Uma das minhas bisavós era filha de um cigano sevilhano. Talvez por isso viajar e vadiar são para mim as boas maneiras de estar comigo. Trouxe três livros e uma camisola para se houver frio (e há), e estou bem. Por outro lado sinto raízes fundas, mas são mais ligadas a coisas do que a pessoas.
Na primeira viagem de comboio uma rapariga deixou-me preso. Não me pareceu que muita gente a visse; dois lugares à frente (percebi mais tarde) havia outra mais feita de luzes, uma loira que ria alto, tinha um telemóvel que não se calava e acabou a beber cervejas com um jogador de andebol. E eu pude ficar preso sem ninguém dar por ela. Já a tinha visto na estação: vestia de outono, uma saia comprida cor de vinho, um lenço ao pescoço que parecia tingido de folhas secas, um saco indiano. Duas mochilas enormes como as que trazem os estrangeiros em férias. E andava como se tivesse muita pressa mas não soubesse onde estava, e as mãos e os tornozelos eram mais um gesto que outra coisa. Não sei se era muito bonita porque não sabia olhar para ela pela mesma razão que não sei olhar o sol. Mas pude ver que tinha uns olhos negros e que um bocadinho do cabelo não se deixava prender nas fitas que para ele ia inventando. E estava-me a ler com toda a atenção, sublinhando palavras com uma caneta vermelha como se tivesse exame amanhã. Estava-me a ler porque estava a ler (em francês, fi-la logo bretã ou québecoise...) o Narciso e Goldmundo, o belíssimo romance a que pedi emprestado - há muito tempo - o nome que aqui trago (e o outro também, mas essa é uma outra história). Ficou horas sentada quase ao meu lado, e fiquei horas a olhá-la como se a estivesse a ler também. Tudo nela era a força, e a doce tranquilidade da força. E tudo nela era a fragilidade, e a inconsciente alegria da fragilidade. Podia estar no dia mais feliz da vida ou podia estar no dia seguinte a ter acabado o mundo dela. Não sei, e ninguém saberia só por a olhar. Como se houvesse nela uma distância entre os gestos e o corpo, como se pensar fosse só o princípio de uma história maior. Por isso ela era parecida com um rosto ou com uma guitarra ou com uma história. E sei que nunca me hei-de esquecer da menina feita de outono.
Voltei ao Douro. É a pedra feita água escura. Se o Tejo é a Amália, o Douro são os Dead Can Dance. Mas os portuenses fazem barulho demais. E fui à procura de uma terra mais meiga.
1.5.04
Notas de andar
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