O meu lugar do início é um sítio em Lisboa feito de arcos de pedra e feito da noite antiquíssima. É também o primeiro lugar onde eu posso estar simplesmente a beber ou a ouvir música, a ver os arcos de pedra ou a pensar nas coisas que ainda não disse aqui. Gosto mais dele quando não tem quase ninguém.
Mas a vantagem do lugar do início é que não tem quase ninguém mesmo quando afinal tem muita gente. Porque os outros são também feitos de noite, ou são pelo menos feitos dos mundos que a noite faz. E portanto eu posso estar o tempo todo só com as coisas que para lá levei.
Há principalmente um canto de que gosto muito, onde me posso sentar como se estivesse sentado à beira-mar. As luzes que ali estão não chegam ali tão fortes, e a música soa mais porque alguém deixou ali uma coluna como se estivesse perdida. E as pessoas ficam quase todas de costas e por isso ficam quase todas melhor.
E no entanto há uma coisa de que não gosto no meu lugar do início. A culpa não é dele, nem das pessoas que fizeram há tanto tempo os arcos de pedra nem daquelas que agora os fizeram nascer outra vez. A culpa é minha, que não aprendi a gostar de escravos contentes. Vou explicar.
Sempre gostei da noite, mesmo quando em criança tinha medo que no meu quarto entrasse um tigre (era a única coisa de que tinha medo, e por isso dormia com a porta fechada e a janela aberta, porque o tigre pela janela não sabia entrar). E sempre gostei de música, porque a música é a forma do tempo e o tempo é maior quando a noite nos pára. Mas sempre pensei que a noite é diferente das trevas, e sempre achei que as trevas são feitas de não querer ver (o dia, esse, é só um lugar de passagem como uma estação de comboios ou uma ponte na ribeira negra: uma coisa de atravessar). E se a noite é feita de abrir e de respirar e por isso nela somos feito de dança e de silêncio, as trevas são tudo o que nos fecha e sufoca e traz a luz mentirosa.
Eu sei que há pessoas que gostam do dia. De algumas delas eu gosto também, porque são aquelas a quem as trevas nunca tocaram. Mas são raras essas. As pessoas que gostam do dia são quase todas as que escolhem os olhos fechados. E por isso quando saem à noite não é pela noite que saem mas apesar dela, e procuram sítios feitos de luz e mentira. No fundo são também coisas de atravessar, e por isso nem sabem que as trevas existem. E é isso que as trevas querem ouvir.
Há muitos, muitos anos atrás, essas pessoas gostavem de uma música que então se chamava disco. Depois gostaram de uma coisa que finge que é música e que não sei que nome tem. Tecno, penso eu, mas com as trevas não falo. Essas músicas são os assassinos da noite.
Eu posso perceber que se goste de fado ou de jazz, de Beethoven ou de Tindersticks, de Jacques Brel ou de Therion. São caminhos diferentes nos quais a noite pode ser andada. E há noites em que sou mais feito de Nick Cave do que de Bauhaus, ou mais de Type-O Negative do que de Pixies; e também há em mim noites de calar e ainda outro dia descobri (também no meu lugar do início) que os Sétima Legião colheram a rosa vermelha que o Zeca Afonso uma vez plantou.
Os mundos são muito grandes, e a noite é sempre o mundo maior. Mas não entendo uma música que não é música mas o inverso de tudo o que a música pode ser (eu sei que há outras coisas que andam invertidas, e para mim é pena que andem. As cruzes, por exemplo. Mas não é disso que se trata, porque a cruz invertida diz a verdade sobre a mentira, e do que eu não gosto é da mentira sobre a verdade. Um satânico com uma cruz invertida é para mim um bom satânico, mas um padre com uma cabeça de bode invertida seria para mim um mau padre. Chaque chose a sa place.)
O Matrix, por exemplo, pode ser um filme de que se goste mais ou um filme que não esteja nas nossas preferências. Mas não entendo que alguém retire do Matrix que havia um sítio grande feito de tubos e de amas metálicas. Mesmo que me diga que tem preguiça de ir sozinho em busca de comida. E o tecno que passa por música é a canção de embalar das amas metálicas e não é mais do que isso.
Cuidado com os escravos contentes. São eles que justificam os seus senhores.
21.5.04
O lugar do início (III): coisas dos arcos de pedra
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