O meu encontro com o homem de azul foi muito breve, e por isso mesmo só mais tarde percebi que podia ter sido assustador. Era uma noite de chuva intensa, e eu voltava de Braga onde tinha ido como nesse tempo ia sempre. Foi uma época em que tinha um carro mas não tinha dinheiro, e por isso no regresso (morava então no Porto) em vez de usar a auto-estrada meti-me pelas antigas estradas e acabei por me perder. Chuva, vento, sombras de árvores enormes e uma estrada alcatroada que eu corria devagar e que suspeitava não ser a que me devia levar a casa.
De repente, os faróis iluminam o vulto de alguém a pé, no meio da estrada. Um homem alto, de costas, vestido talvez com um fato-macaco ou uma capa comprida azul-escura, caminhava mesmo à minha frente, como se não se importasse com a chuva e não se importasse comigo. A estrada era suficientemente larga para o ultrapassar, mas irritou-me que andasse assim no meio da estrada sem sequer olhar para trás. Tive tempo de reparar no cabelo muito branco e muito comprido que lhe caía pelos ombros. Tive tempo de reparar que a chuva enorme não o fazia curvar. Tive tempo de ver as suas passadas largas.
Eu fumo, e nesse tempo fumava mais. De modo que levava aberto o vidro da janela do lado direito, para que a chuva me não incomodasse. E quis olhar o homem de azul quando passei por ele - suficientemente devagar para saber que não era perigoso, suficientemente perto para lhe ensinar que os automóveis são os donos das estradas. E quando olhei pelo vidro não havia ninguém.
Estava ali a estrada, e estava ali a chuva toda. Estava eu e o meu carro e as árvores e o vento e a noite de andar perdido. Mas não estava lá o homem de azul. E não podia ser. Eu tinha-o visto de muito perto, já estava a três ou quatro metros dele quando fiz o carro curvar para o passar. E não havia sítio para onde pudesse ter ido. Parei o carro e quis convencer-me que o susto o tinha atirado para a valeta ou para os campos da margem. Mas não havia margem, e o susto começava a ser uma coisa minha. A estrada naquele sítio abria-se de um lado e outro para campos baixos vazios. Era como se um de nós afinal não existisse.
Ainda hoje não sei o que era o homem de azul. Não sei se há outras noites em que a chuva ou o céu ou outra coisa qualquer o façam andar por ali, com as suas passadas largas e com o seu cabelo branco comprido. Nem sequer sei onde o encontrei, porque de facto a estrada onde eu estava não era a estrada para o Porto. E não sei se ele me chegou a ver, ou até se foi ele que fez com que eu ali fosse. Talvez devesse convencer-me que não foi nada, ou que ele saltou para qualquer lado, ou que nos bares de Braga o álcool era mais forte nessa noite. Mas acabo sempre a pensar que afinal o fantasma das muralhas não tinha sido assim tão assustador.
14.5.04
O homem de azul
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