Na quinta feira descobri que em Lisboa há um sítio feito de regressar à casa antiquíssima. É também feito de arcos de pedra, de paredes escuras, das pessoas que há tanto tempo fizeram os arcos e das que agora passam por eles. Mas é feito de muito mais do que isso. É feito do efeito que fez em mim. E é disso que eu queria falar. O lugar do ínício.
Quando eu tinha catorze ou quinze ou dezasseis anos, o mundo todo era um sítio quieto e um sítio feito de mim. Havia outras pessoas que passavam de vez em quando, os professores e o revisor do comboio, o senhor da mercearia (chamava-se senhor Amorim) e o cigano que chegava nas manhãs enevoadas com uma bicicleta carregada de varões de guarda-chuva e com uma gaita de beiços, o amolador. Ouvi-lo, explicava a minha avó inquieta, era mau, a menos que a cozinheira quisesse mesmo afiar uma das facas de trinchar. O amolador trazia consigo a chuva e podia lembrar-se de levar consigo as crianças e os dias. Era o flautista de Hamelin exilado no Porto.
Sim, havia pessoas que passavam, e no fundo todas elas eram o revisor do comboio: os meus amigos do bairro da câmara, que entravam no comboio depois de mim, chamavam-lhe o pica e tentavam fazâ-lo cair. Mas eu portava-me bem (embora me risse daquela vez em que ele caiu mesmo, o que será feito do Albano?) e mostrava-lhe o passe com uma fotografia a preto e branco (tanta coisa no mundo era a preto e branco nessa altura). E todas as pessoas eram assim: os professores pediam os trabalhos de casa e eu tirava-os da pasta, o meu pai pedia-me que fosse buscar cigarros (os maços eram brancos com uma folha de tabaco dourada, high-life e já não existem), o senhor Amorim pedia-me dinheiro pelas coisas que a minha avó queria e eu contava bem as moedas. Todas as pessoas passavam por momentos, pediam qualquer coisa com ar de que sabiam muito bem o que estavam a fazer e iam-se embora outra vez, pelo menos até ao dia segunte.
O resto do mundo era feito de coisas enormes. Havia árvores e ao longe, da janela do quarto da minha irmã, via-se o mar (em Junho podia ver o pôr do Sol da janela). Havia a noite, e a noite no meu quarto trazia a lua consigo. Havia também, no andar de baixo, numa das salas da parte da casa onde raramente alguém ia, a biblioteca em que os livros antigos subiam até ao tecto (nunca consegui ler os que estavam em latim, sei agora que eram livros de direito e de história) e para onde eu levei o primeiro aparelho de música que me deram. E os livros escutaram comigo o Mozart e o Beethoven, o Wagner e os Pink Floyd, a Maria Callas e o Lou Reed. E os gatos e os fantasmas que havia por lá certamente os escutaram também.
Depois, por causa de uma menina de olhos verdes que usava o cabelo curto e que não sabia que os fantasmas existiam, passei a ir de comboio para a cidade mesmo quando à tarde não tinha aulas, e sem dar por ela passei a deixar passar o dia em praias feitas de rochedos grandes onde em Fevereiro não havia ninguém, nas estradas de pedra que caminhavam ao longo do Douro e dos abismos do Douro, e num cemitério feito de grandes jazigos de pedra com estátuas de anjos como nos filmes que depois vi (o cemitério fechava às cinco da tarde mas uma vez escondemo-nos para saber o que acontecia aos anjos quando o sol acabasse). Dois desses jazigos de pedra eram da minha família, e eu gostava de ver o nome dos bisavós no mármore branco, os versos feitos a uma tia que morrera há mais de cem anos e que não chegara a saber o que era ter vinte anos como eu não sabia também. Foi talvez nesses versos e nesse mármore e no portão enferrujado desse jazigo que eu soube que as coisas passam e que as coisas ficam, e que não vale a pena querer ter uma imagem completa do mundo e que a mesma dor que me vinha do fundo das margens do Douro estava em toda a parte e era inimiga do sol.
Foi nesse tempo que comecei a escrever. Escrevia para ela, para a menina dos olhos verdes, e escrevia coisas que ela entendia mesmo quando não queriam dizer nada. Contei-lhe histórias de reis antigos e de famílias arruinadas, de cavaleiros de olhos cinzentos e de princesas que dormiam num quarto onde havia uma harpa que se não podia tocar. Contei-lhe histórias de dragões e de abismos negros. Contei-lhe que o céu pode ser roxo ou vermelho e que os corvos gostam de pousar nos ombros dos anjos cinzentos. Contei-lhe a história do holendês voador e do navio fantasma, dos piratas das caraíbas e contei-lhe a história do que as minhas vidas podiam ser. Contei-lhe muita coisa que não sabia que tinha, e ela ouvia-me e dizia que queria aprender latim e grego e a linguagem dos pássaros. E que vivíamos no lugar do início e que um dia o dia e a noite seriam iguais, como nós éramos.
E um dia contei-lhe a história verdadeira, a história de tudo o que aconteceu depois. Contei-a e escrevi-a, e foi a última coisa que escrevi durante muitos, muitos anos. Penso que uma amiga, que já não vejo há tanto tempo, tenha ainda guardada uma cópia dessa história, porque numa altura de não ter sítio onde pôr as minhas coisas eu lhe pedi que guardasse no sótão uma arca onde pus os meus livros de astrologia, duas fotografias, alguns papéis e talvez uma concha cinzenta, já não me lembro. E a história verdadeira foi uma história de adivinhar. Um cavaleiro que se perdeu e que passou muitos anos em terras cinzentas em que só havia pássaros grandes e pântanos e sombras perdidas. Uma harpa que tinha sido tocada no quarto da princesa de olhos verdes. Sangue que escorria das mãos dela e lágrimas que se faziam diamantes (vi essa cena anos mais tarde no Drácula de Coppola e é talvez esse o segredo de ser para mim o filme mais bonito do mundo). Tantas coisas.
E o lugar do início deixou de ser o mundo todo.
Muitas coisas passaram entretanto e eu já tenho os olhos cansados como os tinha o cavaleiro da história verdadeira. Os pássaros grandes ainda acordam em tantas noites para me vir buscar. E eu precisava de ter um sítio em que pudesse parar, como quando queremos sentar-nos na estrada. Tinha de ser um sítio feito de noite e de música, um sítio em que não falasse com muita gente ou pelo menos não houvesse professores e revisores de comboio. O amolador até estaria em casa num sítio assim.
Na quinta feira encontrei em Lisboa o lugar do início. É preciso dizer que foi uma amiga que é bruxa e que era também nessa noite uma princesa celta que lá me levou, mas que me disse que eu podia voltar sempre que quisesse. Voltei. E hei-de lá ir sempre que precise de uma noite inteira.
9.5.04
O lugar do início
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