17.5.04

O Cavaleiro d'Andar

A noite do solstício de Verão do ano em que tinha dezoito anos era para mim, e para um amigo, uma noite simples de preparar exames. Estava calor. Faltavam ainda dois ou três dias para o teste, e eu estava já na fase em que não me apetecia ler e não me apetecia fazer mais nada. Na altura acreditávamos ambos que era importante a "intervenção política", e ao jantar começámos a discutir já não me lembro que ponto da situação. Notei nele, como tantas vezes notava, uma ambição mal disfarçada, casada à pressa com frases revolucionárias e declarações pomposas de princípios. E quando ele foi dormir eu fiquei acordado.

Lembro-me de ter ido à varanda da minha casa, que dava para árvores grandes, e lembro-me de procurar a lua. Pensei na conversa que tínhamos tido. Descobri que acreditava, mesmo quando não soubesse em que acreditava. E resolvi fazer uma velada de armas.

Não me dirigi a Deus, e não me dirigi ao Mundo. A noite permite que saibamos que há coisas sem nome que nos acompanham mesmo quando estamos mais sós. E invoquei tudo o que sentia ser maior do que eu. Tive pena de não ter uma espada comigo. Mas deixei a música e o silêncio e a lua e a noite e o amor serem a minha espada intranquila. E fiz um juramento de fidelidade.

Que eu não deixe nunca os olhos fecharem-se-me, mesmo que seja de medo ou de cansaço, o que é diferente de ter medo ou de estar cansado.
Que eu saiba ser fiel, mesmo quando não haja ninguém que responda e nada que mereça fidelidade.
Que eu reconheça a grandeza mesmo que nunca seja grande, a coragem mesmo que seja cobarde, a verdade mesmo que aprenda a mentir.
Que o mundo inteiro faça sentido mesmo que a minha vida seja o caos, que as coisas sejam inteiras mesmo que as minhas mãos se estilhaçem, que as asas se abram mesmo que eu seja feito de rastejar.

Eu tinha então dezoito anos e não sabia que o mundo era tão grande e que as derrotas eram tão amargas. Não sabia que a minha vida ia ser o caminho de sítio nenhum. Se nessa altura já tivesse lido os Evangelhos ter-me-ia lembrado do Pedro que por três vezes negou conhecer o seu Mestre. Mas tinha dezoito anos e nem sabia que não sabia.

Agora estou mais velho e vi tantos dos meus amigos cair, derrotados pelo sucesso ou derrotados pelo fracasso. Vi-os a deixar de acreditar. Vi alguns a rir da fidelidade e das coisas grandes que não sejam as coisas inchadas que dentro deles andam. Vi outros a ter medo de ficar, e de ser aquilo para que foram feitos ser, como se houvesse outro sítio e como se pudessem ser outra coisa. Vi muitas lágrimas, e as piores são as escondidas (as dos homens, tantas vezes). Vi almas mutiladas e rostos em que não-acreditar deixou cicatrizes fundas. E tantas vezes não tive palavras para eles, nem um gesto nem a espada que já não tinha na minha noite de invocação da noite. Procurei ficar, num mundo em que todos querem ir embora. Ficar igual a mim, igual à sombra que me acompanha. Procurei ser o mesmo, eu que cada dia me acordo diferente. Ser igual, eu que cada dia sou um pouco mais triste. E tudo para ser fiel a uma coisa que não me disse o nome.

Se eu fosse um cavaleiro era o Cavaleiro d'Andar, e não ia vencer torneio nenhum, guerra nenhuma. As espadas quebram-se nas minhas mãos assombradas. O silêncio nunca me deu voz. Era o Cavaleiro d'Andar, e talvez fosse apenas uma armadura vazia. Mas não há nada no mundo, não há nada em nenhum de tantos mundos à minha volta que me faça dizer que não acredito, que não quero, que não vou até ao fim dele.

Quando a minha filha era pequenina, pediu-me uma vez para ir a um Parque ao Domingo. Eu estava cansado e tentei dizer que não. Está lá muita gente, expliquei. E ela ficou a pensar. Pai, porque é que há muita gente nos sítios em que há muita gente? Silêncio. Deve ser porque muita gente gosta dos sítios de que muita gente gosta. Pois, deve ser. E agora eu ia dizer que quase ninguém repara que há coisas em que quase ninguém repara. Venho agora de andar por aí, pelo mundo-dos-outros que é este mundo-dos-blogs. E há muita gente que acredita que não há nada para acreditar. É fácil distingui-los, são aqueles que sabem qual é a cor de não doer, e a cor de ter os olhos abertos por dentro. E a esses chamo irmãos no meu império isolado.

Todos nós somos feitos de coisas pequenas, e todos nós somos o esboço de uma coisa maior. Se me apetecesse agora ser literário, diria aqui a frase inteira de Nietzsche, "meus irmãos, consagro e edifico em vós uma nobreza nova...". Mas hoje não me apetece falar muito. Este mundo é um lugar feito de trevas e de dor. E as trevas e a dor trazem um nome que não quero agora pronunciar. E podiam ser derrotadas. Como a sombra de Mordor, para quem sabe do que estou a falar. Qual é o contrário de milagre, maldição? Nevoeiro? Porque o que temos é tão simples e tão impossível como isto: aquilo que faz com que pudéssemos vencer as sombras se nos uníssemos é precisamente aquilo que faz com que nunca nos venhamos a unir. Os dados estão viciados desde o momento da fundação do mundo. Não haverá nunca a aliança dos solitários, a irmandade dos únicos, a fraternidade dos deserdados. E tantos somos, tantos.

Há dias uma amiga grande que já não vejo há anos telefonou-me. Tenho apenas uma ideia vaga do que seja feito dela. A última vez estava bem, ou queria fingir que sim. E agora telefonou-me a chorar, e nem soube dizer-me o que aconteceu. Não pude ainda saber dela, não pude ir ter com ela e se fosse não sei o que posso fazer. Provavelmente estar lá, escutar, aguardar. Isso eu sei fazer, guardo e aguardo, a minha divisa de quando sou esse d'Andar que tantas vezes tenho sido. Mas é preciso. Porque se a felicidade dela não é a minha felicidade, a sua dor é também uma dor minha. E a sua derrota uma derrota mais do meu império tão frágil.

Porque é que anda tanta gente por sítios em que não anda ninguém?