4.4.04

Todas as cores da noite escura

Não tinha reparado, até agora, como são importantes as cores nas coisas que aqui vou dizendo. Só na história da menina que não era feita de cinzento foi mesmo pelo verde que tudo começou, e começou assim porque quando a fiz foi também uma história verdadeira, e portanto era mesmo disso que eu queria falar. Mas se não tinha reparado nas cores, já sabia que o meu mundo era um mundo-de-olhar. Quando gosto de alguém não me apetece tocar-lhe, apetece-me saber ver de mais perto e poder ver o tempo todo. E o momento de tocar, se houver, é em mim só o momento de saber outra vez o que já sabia. Não sei se há isto em mais alguém.
Há pelo menos livros que são assim. No belíssimo "La carta esferica", o marinheiro Coy enamora-se de Tanger Soto (e eu enamorei-me também como nunca voltou a acontecer em livro nenhum) e durante o tempo quase todo não percebe bem o que lhe acontece, só sabe que lhe quer contar cada uma das sardas da pele, conhecê-las e nomeá-las uma a uma (pero tiene miles de ellas) para a poder conhecer inteira. E tem medo dela, porque ela primeiro olhou-o como se o não visse e depois olhou-o como se o visse por dentro e nunca teve medo nenhum (Hei-de falar mais deste livro, para que escutes o grito desta Tanger Soto na noite em que o amor e o medo e o mar foram da mesma cor assombrosa. Prometo que hei-de falar). E Borges era assim também, mas talvez porque estava a ficar cego e tinha de guardar lá dentro o mundo inteiro, e guardá-lo era olhar finalmente as coisas uma a uma.
As cores. Ontem aprendi que Leonardo da Vinci foi o primeiro a pintar as sombras a azul, em vez de o fazer a preto. E também os poetas (embora muito mais tarde) passaram a falar da noite azul em vez da noite negra. Mas acho que não é disso que se trata. Eu falo das cores porque as vejo como coisas que não estão em mim senão quando as ponho cá dentro. Sei que o mundo tem muitas cores, e sei que para tantos mundos ando cego. Mas nas coisas à minha volta, nas coisas todas dos outros, não sei ver senão todas as cores da noite escura.