30.12.04

Voltei a Lisboa



Voltei a Lisboa, voltei a mim. Tive um Natal Natal, sem pais natais da coca-cola, sem musiquinhas, sem prendas a torto e a direito a não ser para os pequenitos para quem o mundo todo é ainda uma prenda por abrir. Um Natal centrado no milagre do tempo e não na ilusão dos dias da pressa. À meia noite na missa do galo, numa das igrejas mais bonitas de Portugal, revi candelabros antigos com a forma do dragão e as sombras que só a pedra do Norte sabe dar-nos. E voltei a Lisboa, devagarinho.

Cheguei à noite, e como faço tantas vezes fui andar a pé pelas casas velhas, pelas colinas. Ver, ouvir, respirar, pensar. Para quem sabe ver tudo são signos, diziam os sábios antigos, e talvez seja verdade. Estranhos foram os signos que vi. Numa rua movimentada, daquelas em que à meia noite ainda os carros fazem fila, um vulto no chão eram afinal dois homens abraçados, ou mais do que isso. Ao lado uma garrafa de vinho entornada, e os cabelos brancos de um deles não me fizeram pensar em sabedoria mas no dinheiro e no poder das fraquezas. Pareceu-me um mau sinal. Mas numa rua deserta (horas mortas) vi uma árvore cheia de ratos, não sabia que os ratos trepavam às árvores, e pensei nas falsas árvores de natal com que as coisas falsas se escondem brilhando. Não gostei muito, também. Vi uma fogueira a arder, menos mal mas não me aproximei. Vi uma coruja, e é sempre sinal de que a noite anda acordada. Passou por mim um homem que falava sozinho e dizia "isto não pode ser, não pode ser", e por mim passou nesse instante a humanidade toda. Vi um muro a que se encostavam raparigas fáceis de vida tão difícil. Numa loja havia uma tabuleta com o meu nome, não sei porquê. Como sempre nas cidades, não havia estrelas no céu.

Tudo é signo, tudo é sinal. Tudo está em olhar à volta, e em aprender que somos isto que somos porque somos o olhar de alguém, em nós pousado. E passei do Natal ao anúncio do Novo Ano (vestidos pretos nas lojas da cor), e isso sempre me fez lembrar aqueles DJ's que põem, uma a seguir à outra, duas músicas bonitas que não ligam bem. Não gosto desta semana de espera, desta semana de ano a agonizar e de um ano novo que promete aquilo que já devíamos saber que não vem. É como se desta vez o Carnaval fosse a seguir à Páscoa. Gosto mais dos fins do que dos princípios, escrevi aqui uma vez, e tenho pena que na vida não baste olhar para trás. É talvez por isso que não gosto dos dias.

A Clara terapeuta diz-me que as coisas estão a andar bem, voltei lá e também ali se disse "para o ano será melhor". Não sei. Os sonhos ensinaram-me que é sempre pena acordar. O mundo ensinou-me que é sempre pena sonhar. E eu aprendo facilmente, facilmente demais.