24.5.05

Eu, os outros em mim (III): ribeira dos contrários



Pensei, ao acordar, o que se passa com esta ribeira, o que se passa comigo - e o que faz tantos visitantes passar também. Tenho tido, até agora, a sorte de ter na ribeira um sítio tranquilo, de ser nela o lugar quieto que queria dar às coisas todas que sou. Tem havido pessoas, e tem havido palavras ("faz hoje um ano, deste-me a primeira rosa brava", disse-me ontem a Evil Angel, e lembro-me tão bem de a dar embora me não lembrasse do dia...); tem havido às vezes silêncios, que são aqui tão difíceis de escrever; tem havido, principalmente, o olhar com que a nós nos vamos fazendo, porque olhando é como se tocássemos mais fundo. E ai de nós se não houver um rosto que nos encontre.

Em tudo isto a ribeira é uma coisa que as coisas me vão mostrando, mais do que uma coisa que eu ande a mostrar. Talvez seja por isso que nada tem forma acabada, talvez por isso as vozes e os corpos se adivinhem. Ribeira dos contrários, ribeira de antes de nascer. Pensei, ao acordar, que as águas correm da foz à nascente, e é assim que deve ser mesmo.

Terá alguém reparado? Se o que isto é tivesse um subtítulo, devia ser "elogio da hipocrisia", e hipocrisia é agora uma palavra feia que se reserva para papas e bispos e beatas velhas. O mundo, dizem, devia ser uma sinceridade feliz, e tanta gente anuncia "sei quem sou, sou isto e aquilo, e os que não gostam têm muito para onde andar". Pois. Sou hipócrita, e não sou feliz nem sou sincero. Não sei muito bem o que sou, donde venho, que forma hão-de ter as coisas que ando fazendo. Não gosto muito de mim. As coisas em que acredito (as coisas em que o meu corpo acredita) não são sempre as coisas verdadeiras. E por isso, por isso mesmo, não gosto de me ver libertado cedo demais. Tantos dos meus gestos são gestos em falso, e não é por isso que não existe a dança pura. Tantas palavras que digo são enganos, e não é por isso não há o canto verdadeiro. Tantos sentimentos são cobardias e hesitações e medos e fugas, e não deixa de haver por isso um deus que nos dá forma.

Ribeira dos contrários, sim. Elogio da hipocrisia. Não gosto sempre do que sou. Gosto daquilo que podia ser, se fosse verdade.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstracta e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também.

24/5/05 15:52  
Anonymous Anónimo said...

"... e um dia conhecerei conforme sou Conhecido..." S.Paulo

e aqui resta-nos o "fado" de nunca nos chegarmos a conhecer...

beijo na testa para que venha a paz...

24/5/05 20:52  
Blogger Evil Angel said...

Eu gosto de pessoas hipócritas; fazem com que não me sinta tão diferente...
Num elogio à contradição, deitas os teus podres todos cá para fora para depois afirmar que não és sincero...
Ainda gosto de rosas bravas (há poucas coisas de que tenho tanta certeza); lembro-me da data porque me ofereceste o ano passado algo que eu não tinha há muito tempo... E eu nunca te agradeci por isso.
Este ano, com direito a rosas vermelhas, já não preciso tanto do que me deste; mas ainda gosto...

27/5/05 17:47  

Enviar um comentário

<< Home