27.12.04

Se eu morrer antes de acordar



Dias de aniversários e passagens, mesmo quando as passagens são estreitas como estreitos fazemos os dias. Natal. Por uma daquelas coincidências que não há por haver vezes demais, o blog que deu vida a este blog fez agora um ano: encontrei-o numa noite fria de Fevereiro, e foi um texto sobre o Natal (não o Natal passado, mas o Natal que falta cumprir) que nele me fez abrir coisas que andavam quietas sob o gelo de que fui feito. Depois passou algum tempo, passaram-se coisas e passei-me eu, e no dia 25 de Março a Ribeira começou a correr, devagarinho como quem vai aprendendo a ser. Dia bonito, nove meses contados antes do dia Natal, e por isso o dia em que a Igreja revive a história de Gabriel-o-Anjo e de Maria-a-Verdadeira, a história da Anunciação: Ave Maria, um bom dia para começar, que foi nesse dia que tudo começou.

Nove meses agora passaram (nove meses, novos meses), e a Ribeira que eu sou deixou de caber em mim, portas tão frias tantas coisas. Como mudei para ser o mesmo! Sim, eu sou a Ribeira Negra, disse eu quando nos primeiros dias não sabia o que dizer, eu sou a Ribeira Negra e as luzes de néon não me sabem tocar, dark pride. Mas sabes, agora sei quem sou, sei de certeza o que quer dizer sou a Ribeira. Sou isto que vês aqui. E ainda bem que assim Alguém mo propôs.

Setembro, disse eu, e disse então é o Outono, sei que agora começa a dança de Goldmundo. Mas não sabia que ia ser assim. Logo a seguir adoeci, parei, cheguei ao fim de caminhos velhos e houve dias em que achei que me perdia. Mas as ribeiras sabem abrir novos sítios, não é, nem que tenham às vezes de se esconder na terra, e foi isso que me aconteceu. Afinal era simples, bastava envelhecer um bocadinho, ter medo um bocadinho, andar. E agora ando a aprender quem fui, ando a aprender a quem pertence o olhar que me contempla e abraça desde antes de ser mundo o mundo. Como o rapazinho do Rembrandt aqui atrás, vou a caminho de casa e vejo já ao longe abertos os braços do amor feito de verdade. Páscoa, Natal. Vinte anos feitos de andar, que sorte.

Sim, sou isto que vês aqui, coisas paradas. Mas é tão bom ter comigo este céu tão fresco, bocadinhos de azul que em mim se reflectem negros. Sou a ribeira que corre das terras altas. "oh minha alma, enfim sós, tu e eu!", disse uma vez Montherlant, mas não é verdade. Não estamos nunca sós. Fomos feitos por um olhar, como o mundo se faz todos os dias do olhar que sobre ele deitamos.

Se eu morrer antes de acordar, pensava eu tantas vezes, se eu morrer antes de subir o rio até à nascente, antes de me dissolver na foz de tantos mundos. Se eu morrer antes de acordar, sim, se cair e morrer na tarde quieta e ninguém souber dos meus passos, que tristeza. Por isso busquei sempre nesta terra um olhar e umas mãos que me acordassem. Sonhos tão fundos, como fundas são estas águas que aqui vês. Mas sabes, ontem, a caminho de Lisboa a caminho de casa e da casa que o Ano que começou me dará, ouvi cantar uma canção baixinha, um gospel feito de água a correr:

If I die before I awake,
angels watching over me my Lord.
Pray the Lord my soul to take,
angels watching over me.

If I live for other days,
angels watching over me my Lord.
Pray the Lord to guide my ways,
angels watching over me.