24.7.07

Anna



Por culpa de Fidel. O primeiro filme de Julie Gavras, e filmes assim são tão parecidos com o que sempre sou: o mundo, do outro lado da ponte a que chamamos ver. Do outro lado dos gestos todos.

Anna de La Mesa (tem a minha idade) vive em Paris num mundo de que me lembro ainda. A França do General De Gaulle. Tudo está acabado, diz o avô quando De Gaulle morre, la France est veuve. Mundo viúvo sim, viúvos os olhos da condessinha de La Mesa, condessinha de Aragão das histórias que esse tempo ainda trazia. A Espanha do General Franco, o Chile tão longe, a rua. Culpa de Fidel? Fidèle era a Anna, e custou-lhe tanto aprender. Nem sempre há portas para o que importa mais.

A condessinha passava as férias no castelo dos avós franceses, e logo no princípio a vemos a aprender o mundo (era um casamento, a festa de um casamento) como se andasse no ballet por dentro, como se andasse num livro por fora. Tão grave. Tão grandes os olhos, tão iguais às árvores do parque do castelo. A condessinha tinha uma família espanhola (a família do pai, e com o pai andam sempre o negro e o silêncio e o amor que não sabe dizer), e de repente uma prima calada, um tio morto de morte matada, uma tia a desfazer-lhe a história como a história do mundo a desfizera a ela. Veuve. De repente mudou o mundo, e Anna de La Mesa ficou igual.

O pai de Anna reage como reagem os que parecem fracos. Tínhamo-lo visto na festa, fato negro e cabelo escovado como os aristocratas que se curvam ao peso da idade nova. Tínhamos visto não sei que lume nos seus olhos (Ay Carmela). E lança-se na revolução - na revolução como os anos 70 a entendiam - como quem se atira a um rio que o não deixe voltar. Ai condessinha calada, ai dos teus olhos a olhar.

Entre as freiras do colégio e los barbudos com quem o pai conspirava, entre o jardim grande que não havia mais e a falta de dinheiro que por todo o lado aparecia, entre o caos por fora e a ordem por dentro se passa um ano; um ano da vida dela, duas horas da nossa vida presos a uma criança que não sabe que corpo e alma dizem os grandes serem coisas distintas. Que não sabe porque andam os crescidos a fazer coisas estranhas. Que vê como estranhas são as coisas simples que a faziam por dentro.

(Um dia a condessinha viaja com o pai até ao castelo de Espanha, onde aprendemos que a história começou. Mas chegamos tarde e não há lá ninguém senão as fotografias guardadas, os túmulos de mármore dos condes que antes dela viram não sabemos o quê. Não há lá ninguém senão a música, que em momento nenhum se faz tão forte para nos fazer sentir tão longe. Anna pára junto ao portão onde velam as armas orgulhosas da família morta, e talvez aí se lembre da raposa que o avô francês mostrou. E se querem saber mais vejam o filme, sim.)

Como podes ter a certeza? Como podes saber a diferença? Como posso eu saber que vale a pena a rua, que vale a pena ser isto, que vale a pena doer?

Não sei se foi por culpa de Fidel, se por culpa dos meus olhos.




(Para quem queira, Aqui

18.7.07

Sonata Arctica


Vejo nos jornais notícias de idas à Antárctida para "denunciar" o que está a acontecer à Antárctida. Um jovem que ganha um prémio por um trabalho escolar sobre ecologia, um cantor e DJ nova-iorquino cuja música alerta para a morte do planeta, jornalistas convidados a "confirmar" as coisas que os cientistas (e os donos das indústrias) já sabem. Vejo nos jornais a morte a regozijar-se consigo mesma.

São tantos os que lá vão em vão, tantos os que estragam. Tantos em todo o lado que seja lado de fora da coisa nenhuma que lhes anda dentro. Até comigo querem vir ter às vezes. ("não se mexe no que está quieto", ensinou-me a Avó, e não me esqueci ainda).

Desceram tão baixo. Descemos todos. Não conseguimos imaginar um lugar sem ninguém e não ir logo a seguir vê-lo e tocar-lhe. Devastação do ser! Tenha uma casa de férias no paraíso, colha a última flor para florescer na ilusão de ser como ela. O mundo, do ponto de vista dos demónios ávidos.

Nunca hei-de ir à Antárctida. Que lugar magnífico é ela sem mim. Que lugar sou eu longe dela. A proximidade das águias. E podia agora fingir que mudava de assunto, e falar do amor.

"... Solitude, ô coeur d'homme! Celle qui s'endort à mon épaule gauche sait-elle du songe tout l'abîme? Solitude et ténèbres au grand midi de l'homme..." (Saint-John Perse, Amers)

17.7.07

- At least, my world.

Mira, que cosas que tiene la vida...
(Julio Iglesias)

Aconteceu no fim de Junho, mas as coisas importantes são permanentes.

Mira Brzezinski, locutora pivot (como agora dizem) de uma estação de televisão americana, recusou-se em directo a ler uma coisa que a direcção classificou como "notícia". E eis que há uma pessoa para quem o que está dito está dito. Bravo.

Estará a revolução afinal ao alcance de todos? Os maldizentes dirão que está, pelo menos, ao alcance da filha de um dos senhores do Império (falo da Mira, e não da patusca a quem a coisa se referia).

Será verdade que com isso não mudou o mundo, como o senhor engraçadinho lhe diz? Outro bravo pela resposta: "pelo menos, o meu mundo".

O video aqui, com um agradecimento ao ex-Ivan.

13.7.07

O voo da garça


Os anos vão fazendo em mim uma espécie de Douro, e eu vou fazendo do mundo à volta uma espécie de brava pedra.

Não sei se é isto envelhecer. Não sei se viverei para ser como uma criança. Não sei se o espelho negro guardará o alto voo da garça.

1.7.07

Corvo


Lembras-te do Corvo - o filme?

Às vezes - quando a injustiça é grande demais, quando os chacais se alimentam dos olhos de ver - é permitido à alma voltar aos caminhos baixos da terra, aos caminhos densos dos homens. Às vezes o corvo é um pássaro de fogo a dançar.

Lisboa tem o corvo nas suas armas, e por isso se enganam os que a julgam desarmada, só porque desamada a deixaram. Lisboa tem a noite no sangue, e por isso se ergue na rua quando os palácios a querem dormida. Lisboa tem palavras de vento, e o vento sopra onde quer.

Que o corvo levante voo, juventude do negro. Que o corvo seja fogo a dançar. Abutres proclamados reis, vampiros de carnaval, mordomos das espumas mortas, já não há tempo para que as naus se não façam mar. Que o corvo enforme a tempestade, invocação do negro. Que o corvo seja luz de rasgar.

Ribeira Negra, Lisboa. Não tenho senão a ideia que faço de mim mesmo para me suster. Não tenho senão o grito do corvo.