer e não sou capaz, e são simples. A música ficou difícil de suportar (dei por mim a cantarolar Julio Iglesias, e assustei-me). Só a noite é a mesma (só a noite nos abraça).

Comecei com os medicamentos. Ops. No folheto que vem junto contam-se coisas assustadoras. "Consulte o seu médico se notar tendência agravada para o suicidio" (esta é de antologia). Ao que parece, tudo pode acontecer: pernas dormentes, indisposição de estômago, tonturas, sensação de frio (esta é verdade), até talvez ficarmos "bons", seja lá o que isso for. Vontade de comer doces parece-me melhor, mas ainda não notei (por acaso agora comia um "bom bocado").

A pior coisa é o relógio, evito olhá-los como se trouxessem o mau-olhado. Outra é a impaciência.

Não sei se isto poderá ser útil para alguém. É talvez o único estado tão íntimo como o enamoramento. É no fundo um "desenamoramento" de tudo. Mas faz bem descobrir (ou pelo menos procurar) aquilo que cá dentro não depende dos "sentidos", do "cérebro". Sim, os mostradores estão todos avariados. Mas, "quem dentro de mim os olha? Quem tem agora que caminhar às cegas?". E a mim mesmo me encontro na perda de tudo.