2.1.05

alegria, primeiro mistério: mistério da anunciação



Gosto da leveza desta pintura de Dante Gabriel Rosseti, gosto do fogo e do azul, da pedra cor da roupa tão lavada. Fica tudo tão simples assim, porque simples, tão simples, é afinal o primeiro e o maior dos mistérios da alegria, aquele que fez cada um dos outros acontecer. Aqui o mistério não é o anjo, sabes? Não é, também, a virgem que neste quadro (tão bonito) é uma rapariga que tem mãos de tocar, rosto para ser beijada como sabem ter as outras raparigas todas. O mistério não é sequer a coisa escandalosa, que o Criador se tenha querido fazer de barro e terra, coisa em que não queremos acreditar. Mistério, aqui, é ter havido uma pergunta, e a pergunta ter tido resposta. Mistério é ter aqui havido aceitar.

Ela estava preparada, embora não o soubesse. "Posta em sossego", como o Camões disse da linda Inês, tão linda. E por isso a chegada do anjo não a perturbou mais que a chegada do sol das manhãs, do luar das noites claras. Nem a perturbaram as coisas difíceis que ele disse e lhe pediu, e só perguntou "como é que isso vai ser, não conheço homem, diz". E nesse momento olhou-o nos olhos, e nunca um anjo viu uns olhos tão grandes. A primeira Nossa Senhora, Nossa Senhora do Sim.

"De todos os seus olhos a criatura vê o Aberto", disse Rainer Maria Rilke, e continuou "Mas os nossos olhos estão sempre como que virados para dentro, como armadilhas que cercam a sua liberdade" (não disse com estas palavras, mas se quiseres procura a Oitava Elegia de Duíno e lê devagarinho os versos maiores que já foram escritos). Virados para dentro, sim, mas repara agora bem no olhar que Dante Gabriel o pintor deu à mulher, no olhar que Gabriel-o-Anjo fez que se pousasse no olhar dele. Mistério da alegria, mistério de olhar.

Passamos o dia 25 de Março como se fosse um dia qualquer, olhos virados. Mas eu queria que pelo menos esse dia, o dia em que se recorda esta história (o dia, também, em que a Ribeira começou) fosse em nós que nos lemos o dia de olhar com olhos grandes os olhos pequenos do mundo todo. Mesmo não acreditando que esta história de anjos seja verdade, que esta história de mulheres seja verdade, que possa haver no mundo flores assim tão brancas coisas tão azuis. Olhar como se já tivesses aceitado, aceitar como se já tivesses olhado a história toda.

(E isso, sabes, posso eu dizer-te que não é verdade nunca, nem foi verdade nesta história que só o Mistério sabe ser verdadeira. Vai nascer uma criança, murmurou o anjo, e disse talvez outras coisas. Mas não lhe disse és tão bonita e vais chorar tanto, não lhe disse assim como o vais embalar nos teus braços daqui a pouco assim vais embalar o seu corpo morto daqui a tantos anos, e o Miguel Ângelo vai fazer de ti a estátua mais bonita do mundo, a Pietà. Não lhe disse vais ser sempre tão calada, quatro livros hão-de contar a tua história e neles só vão saber os homens sete frases ditas por ti. Não lhe disse vais ser feliz, o que nós queremos que todos nos digam.)

Alegria é uma palavra escondida. Em português tem, para mim, ainda por cima o defeito de ser parecida com aletria, doce de que eu não gosto muito. Gosto mais de "joie", de "joy", fazem lembrar jóias vermelhas, tesouros doirados de piratas. Mas alegria é em todas as línguas uma palavra escondida, menos talvez na língua dos anjos que a saboreou desde o princípio do mundo, guardada para este momento a dois. Escondida debaixo da palavra "prazer", da palavra "desejo", da palavra "ter". Uma palavra pequena, e por isso é nos pequenitos que vemos a alegria inteira, a alegria de ser aquilo e estar ali, e estarmos ali nós inteiros com eles. Não tem nada a ver com gargalhadas. É uma palavra branquinha, feita para pousar em madeira igual à da cama deste quadro, para se debruçar de janelas largas iguais às deste quadro. E é por ser escondida e branquinha que é uma palavra importante. E é palavra de aceitar.

É possível aceitar o que nos vem do mundo, o que nos chega de fora. E aí a nossa história encontra esta história, as nossas coisas ficam como a pedra lavada. Mistério, sim. O mistério que faz nascer as coisas todas como se fossem as coisas em nós uma criança.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Eu já achava e agora acho mais: este é um dos meus blogs preferidos. Estanislau www.tapornumporco.blogspot.com

3/1/05 23:33  

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