11.11.05

Romance de capa e espada



Seguia o seu caminho o cavaleiro, como sempre os cavaleiros fazem. Um cavaleiro-soldado, ao serviço do Império e das armas do Império. Talvez fosse um dia de Inverno esse onze de Novembro, talvez passagem estreita de montanha, não sabemos. Tenho quase a certeza de que não gostava de falar, que seguia atento ao cavalo e às ordens do Império para esse dia e aos soldados que acompanhava e talvez comandasse. Tenho quase a certeza de que era o céu feito da neve tão branca.

O homem saltou de trás de uma árvore, digo eu, e o cavalo espetou as orelhas. Digo eu, porque tentei imaginar um vulto quieto ao fundo da estrada e não consegui. Saltou, ou ficou quieto, e de qualquer modo quietos eram os seus olhos, quieto foi o gesto com que fez o cavaleiro saber que tinha fome e frio e talvez andasse perdido. Calados os dois, a neve. O cavaleiro olhou-o com curiosidade primeiro, com mais atenção a seguir, e era preciso conhecer muito bem a sua expressão altiva para adivinhar que reconhecera o homem aos seus pés: quando tens frio és igual a mim.

A espada romana brilhou um momento no ar, mas não era dia de guerra e de vitória do Império. Brilhou sim, e rasgou a capa vermelha que cobria o cavaleiro (El Greco imaginou-a verde) em duas partes iguais: fica com isto, murmurou a espada, é tudo o que te podemos dar.

Seguia o seu caminho o cavaleiro ("segues sem capa no ombro / com o pouco que te tapa...", terá Pessoa sabido desta história, ele que tantas coisas sabia?) seguia sim, e era o frio por fora e o fogo por dentro que o começava a arder em fogo inextinguível. Ao fundo um homem (agora sim, vejo-o parado e a neve, a neve), mancha vermelha, meia-capa enrolada ombros tão magros.

E nessa noite o cavaleiro sonhou, e sonhou com o deus vivo embrulhado em meia-capa vermelha e viu o olhar quieto do deus vivo e ouviu ainda tenho fome, sabes? vens? E Roma perdeu um cavaleiro e ganhámos nós o São Martinho e por isso dizem que neste dia faz sempre sol como fez hoje sol em Lisboa. Verão de S. Martinho, e verão que S. Martinho tinha razão em ter reconhecido o outro, quando tens frio és tão igual, tão perto.

Meia capa, sabes? É que Roma pagava metade das armas aos seus soldados, a outra metade era paga com o seu próprio bolso. Sim, se nem tudo nos pertence metade é tudo o que podemos dar.

[pintura: S. Martinho, de Van Dick]

8 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Olha lá, que é feito de ti?!?!? Porque não vais à comunidade do Klatuu?!?! Já sentimos a tua falta!

12/11/05 18:34  
Anonymous Anónimo said...

"quando tens frio és tão igual, tão perto"

14/11/05 10:43  
Anonymous Anónimo said...

Abri pela primeira vez este blogue e gostei.
Penso vir aqui mais vezes.
Já também o linkei.
Adeus!

14/11/05 15:09  
Blogger Caros Amigos said...

Abri pela primeira vez este blogue e gostei.
Penso vir aqui mais vezes.
Já também o linkei.
Adeus!

14/11/05 15:11  
Blogger Goldmundo said...

venus ;) já fui visitar o Tigre.

15/11/05 04:47  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro Goldmundo.

Vermelho, vermelho, diz-me quanto verde és?... É também por isso que “metade é tudo o que podemos dar”.

Um abraço.

15/11/05 17:42  
Blogger I Am No One said...

S. Martinho, é por ele que se comem as castanhas no dia da sua morte, mesmo quem não sabe a ele brinda. "Ignorance is bliss"

Obrigado por partilhares a história.[]

16/11/05 15:26  
Anonymous Anónimo said...

Acho que foi a melhor versão da história que já li...

19/11/05 00:24  

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