Primeira parte
Era uma vez uma menina que caminhava contra o vento.
Isto parece um princípio estranho para uma história, mas a história não é minha e não lhe posso mudar o princípio: e portanto era uma menina que, fosse onde fosse, caminhava contra o vento. Se eu tivesse também uma história, haveria príncipes no princípio dela. Os príncipes não devem estar no princípio? Mas eu não tenho uma história, e por isso estou a contar esta.
Era uma vez… Não, não era uma vez: era de uma vez por todas a menina mais linda de todas as histórias. Nem na minha história me atreveria a sonhar uma menina tão linda… Claro que os seus cabelos eram feitos de sol, o seu sorriso era feito de lua e os seus olhos eram feitos do mar e da sombra dos príncipes verdadeiros (os do princípio da minha história, se eu a tivesse…). Nem vale a pena falar disso, pois não? É por isso que ela tem esta história, e é talvez por isso que ela agora caminha contra o vento, esteja onde estiver.
(O quê? Andar para a frente? Eu sei, estava-me a perder, não estava? … Mas é difícil não nos perdermos com esta menina, a não ser que saibamos onde é que o vento se encontra. Porque aí a encontraremos também, sempre com o vento pela frente e sempre a andar contra ele. )
Um dia a menina saiu de casa muito cedo. Querem vir comigo vê-la? Olhem, aquela é a casa. A porta ainda está fechada. É realmente muito cedo, tão cedo que talvez tenhamos chegado antes de a história começar, a tempo de descobrirmos as coisas adormecidas.
Naquela casa o sol não entrava de manhã: o sol passava lá a noite, escondido. Já se esqueceram de que eram feitos os cabelos da menina que caminhava contra o vento?
Claro que na cidade todos sabiam — ou julgavam saber — que o sol se punha no mar, quando se cansava de brincar com as nuvens e com as crianças, ou quando se cansava de se esconder por trás da chuva. Mas o mar não era só o mar em frente à cidade: o mar era também os olhos dela…
E assim o sol fingia que passava a noite no mar lá do fundo, em frente à cidade, para que ninguém percebesse que a passava naquela casa, nos olhos feitos de mar da menina que também de sol era feita.
De modo que não era nunca o sol que a acordava: era a menina que o acordava a ele, quando o mar se abria com os seus olhos… A lua, que aproveitava para dar um passeio enquanto ela dormia, recolhia-se de mansinho no seu sorriso e o sol espreguiçava-se (era por isso que a menina tinha depois de se pentear) e tentava continuar a dormir… mas acabava por se levantar, porque tinha de se portar bem e ir acordar a cidade toda.
E ninguém dava por nada.
Mas um dia a menina acordou muito cedo, e pensou que o sol tinha direito a dormir mais um bocadinho. Levantou-se sem fazer barulho e olhou para o espelho: havia qualquer coisa de estranho, e demorou a perceber que era o seu sorriso que não estava no sítio do costume. E como poderia estar, se nesse momento andava pelo céu feito lua, a conversar com aqueles que, como eu, gostam de saber estas histórias?
A menina hesitou. Não estava habituada a não ter consigo o sorriso. Mas também não estava habituada a hesitar. E abriu a janela do quarto, como fazia todas as manhãs.
Do lado de fora estava tudo escuro: era noite, porque o sol continuava a dormir. E a menina nunca tinha visto a noite, nem a noite a tinha nunca visto a ela.
— Olá — disse a noite — Tu deves ser a menina que adormece o sol, e que liberta a lua. Eu sou a noite.
A menina quis sorrir, mas não conseguiu.
— Olá, noite — respondeu ela — Não sabia que existias. Vives há muito tempo na minha cidade?
— Já aqui vivia antes de haver tempo — respondeu a noite, e a noite pôde sorrir porque tinha a lua consigo — Antes de os teus olhos terem inventado o mar, e de os teus cabelos terem inventado o sol.
A noite ia acrescentar "e antes de o teu sorriso ter inventado a lua", mas calou-se a tempo porque percebeu que a menina não sabia da lua, e não a queria perder. E a noite tinha medo do sol.
— Tu és a menina de todas as histórias, mesmo daquela que ainda não começou. — disse então a noite — Gosto de ti. Queres vir comigo?
E a noite pensou que nunca antes tinha dito aquilo, mas que já algumas vezes o tinha ouvido. São coisas que se dizem à noite, não é verdade?
A menina adorava dar passeios, e nem se lembrou que não tinha acordado o sol. Se pudesse ver os seus próprios olhos tinha sentido logo que mais uma vez alguma coisa não ia bem: o mar estava a ficar agitado, com medo de a ver sair assim. Mas como poderia ela ver os seus olhos?
E no mar também os pescadores sentiam que alguma coisa não ia bem.
— Passa-se qualquer coisa de estranho — diziam os pescadores uns aos outros — O mar está a ficar agitado, mas a lua continua a sorrir. E a noite está mais escura, como se estendesse os seus braços, e o sol não se levanta para acordar a cidade.
E era verdade que a noite estendia os braços.
Ah, então sempre chegámos antes do princípio da história. Ainda bem. Reparem na menina enquanto sai de casa ao encontro da noite que lhe estende os braços e lhe sorri, com o sorriso da lua roubada: é verdade que ainda não caminha contra o vento… Vai muito direita, com os olhos muito abertos a ver o escuro pela primeira vez… E todos nós estremecemos, nós os que costumamos ficar à conversa com a lua, os que não temos uma história como esta e portanto a contamos ou a escutamos.
(— Que vens fazer entre nós, menina dos cabelos de sol e dos olhos da cor dos príncipes verdadeiros? Não queiras saber o que se esconde no escuro, não te entregues nos braços da noite, não ouças as suas histórias!…)
Ah, lá estou eu a perder-me outra vez… Mas também a menina depressa se vai perder, porque a noite é ciumenta e não quer que ela volte para casa a acordar o sol e a sorrir…
— Anda por aqui — dizia-lhe a noite — tenho tanta coisa para te mostrar… Olha, aqui é a praça da menina dos fósforos…
E a noite contou-lhe a história da menina dos fósforos, enquanto lhe pegava na mão.
— Olha, aqui é a praça da estátua por quem a andorinha se enamorou… Olha, a sereiazinha que não pôde regressar ao mar… Olha, o rapazito que procura o palácio da rainha do Inverno…
E a noite ia-lhe contando a história da estátua, a da sereiazinha e a da rainha do Inverno.
— Não sei o que sinto com as tuas histórias — respondia a menina — Não sabia que havia tanta coisa na noite, enquanto o sol dormia em mim. Noite, mostra-me tudo!
E a noite estava contente, porque a menina já se tinha esquecido do seu sorriso.
— Era uma vez, aqui nesta praça, uma mulher cujo filho estava doente… Era uma vez, além, o castelo da princesa Desalento… Anda por aqui, pela rua das promessas esquecidas… Vês, a praça dos sonhos interditos? … E além, a alameda da saudade, encostada ao jardim de chorar…
A menina ia andando, muito calada. Mas não se sentia a caminhar; sentia que eram as coisas e os sítios que iam passando por si. Também já não ia muito direita, nem com os olhos muito abertos: andava devagar e hesitava, e às vezes fechava os olhos como se já não quisesse ver mais coisas. E de cada vez que passava por uma história por ela passavam também, um a um, os filhos da noite que a vinham ver e que dançavam à sua roda antes de desaparecer outra vez na escuridão.
Passou o flautista de Hamelin, com as suas pernas muito altas e o seu chapéu amachucado; passaram os lobos cinzentos, que traziam consigo o lamento verde das florestas e o lamento turvo dos rios; passou o fantasma do rei, e passou o fantasma de Shakespeare; passaram os namorados e os mendigos, o gnomo que vivia na torre da Igreja e a feiticeira que não vivia há trezentos anos; passou o poeta que tinha fome, e os ratos que eram os únicos amigos do poeta; todos eles, e muitos outros, passaram pela menina e dançaram à sua roda sem lhe dizer uma palavra.
Talvez eles estivessem a sonhar, porque não a olhavam, ou talvez fosse ela que os sonhasse, porque lhes não conseguia tocar: vinham de todos os lados, dançavam brevemente enquanto as histórias da noite se desfaziam em músicas tristes, e recuavam para a escuridão como se sentissem que tinham ido longe demais; se a menina lhes estendia os braços dançavam como se se esquivassem e nem uma vez as suas mãos se tocaram, nem mesmo quando o que passou em último lugar (era um rapazito com uma asa de cisne no lugar do braço direito) esboçou o gesto de a levantar no ar e hesitou antes de recuar, como se estivesse preso ao seu coração. E cada um deixou nela, devagarinho, um pouco da sua sombra, e as sombras foram ocupando o lugar que tinha sido o do seu sorriso.
A menina ia andando, andando sempre, sem saber por onde e sempre pela mão da noite que a arrastava cada vez mais depressa e cada vez mais longe. E o mar que costumavam ser os seus olhos tinha agora ondas tão altas que algumas salpicaram o seu rosto: a menina chorava, e as suas lágrimas eram como as primeiras lágrimas do mundo.
— Noite, noite — soluçava ela — Que me aconteceu? Estendeste os braços como se me acolhesses, e eu abracei coisas que não queria ter visto e que me foram deixando vazia em vez de me encher… O mar já não cabe nos meus olhos e há sombras estranhas em mim, no lugar onde devia estar não me lembro o quê…
— Tem paciência — respondeu a noite.
A noite estava segura da sua vitória, porque tinha a menina na mão. E foi então que eu reparei nela.
Eu estava, como de costume, a conversar com a lua.
—Vento que não tens história —dizia-me a lua —explica-me porque não tens história, tu que andas por todo o lado…
— Como posso ter história, se estou sempre de passagem? — respondia eu — Em algumas histórias também estou numa passagem, mas nunca no princípio nem no fim… Às vezes entro numa, só para que as pessoas digam "e então o vento soprou" ou "o vento levou consigo essa canção", e logo mudem de assunto.
— É estranho — respondia-me a lua — Porque não há história onde eu não esteja desde o princípio, pelo menos no coração de quem a conta. Por exemplo, nesta história eu sou o sorriso da menina…
Eu tive um sobressalto.
— Lua, lua! — gritei — Como podes ser nesta história o sorriso da menina se estamos aqui os dois, sem saber dela, a conversar? Deixaste a menina ir passear com a noite, e não entraste nela de mansinho para ela voltar a sorrir!
A lua estava tão aflita que se eclipsou, como faz sempre que não quer que ninguém a veja.
— Vento, vento! — gritava ela também — Depressa, corre pelo mundo e encontra-me a menina que foi sem mim pela mão da noite. Eu vou perguntar ao mar se sabe dela…
E a lua lá foi ter com o mar.
— Cada vez mais estranho — repetiam os pescadores uns aos outros — Nunca vimos um luar assim. O mar continua agitado, como se quisesse combater a noite, e o luar espalha-se como se a lua andasse à procura de alguém. Ao menos se o sol despertasse…
E era verdade que o luar se espalhava. Mas fui eu que encontrei a menina.
A noite tinha-a levado para muito longe. Saíram da cidade e passaram montanhas e vales. Andaram por campos cheios de corvos onde tinha havido uma batalha e andaram por fragas onde enforcados balouçavam. Viram castelos a arder, cidades submersas e casas visitadas pela desgraça. Ouviram o choro das crianças que perderam a mãe e o silêncio das mães que perderam os filhos. Subiram o rio do esquecimento e desceram ao lago das almas cansadas. A menina continuava a seguir a noite, mas já não ia muito direita nem levava já os olhos muito abertos: caminhava curvada como se levasse às costas todos os pesos do mundo. E finalmente, numa montanha mais negra que a própria noite, chegaram a um castelo de altas torres, o castelo de Nãosentir.
Segunda Parte
Estou eu então a contar a história da menina que caminhava contra o vento… E estou triste porque já não lhe posso mudar o princípio, não posso dar príncipes ao princípio dela; mas muito mais triste estava a menina quando entrou, pela mão da noite, no alto castelo de Nãosentir.
Eu não sabia que a menina estava lá, e que adormecera embalada pela noite. Só sabia que não podia desistir dela, para que a lua voltasse.
Fui encontrar primeiro o flautista de Hamelin, sentado aos pés da estátua da grande praça, com as pernas altas a balouçar. A estátua era de uma mulher descalça; não tinha cabeça, e dos seus ombros nasciam duas asas grandes como velas de um navio. A sua mão direita apontava em frente, como se quisesse indicar um caminho, mas a mão esquerda estava erguida, como se quisesse deter alguém. E o flautista segurava a sua flauta com o olhar dos que se perderam nos oceanos do tempo.
— Flautista, flautista, filho da noite — disse-lhe eu, fazendo as folhas caídas dançar em redemoinho à sua volta — viste passar a menina que adormece o sol e que liberta a lua?
O flautista não se virou para mim nem deu mostras de ter ouvido; curvou-se sobre si mesmo e soprou a flauta como se a beijasse, e eu fiz a sua música triste erguer-se pelos ares até as estrelas dançarem.
— Vento que não tens história — respondeu ele por fim — não queiras entrar nesta história, tu que tens estado sempre de passagem: limita-te a brincar com as folhas desta praça, e com a música da minha flauta, até que alguém mude de assunto. Sim, eu vi passar a menina, e vi a noite que a chamava. Dancei à roda delas, e o silêncio mora agora onde morava o seu sorriso.
E era estranho, porque a música continuou mesmo enquanto o flautista falava; depois ergueu-se nas suas pernas altas e afastou os braços como se quisesse dançar outra vez, enquanto a sua sombra magra afagava demoradamente os ombros da mulher alada.
— Quando ela tentar sorrir — prosseguiu ele — recordará o medo das crianças que a minha flauta encantou. Mais vale que continue a dormir; mas talvez os lobos cinzentos saibam mais, se te atreveres…
E eu deixei o flautista entregue à música triste e à paixão da sua flauta encantada, deixei-o com as suas pernas altas e os seus braços afastados na praça onde a mulher estendia as suas asas grandes como velas de um navio: deixei as folhas caídas descansar outra vez e fui ao encontro dos lobos cinzentos. Encontrei-os já fora da cidade, junto a uma fraga onde balouçavam enforcados.
— Lobos, lobos, filhos da noite — soprei eu — falai-me da menina que já não pode sorrir, mas que há-de recordar o medo das crianças…
Os lobos estremeceram, e os seus vultos baços recortaram-se no cimo da fraga que um luar imenso iluminava e despia. Depois ergueram o focinho para o céu, e eu fiz os seus uivos vibrar pelos ares até as estrelas tremerem.
— Vento que não tens história e que não sabes se vais entrar nesta — responderam eles por fim — Não podes mudar o princípio de uma história que ainda não começou: limita-te a conversar com a lua, e a fazer redemoinhar as folhas mortas em torno de gente como o flautista. Sim, nós vimos a menina sair da cidade e vimos a noite que a conduzia. Dançámos à sua roda, e a nossa raiva mora agora onde morava a sua inocência.
E os lobos ergueram-se nas suas patas magras e espetaram as orelhas como se quisessem escutar todo o lamento da criação.
— Quando ela tiver esperança — prosseguiram então — recordará o desespero dos homens a quem levámos os últimos rebanhos. Mais vale que continue a dormir; mas talvez o fantasma do rei saiba mais, se te atreveres…
E eu deixei os lobos cinzentos entregues às estrelas e à sua paixão pela noite, deixei-os a guardar os sítios baços do mundo e os instantes frios do tempo, e fui ao encontro dos fantasmas. Entrei pela parte velha da cidade, varri as ruas desertas onde um dia as histórias foram vivas, corri a muralha arruinada até chegar às pedras derrubadas que tinham sido um palácio. E aí encontrei o fantasma do rei, que jogava xadrez com o fantasma de Shakespeare.
— Sombras do rei dos homens e do rei dos poetas, filhos da noite — soprei eu mais uma vez — Falai-me da menina que ainda não tem esperança, mas que pode recordar o desespero dos pastores…
Os dois fantasmas interromperam o jogo e rodaram lentamente, e eu fiz os seus vultos alargarem-se no ar até se confundirem com as nuvens.
— Vento que não tinhas história e que não sabias que história era esta — respondeu por fim o fantasma do rei, que era o mais frio — Volta depressa para trás, agora que lhe mudaste o princípio…
— Agora que puseste príncipes no princípio dela; — continuou o fantasma de Shakespeare, que era o mais triste — tonto que nem reparaste que mudaste de história, que esta história há-de ser a da menina que caminhava contra o vento, e que tu hás-de ser o vento contra quem ela caminhou…
As grandes pedras que tinham sido um palácio brilhavam ao luar à minha volta como se recordassem uma última festa, e as pequenas peças do xadrez agitavam-se como se os cavaleiros e as damas tivessem saudades de outras vidas. E eu fiz o mundo parar, fiz com que nem uma folha tremesse até que o céu nos ouvisse.
— Sim, nós vimos a menina entrar no alto castelo de Nãosentir — disse o fantasma do rei — e vimos a noite que a hospedava.
E o fantasma do rei moveu uma torre negra no seu tabuleiro de mármore.
— Dançámos à roda delas — sussurrou o fantasma de Shakespeare, sem olhar para o jogo — e o nosso passado mora agora onde morava o seu destino.
E o fantasma de Shakespeare, lentamente, moveu a mão descarnada e empurrou a dama branca para a casa vazia em frente à torre.
Os dois fantasmas, sempre sem olhar para o jogo, aproximaram-se um do outro como dois amantes que se quisessem fundir num só. E eu fiz as nuvens chover.
— Quando ela te reconhecer — murmuraram por fim os dois fantasmas, como se tivessem apenas uma voz — recordará a eterna sina dos reis, que é a solidão, e a eterna sina dos poetas, que é a loucura. Mais valera que soubesse dormir; mas talvez tu venhas a saber mais, se te atreveres…
E eu deixei os dois fantasmas entregues ao seu interminável jogo de xadrez e parti ao encontro da minha história.
Terceira Parte
Sim, eu sou o vento, e o vento nunca teve história… Mas agora não tenho tempo para conversar com a lua, para fazer dançar as folhas caídas em torno das estátuas de bronze da cidade de pedra em frente ao mar. Hoje eu não sou de mim. Já conhecem a história: ali estão os pescadores nos seus barcos, embalados pelas ondas que choram cada vez mais alto, à espera de um sinal do sol que ainda não voltou… ali está o lamento da flauta encantada de Hamelin, enquanto o flautista não desiste de dar vida ao coração de bronze da mulher de asas grandes como velas de navio… ali estão as pedras derrubadas que nunca mais serão o palácio, e a casa fechada onde a menina acolhia o sol todas as noites enquanto a história não tinha os príncipes que eu lhe quis dar. Estão prontos outra vez? Venham então comigo, venham nas asas do vento até ao alto castelo de Nãosentir, e agora é tarde para mudar de assunto porque esta afinal é a minha história e é esta a história que eu vou contar.
A menina dormia no castelo de Nãosentir, e a noite velava o seu sono não fosse ela acordar e inventar o sol. E portanto todas as portas estavam fechadas, e as torres negras não me queriam deixar passar. E eu parei junto à grande porta de bronze e mais uma vez fiz as nuvens chover.
—Dorme, meu amor —sussurrava a noite baixinho —Dorme. Não queiras ver o que se esconde na noite, não ouças as minhas histórias. Dorme para sempre como se o mar fosse um espelho de prata e os meus filhos dançassem contigo a primeira música do mundo.
—A menina dos fósforos por quem a andorinha se enamorou… — disse a menina sem acordar.
—Pronto — disse-lhe a noite — mas a menina dos fósforos já adormeceu, e a andorinha voou para uma outra história. Dorme.
— A praça dos sonhos interditos, onde balançam enforcados — soluçou a menina sem acordar — e os lobos que tinham fome e as asas grandes que eram as únicas amigas do poeta…
—Já não há lobos, meu amor, e os poetas foram-se embora — respondia a noite — agora podes dormir para sempre como os amantes que falaram a uma só voz. Dorme.
E a noite beijou as mãos da menina adormecida e sentiu nelas o sangue dos príncipes verdadeiros. Porque a noite não a queria perder.
— Já não há poetas, e já não há histórias — murmurava a noite como se cantasse baixinho — já não há ninguém para acordar o sol e libertar a lua, e ninguém para mudar de assunto. Dorme até que a noite se acabe como se acabaram os príncipes verdadeiros, dorme para que ninguém volte a fazer as nuvens chover ou a abalar as estrelas com uma flauta encantada. Finalmente chegaste a Nãosentir: fica comigo até ao fim do mundo.
Cada palavra da noite empurrava a menina para um sono mais fundo, onde todas as histórias já tinham chegado ao fim. E eu queria forçar as pedras negras do castelo, soprar até derrubar os estandartes orgulhosos e arrancar pela raiz as árvores que cresciam da terra desde a fundação das coisas. É verdade que nada podia contra Nãosentir. Mas foi então que o sol me chamou.
O sol ficara adormecido na casa fechada quando a menina saiu. Não era capaz de acordar sozinho, porque desde sempre acordara pelos olhos dela, quando o mar se abria em cada manhã que era a primeira. E o sol gostava de dormir.
Eu precisava do sol para derrubar o alto castelo. Mas como o poderia acordar? Se eu tivesse braços para lhe tocar ou olhos para o fitar, mas era apenas o vento sem história e sem tempo para perder. E então lembrei-me de outras histórias.
— Há apenas uma condição —dissera alguém uma vez — não olhes para mim. Hei-de estar contigo todas as noites, hei-de-te amar até ao fim do mundo. Mas não olhes para mim, não queiras ver senão o que sentires quando as tuas mãos me beijarem. Se trouxeres a luz, trarás com ela a solidão que havia antes de ti. Se me iluminares apenas darás vida às minhas sombras. Se levantares a lâmpada de azeite, a gota ardente deixará no meu rosto a marca eterna de ter sido teu. Não olhes para mim enquanto o amor for esta história.
— Bela — dissera alguém uma vez — Não posso esperar que gostes de mim. Mas também não posso esperar por mais ninguém. Todas as noites virei ter contigo e te direi as palavras sem esperança: "casa comigo e liberta-me deste sonho de estar vivo". E todas as noites me olharás e me responderás as palavras do desespero: "Monstro de coração tão simples, hoje não quero casar contigo. Porque então teria de te olhar, e teria de saber a tua história. Mais vale que continuemos presos e que não digas mais nada enquanto esperar for esta história".
— Sonhei-te o labirinto — dissera alguém uma vez — e o anjo alado que dele me liberta. Sonhei-te a espada e a lei. Sonhei-te árctico navio, e eu a passagem do noroeste. Sonhei-te lago escuro da montanha, e eu a bruma que o precede. Sonhei-te alto castelo, e eu o canto rude dos seus homens de armas. Sonhei-te o fogo e o mar, sonhei-te a mão que desenhasse em mim a aurora. Não me deixes acordar enquanto o frio for esta história.
Então compreendi que só a noite era capaz de amor eterno. E quis fugir de Nãosentir enquanto o meu coração se partia. Mas nesse momento a noite falou comigo.
— Vento que chegaste a Nãosentir - disse a noite - e que vieste buscar a menina para que ela volte a ser a tua história: olha bem para mim, e vê agora as coisas de que sou feita. Porque é aqui que as histórias todas têm de começar. Este é o meu castelo, e eu sou a noite do verdadeiro princípio. E nenhuma menina acordaria o Sol se não tivéssemos chegado aqui, e se não me disseres agora as palavras feitas de sangue.
- Noite - disse-lhe eu - Agora sei quem és, e sei também que esta afinal é a nossa história. Eu sou o vento inconstante, mas sou também o príncipe verdadeiro. E sou a menina que caminhava contra o vento, e a lua que era afinal o sorriso dela. São estranhas as pedras de Nãosentir, e estranhos são os teus filhos baços. Mas as palavras que fomos fazendo são afinal os ossos do mundo. E as lágrimas são coisas de fazer andar. Não voltarei a estar só de passagem, e assim não me prenderei mais a sítio nenhum. Tens razão. Já não há poetas, e as histórias foram-se embora. Dos mundos em que quis viver restam as praças feitas de folhas mortas, os lobos que guardam o amor e o jogo do xadrez interminável. E é de Nãosentir que são feitas as coisas que sinto mais.
- Ela é a menina de todas as histórias - respondeu a noite - mas sou eu quem sabe estender os braços. E é por mim que a encontrarás. Diz-me agora, vento feito de coisas tão largas, para onde irá ela se eu ta entregar?
- Ela é a menina feita das cores de que a noite nos veste - respondi eu - e por isso nem na minha história haveria uma menina tão linda. Se ma entregares ela caminhará neste mundo feito de histórias, e é contra o vento que caminham os que chegam a todos os sítios. O sol há-de continuar a acordar, para que as crianças saibam que alguém se esconde atrás das nuvens maiores. Mas não é disso que se trata.
- Não - disse a noite devagar - Não é disso que se trata.
E assim a história pôde começar.
FIM
20.5.04
A história da menina que caminhava contra o vento e do vento que não tinha história
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