11.5.04

(a história verdadeira)

Era um reino encantado onde reinava um Cavaleiro solitário. Esse cavaleiro trazia uma agrura, uma ferida na alma que não podia sarar, e que ganhara nas suas antigas viagens por terras distantes e mágicas, desafiando ninguém sabia que poderes, que mistérios. O Cavaleiro envelhecera.
Um dia chegou a esse reino encantado uma princesa de sonho, trazida num carro de cristal puxado por oito cisnes de prata, e os seus olhos doces brilhavam como os diamantes mais puros.
A princesa era bela, tão bela como nunca se vira, tão bela que quem a visse escutava imediatamente uma melodia vinda de lá das nunvens, tocada por invisíveis flautas ou misteriosos violinos celestes...
O Cavaleiro, até aí solitário e silencioso, desposou a princesa.

O reino encantado acorda num dia de sol, no dia das bodas do seu cavaleiro e da princesa. Tabernas de cerveja e madeira ressoam de luz, risos e alegres raparigas; ouvem-se canções e há um colorido mágico no ar.
Pela primeira vez desde há muitos anos, o povo vê o seu cavaleiro abandonar os trajes de luto e vestir-se garbosamente. O Cavaleiro está belo; o seu cavalo é o mais altivo do reino, nunca até então montado, da sua cinta pende a mágica espada das mil gerações de reis que antes dele foram.

O Cavaleiro e a princesa casam.
Nessa noite o Cavaleiro tem um estranho sonho.
A princesa, acordada junto ao seu leito, observa-o agitado, pálido, desfigurado, e recora uma murmuração mágica da sua velha aia que exorcizava os seus sonhos.
As sombras adensam-se no quarto.
O Cavaleiro, sempre adormecido, começa a falar, enquanto a princesa, de olhos cerrados, segurando nas mãos um ramo de louro e um ramo de azevinho, prossegue a sua invocação misteriosa.
Eis o que disse o Cavaleiro:

- E continua dentro de mim aquele nevoeiro mágico de que te falei, aquela mistura fria de cores indecisas, irrequietas como águas lodosas de um fosso de castelo antigo...
Voam em torno do meu centro negras e sombrias asas de aves curvas e aduncas, crocitando cânticos feiticeiros de saudades dos mil futuros que me oferecem (presente envenenado entre todos...)


E a princesa tremia, o ramo de louro e o ramo de azevinho queimando-lhe as mãos brancas depressa tingidas de um fresco sangue rubro... e o Cavaleiro voltou a falar:

- Caminho de pálida areia cruamente batida pelo sol e pelos passos de silêncio de escamudos e húmidos lagartos ávidos de dor e sede...
Cactos e espinhos fazem sombras que se projectam ansiosas no azul encrespado do céu...


Lágrimas de prata corriam do rosto da princesa quase desfalecida, que se agarrava desesperadamente à melopeia feiticeira que lhe escorria dos lábios puros.

- Nuvens amontoam-se em feéricas tonalidades azuis e roxas, enovelando-se, rugindo ameaças num silêncio de chumbo apenas cortado pelos violinos que fantasmas invisíveis acariciam com as suas mões esburacadas.
Um poço negro negro...
A tua sombra, pouco distinta, destaca-se lentamente, demoradamente, ao som dos raios vermelhos do sol... estás aí ainda, não partiste, não abandonaste as altas paredes dos castelos onde me quis refugiare onde, perdido nas alturas entre garras de abutres e e soluços de corujas negras, me perdi de mim próprio e do meu ser...


A princesa tombou desfalecida no quarto, os cabelos de oiro amarfanhados. Ao fundo do quarto partiu-se de repente a corda duma harpa mágica, a harpa do Destino, oferta de casamento de um velho feiticeiro e bardo das montanhas do Norte.

- Estás ainda lá, sorrindo...
E permaneces fechada num manto sombrio de silêncio triste, acusador, suplicante de desejo e saudade, porventura...ah rainha destronada que me tiraste o meu verde reino encantado das mil noites de luar (nunca mais houve luar na minha terra...)
Feiticeira encantada que me perdeste por tuas próprias mãos de fada, pelo cintilar brumoso dos teus olhos de água mais cristalina que a neve eterna das montanhas do meu outro ser... porque esperas então para destruir o que começaste, para dominar o monstro frio que despertaste com a tua flauta silenciosa, com a tua teia tão linda? Quando me reencontras? Quando me deixarás perder-te para para te reencontrar como nunca foste, minha querida ninfa assustada das florestas de um magro conto de Natal...


O Cavaleiro calou-se, mergulhado num escuro sono profundo. A seus pés jazia o vulto de luz da princesa, cujas lágrimas cristalizavam em preciosos diamantes, cujas gotas de sangue rolavam como espantosos rubis, cujas gotas de suor a cobriam de pérolas como nunca se tinham visto outras... O soalho era velho e gasto, de madeira. No chão poeirento apenas se via o brilho, rapidamente embaciado e empoeirado, das jóias que da princesa brotavam.
Partiu-se então a última corda da harpa, num lamento triste que ecoou pelos telhados adormecidos do reino, se repercutiu nos raios pálidos do luar que devagar se apagou.

No dia seguinte o Cavaleiro acorda, com uma memória confusa do que se passara. Estarrecido, vê o vulto tombado da princesa. Aproxima-se devagar, a medo. Quando lhe vai pegar, sente-se mergulhado num turbilhão de luz e cor. Girando, girando sempre, a sua alma debate-se prisioneira de encantamentos irreais e densos. Ao fundo, lá longe, parece-lhe ter uma visão. Uma mulher vestida de fogo e sombras, sentada num palácio de paredes de fino gelo azul e verde; à sua volta ecoam músicas e pássaros de jade e marfim. Ao seu ombro, um negro pássaro que ora se parece uma águia ora um sinistro e ensanguentado abutre.
A mulher sorri-lhe e chama-o com uma voz feita de tempestades marinhas, de algas e estrelas, de espaços infinitos e modulações impossíveis. Fora do estranho nevoeiro de cores vivas em que o Cavaleiro mergulhou, os criados que acorrem contemplam, imóveis, o corpo baço da princesa morta.

O Cavaleiro volta lentamente a si. Os criados estão ainda paralisados, numa imobilidade angustiante e vazia. Debruçando-se lentamente sobre a princesa, vê nela apenas uma mulher simples e vulgar, indigna do seu amor. A sua alma está sedenta dos abismos e das vertigens, das tempestades e da loucuras que vislumbrou no turbilhão de nevoeiro.
O Cavaleiro tem de encontrar, seja como for, essa mulher altiva que o chamou.

Ao levantar-se, disposto a partir sem demora, o Cavaleiro tropeça em qualquer coisa. Ao baixar-se, vê uma magnífica taça transbordante de verde, feita de um cristal mais puro do que a neve, mais puro do que os raios de luar, mais puro que as mil melodias das estrelas... São os dois ramos que a princesa segurara nas mãos, e que apertara tão convulsivamente na ânsia de não quebrar a acadeia mágica de invocações que despertara, que se fundiram e transformaram em taça de luz.
O Cavaleiro segura a taça nas mãos e parte.

O caminho que segue, desconhecido de todos, vai ficando cada vez mais triste, sombrio e desolado.
Devagar ouvem-se cânticos sinistros de ameaça e desolação.
O Cavaleiro avança, devagar, com a impressão de que alguém caminha a seu lado numa montada invisível.

Cai a noite, ume noite espessa e opaca, repentina e sobrenatural.
O Cavaleiro, de olhos fixos nas trevas, aguarda, imóvel. Apenas se ouve a respiração e o bafo do seu cavalo.

A sua sombra, pouco distinta, destacou-se lentamente, demoradamente, ao som dos primeiros raios rubros do sol...
E disse de repente o Cavaleiro:
- Estás aí ainda, não partiste, não abandonaste as altas paredes de gelo dos teus castelos de loucura; ah rainha destronada que me tiraste os encantos do meu verde reino de oiro, das mil noites de luar (nunca mais houve luar na minha terra!)

E tambores de agonia rufaram sinistramente, acompanhados de doidos sinos impossíveis, orquestrados por asas aduncas e esfarrapadas de negros abutres que rondaram os sete céus. Os penhascos firmaram-se, num silêncio de rocha.
Mas o Cavaleiro ergueu diante de si a mágica taça de cristal, que para ele cantou melodias de saudade e abandono, puras e cristalinas como a imagem do doce olhar puro da princesa que pela primeira vez ele recordou.
Os Dragões avançaram, um a um, acusadores:
- Traidor!
- Indigno!
- Nada és! Nem sombra nem fantasma!
- Vela esfarrapada, veleiro naufragado em mares de sangue e tormenta...
O céu acompanhou o transformar das almas, ficou roxo e rosa, nuvens tomaram a forma de altos castelos e os abutres rodopiaram enraivecidos, crocitantes e loucos...

As florestas gritaram coros de suplício, canções indizíveis de tortura...

E as flautas silenciosas da mágica taça de cristal fizeram de novo ouvir o seu silêncio mágico e triste, os lamentos dos regatos da montanha, as orações pálidas das alturas e as vertigens da inocência perdida...

A mão descarnada do Cavaleiro tremeu, mas pouco. E a taça brilhava, brilhava mais...

Então, por fim, chegou a hoste esburacada dos fantasmas de prata... Empunhavam derrotados estandartes, todos os estandartes que espadas impiedosas tinham feito conhecer o pó e o barro das planícies... E em sua volta rugiam veladas sombras cinzentas, e os seus cavalos baios empinavam e resfolegavam, impotentes, eles próprios perdidos e esmagados pelos furacões da densa calmaria cinzenta que gradualmente se abatia.

As ninfas ajudaram-no, firmes.

Trombetas evocaram espaços e estrelas distantes e perdidas, cometas solitários, nebulosas de luz, e o vazio negro negro do espaço...
O Cavaleiro avançou um passo e outro e outro.
As nuvens afastaream-se para o deixar passar, anunciado por uma sombra gigantesca de corvo agudo e magro, cujas penas negras tombavam do ar... O silêncio desfez-se em estilhaços de vidro musical e tenebroso, de espessos fumos entrelaçados nos pálidos raiso de luar roubados do seu reino...
As folhas das árvores estremeceram longamente, tilintando de dor...
Ele avançou, sem ainda se mostrar completamente, apenas anunciado, festejado por presenças rastejantes e abomináveis, fugazes coloridos negros, gaivotas sombrias pairando no alto...

Pedras tumulares ergueram-se... os mármores embranqueceram e as sombras alimentaram-se das rígidas vibrações do ar...

Do Cavaleiro só restava a silhueta imóvel, de lança quebrada sempre erguida, rodeado de mágicos torvelinhos onde mais forte que as maldições e as pragas rogadas era o vento frio, frio da saudade, que escorria da taça verde de cristal.

Imagens de companheiros e amigos há muito desaparecidos perfilaram-se em seu redor, sombria e fugitivamente...

Finalmente abrem-se as portas do castelo de gelo. Portas pesadas de carvalho druídico rangendo em correntes cobertas de húmidos limos...
A mulher esperava-o.

....................................

E o Cavaleiro falou, tremendo:
-Despertaste, sem eu saber, nevoeiros mágicos que eu julgava adormecidos, pousados nos fundos pantanosos da minha alma...
Que música tocaste tu, feiticeira, que flautas encantadas me fizeste escutar, que escuridão misteriosa lançaste sobre mim naquele dia?
Como destruiste as altas paredes dos castelos de nada em que me quis refugiar, e onde raios de luar por ti mandados desenharam loucos arabescos, as ondas feiticeiras dos teus cabelos tão negros...?
Abriste-me a alma diante de poços sem fundo, de abismos espelhados onde só vi uma caveira tresloucada que trazia o meu olhar...
E os teus pássaros negros que não me largam, aduncos e sibilinos, crocitando sinistramente para abafar os ecos dos puros sinos que eu sei que em ti se espelham e formam...
Ah feiticeira, não me percas por tuas mãos! Estilhaça já a tua pérfida bola de cristal, os teus velhos segredos e livros, os teus olhares de solidão e medo!
Ah fada fada que me tens perdido e encantado!
Porque me deixaste a balouçar perdido na noite, enforcado nos raios brancos da Lua, essa velha inimiga que eu nunca pude vencer completamente...?
Porque acordaste fantasmas que dormiam, que não me atormentavam há tanto, tanto tempo, desde que desci das alturas e vivi no pó da terra, na poeira das cidades e das sombras, dos pregões e das tabernas, dos portos de navios...
E tinhas que vir tu agora, sem saber (quem sabe?) lançar as mágicas palavras que desmoronaram as muralhas de lágrimas construídas pela minha alma ensanguentada... eu, que agora estou diante de ti, vazio, despido, abraseado nas chamas da tua morada e do teu fulvo coração...
Rainha da noite e das estrelas, devolve-me a paz morna das manhãs de sol, deixa-me reencontrar o ruído dos gestos e das companhias, não me lances de novo nos abismos das orquestras de solidão...

A mulher sorriu e o rosto dela tornou-se por um momento o rosto doce da princesa que fora sua mulher.
- Não compreendeste, desgraçado? O destino cumpriu-se, és livre e forte de novo. Ah, Rei, quanto tempo te esperámos, todo este tempo em que por fugir de ti próprio deixaste o mundo inteiro entregue ao caos e à desgraça!
Não me reconheces, e no entanto eu sou uma só!

E ao dizer isto surgiu de novo o rosto suave, banhado em lágrimas, da princesa.

1 Comments:

Blogger Daniela João said...

Desculpa a invasão … mas o texto está simplesmente maravilhoso

parabéns !!

7/5/08 10:16  

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