15.5.04

Ribeira Negra

(foi assim que nasceu a minha Ribeira Negra, ou a Ribeira Negra de mim. Em Outubro de 1993. Na altura era verdade. P'ra fora, gaveta!)

Da minha janela vejo o inconsciente Douro
enquanto escrevo sem saber de ti...
Não. Não é verdade. Eu não escrevo agora.
Hoje arranquei da alma as cores da noite vã
e a tela que eu sou vai-se encharcar por fim...
Não tenho as tuas mãos, as cores, o firme traço
com que a ti mesma sem saber te andas pintando,
mas da minha janela vejo o Douro
e fria a seguir ao Douro pressinto a outra margem...

Ah, quanto na outra margem há-de haver de mim,
tanto de mim este bocejo de vida me apartou...
essa alma devagarinha, alheiamente estranha,
que me murmura lá fora, da outra margem da vida,
da proibida distância que Deus de mim lhe impôs...

Da minha janela vejo o inconsciente Douro,
mas hoje não sou mais que o medo de te escrever
embrulhado em ânsia vã de ser relido...
(—Se me pudesses ler sem nada te ter escrito...)

Hoje... não sou de mim. É noite — e eu vejo o Douro,
e o que não te ia dizer transborda enfim,
eu, que já não sou o que via o Douro...(— tela branca
onde o Douro e a noite desenham assim...)

Ah, tanto eu queria que este desenho fosse carta,
mas eu já não sou eu, sou um reflexo no Douro...
E o Douro desfaz-se em mim, agora, nesta noite,
do caixote de lixo de todos os sentimentos do mundo...

Querias saber quem sou, tens a resposta agora:
— Eu só não sou eu. Sou todo o imenso resto,
o que sobra, o que me falta, o que não tenho;
o preto e branco de todas as cores,
o porto de destino de todos os barcos naufragados.

Querias saber... e como havias de saber,
tu que não foste a luz da minha alma,
que nem sabias que havia esta outra margem...
— É estranho... isto era uma carta para leres, devagarinho...

... mas a noite e o Douro da minha calma fizeram a enxurrada!
e nos socalcos do meu corpo que o Douro ronda e quer,
a dor é o lagar que me a alma esmaga em vinho
e faz da minha sombra esta ânsia de te ver
e já não sou mais que a sua voz embriagada...

— Mas o rio tem margens, e o que eu te digo também...

Do Douro nunca havemos de ver a nossa margem, e aquela brisa
que na outra margem refresca quem não somos
nunca se levanta para nós (só por não sermos
esses que não somos...)

— e como não nos é consentido que digamos
mais do que a brisa diz da incerta tempestade
se à alma pedirmos que nos se alargue em vento,
assim também nas margens desta folha
se cala, como sempre, tudo o que em mim vai
e eu não deixo sair... e já nada sinto
destas palavras que não vais receber:

— Por breves momentos nos olhámos e sorrimos
como navios que estrangeiros se saudassem
no alto mar da vida, estranhas rotas...

(Mas hoje?... hoje eu não sou de mim!...).

Não escrevo senão o que por mãos de Alguém
na minha alma sonhado se gravou. Não sei nadar.
Eu, eu que por dentro me fiz ao mar e à saudade
por fora o Douro me veste — e não sou nada
senão o olhar vazio que o Douro ao mundo dá,
e a alma que a pedra lhe empresta...

(— Dizes bem, eu sou assim — o Douro e a pedra…)

Hei-de sempre ser a ribeira negra, o sonho marítimo da pedra
que seria cais se algum barco se enamorasse do mar
e se esta chuva se perdesse nos braços fortes de marinheiros
e nas cordas enroladas como em mim vai enrolada a vida...
Nos golfos do sentir sobem em mim os sete mares,
e em cada manhã de dentro há o amor e há rosas,
e em cada noite de fora há um lobo baço
que nem soube ser lobo do mar.

O mundo desagua inteiro em mim, perfeito
e triste como a rosa-dos-ventos; mas do meu peito
só sei arrancar palavras roucas, soltas como as fragas
onde os lobos vagueiam, as fragas
que no Douro enlouqueceram o Douro,
— de que os outros (e tu também) se afastam
como de corpos por sepultar...
Queria pôr diques ao mundo
para que o mundo me não entrasse assim
e rebentar estes diques que me estreitam
mas hoje!... (logo hoje...) não sei de mim!

— Ah, não poder abrir as comportas do Douro que eu sou
e deixar correr as mágoas do rio até à foz de alguém...

E de ti, que pode dizer a ribeira negra?

Até te pertencer, sabia tranquilamente da vida
que não era um caminho para mim
— eu era a pedra onde os caminhantes se sentavam...
Agora sei que essa pedra podia ter sido,
nas tuas mãos, uma estátua de Claudel — ou, nos teus passos,
as escadas firmes de um templo ou de um altar.
Mas foste sempre o sonho da outra margem,
aquela de onde se vê a ribeira negra,
esta ribeira negra que eu sou, que sente e sonha tanto,
tudo, menos a imagem perfeita que da ribeira negra
só se tem (tiveste tu?...) da outra margem...

— Não tenho pai nem mãe nem anjo que me guarde...
Sou filho do desejo insólito da pedra
e do barro que sobrou das mãos de Deus
quando fez Adão e das Suas mãos limpou
distraidamente o barro que sobrava.

Desses, por quem nunca as árvores dançaram,
brotaram os lobos e as sombras
e a primeira lua nova e eu nasci.

—Não sei dizer mais! Não foi por mal. Eu sei
que sou o sapo em que a princesa príncipes não viu,
o porto a que nenhum barco arriba, o outro lado da Lua.
Sou o pão que puseram na mesa
quando ninguém queria pão — a solução de enigmas
que a ninguém a esfinge apresentou.
Nem sequer cheguei tarde. É assim.

— Não me estou a queixar, Amor-dos-outros...

Os barcos da minha alma encalharam em baixios
de um porto que não vem assinalado
nos mapas de Deus,
— onde a vida não tem doer
mas também as lágrimas não sabem de olhos que as digam...

Para mim não há marés, não há levante,
nem ilhas onde ir ter. Há só o mar.
Passaste por mim como por mim passou a vida,
e como a vida disseste " deve ser bom navegar..."
— mas o meu barco perdeu-se e a Lua é a minha inimiga...
mas o meu barco perdeu-se, já não sei desembarcar...

— Nunca brinquei ao bom barqueiro, mas a minha mãe
cantava uma cantiga...
"estava a bela infanta, no seu jardim assentada...")
... trago uma infanta comigo, do mar não lhe chega nada...

Hoje eu não sou de mim. — Dói tanto não doer...

Nunca saberei o segredo de sentir, ou o que é acordar.
Neste barco à deriva por dentro, à deriva no Porto por fora,
nunca hei-de visitar as Venezas que há dentro de mim,
nunca hei-de subir o rio até que as duas margens se consumam
na nascente crua de tudo.

Da minha janela vejo o inconsciente Douro...