17.5.04

The gap in the curtain

Hoje estou feliz. Uma amiga que esteve em Londres trouxe-me um dos livros que sempre quis ler, "The gap in the curtain", de John Buchan. Tenho-o à minha frente. Não o larguei durante toda a tarde. Vou jantar num sítio tranquilo para o abrir devagar. Não me telefonem, não me digam nada. Eu estou bem (ainda me faltarão, depois deste, ler dezassete romances dele que ainda não conheço...).

A história? Vou transcrever a contra-capa: "... a supernatural story full of suspense. Guests at a country house party are enabled by an eccentric scientist to see a glimpse of an issue of The Times dated a year ahead of time."

Parece bom. Mas a história não interessa nada. Vou explicar. O John Buchan é um homem que nasceu na Escócia em 1875 e morreu em 1940. Escreveu perto de trinta livros, mas escrevia apenas nas horas vagas. Na realidade fez parte do Intelligence Service britânico na fase (digamos, a partir de 1900) em que um grupo de Britânicos lançou o grande ataque para a conquista do mundo (hoje esse grupo é essencialmente americano) e se defrontou (ou não) com inimigos estranhos (um dos mais estranhos aquele grupo alemão que chegou ao poder em 1933...). E Buchan escreveu sempre a partir das coisas que sabia, das coisas que viu, e ficamos com a dúvida de perceber até que ponto nos quis dizer muitas coisas. Em 1901 (com vinte e seis anos) era o secretário privado de Lord Milner na África do Sul, e Milner era um dos homens que tentaram criar em África o império "do Cairo ao Cabo" que deu cabo dos sonhos de império portugueses; em 1935 foi elevado ao mais alto estatuto da nobreza, como Baron Tweedsmuir. Quando começou a Segunda Guerra era o Governador do Canadá - o Canadá para onde a Coroa inglesa iria se a Inglaterra fosse invadida, como os reis portugueses retiraram para o Brasil diante de Napoleão (aliás por sugestão inglesa também...)

"A minha palavra", diz o herói do seu romance "Os Três Reféns" (um dos poucos que anda traduzido) "tem, em certos círculos, mais peso que a de muitos primeiros-ministros". E no entanto o herói era (aparentemente?) um pacato inglês que vivia retirado no campo a pescar e a ler. E são assim todas as suas histórias. Todas elas são histórias sobre o poder verdadeiro, e o fumo lançado aos olhos da multidão. O "Grande Jogo", como dizia Kipling (sim, o autor do Livro da Selva), que era outro inglês que sabia muitas coisas.

Os heróis de Buchan trabalham na sombra a favor da paz, da "paz verdadeira". Ao contrário dos heróis americanos do pós-guerra, não trabalham, parece, exactamente para o Governo ("trust your country, not your government", como dizem os últimos americanos de tradição libertária). Não querem saber de eleições. Não ajudariam o Rumsfeld a fazer negócios no Iraque. E os seus inimigos não são os "governos estrangeiros". São grupos que trabalham para a guerra, para a discórdia, para o caos. Uns e outros na sombra, que é sempre um sítio bom para se estar. Grupos cuja existência era tão evidente para os ingleses de entre-as-guerras que até a Agatha Christie deles fala abertamente nos seus primeiros romances (o que lhe terá acontecido para que tivesse deixado de falar?).

O livro mais conhecido de John Buchan é agora o "Os trinta e nove degraus", e isto porque dele o Hitchcock fez um filme interessante (embora se percam muitas subtilezas). Mas em cada um dos que li (quatro até agora...) o que realmente interessa são pequenas alusões, pensamentos soltos, coisas pressupostas sobre os poderes que nos governam. Neste mundo e às vezes nos outros mundos à nossa volta.

E sobre o Buchan já se disse muita coisa. Já se disse, por exemplo, que quando os ingleses temiam a invasão alemã em 1940, um grupo de druidas levou ocultamente para o Canadá e confiou à sua guarda coisas sagradas que nós conhecemos como a Espada e o Graal, coisas que aguardam o regresso do Rei-que-foi-e-um-dia-será. E que a sua morte foi determinada por magos negros. Sobre essas coisas nada sei, e não creio que nos livros dele sejam faladas. Mas são sempre livros que ajudam a ter os olhos bem abertos.