28.11.05

"... qualquer coisa de pedras brancas..."

Cada vez mais leio só as coisas que se escreveram até aos anos da minha infância, como se o que veio depois me não tocasse já. Agora foi o Urbano Tavares Rodrigues, Estrada de morrer. Não gosto muito dele. Não o conhecia bem. É raro gostar de contos. E não gosto do "realismo" nem do "romance social". A burguesia é um lugar que me não interessa conhecer, tal como a improvável República Dominicana ou a sombria Las Vegas. Antes que digam que é um preconceito contra o Partido, gostei muito do Até Amanhã, Camaradas (não vi o filme) e chorei com os Esteiros. Não é do Partido que eu não gosto, é mesmo da burguesia. E de um olhar feio que se detém e compraz na fealdade. Abro à sorte a Estrada: "- Deixa lá, a gaja é xarope" (página 47), "Pois é, é uma boa merda tudo isto! Enterram-nos na merda para nos glorificarem mais tarde" (página 106), "Quando o Sortes Pereira despiu as belas calças flexíveis de fibra de alumínio, as nossas colegas sorriram" (página 62). Devo ter lido outras coisas, mas já não me lembro. Coitado do Sortes Pereira, coitado do Urbano. Acho que ainda vive, não sei.

E no entanto... ah, conhecem a história da Bíblia, se houver um único justo na cidade, Deus (o terrível e o zangado, o Jeová do Judeus) terá pena e poupará a cidade inteira? Um dia eu conto. Uma frase pode ser o único justo, e aqui assim foi também. Escutem.

"... nas mãos imóveis qualquer coisa de pedras brancas começando a arder". Sim, nas mãos imóveis dela (ela, claro, não se vê logo que é de uma menina que se está a falar?), nas mãos imóveis pedras brancas começando, e quem ardia eram afinal os olhos dele, os meus olhos. Tantas vezes assim foi. Coitadas das mãos quietas, fechadas no livro feio. Coitada da chama de pedra que não chegou a fazer-se dança. E as veias, as veias frágeis. Sim, o branco quando quer sabe ser a cor mais terrível.

22.11.05

O Mal

Deixei de saber escrever. Deus o deu, Deus o tirou. E no entanto continuo a recordar as fontes.

11.11.05

Romance de capa e espada



Seguia o seu caminho o cavaleiro, como sempre os cavaleiros fazem. Um cavaleiro-soldado, ao serviço do Império e das armas do Império. Talvez fosse um dia de Inverno esse onze de Novembro, talvez passagem estreita de montanha, não sabemos. Tenho quase a certeza de que não gostava de falar, que seguia atento ao cavalo e às ordens do Império para esse dia e aos soldados que acompanhava e talvez comandasse. Tenho quase a certeza de que era o céu feito da neve tão branca.

O homem saltou de trás de uma árvore, digo eu, e o cavalo espetou as orelhas. Digo eu, porque tentei imaginar um vulto quieto ao fundo da estrada e não consegui. Saltou, ou ficou quieto, e de qualquer modo quietos eram os seus olhos, quieto foi o gesto com que fez o cavaleiro saber que tinha fome e frio e talvez andasse perdido. Calados os dois, a neve. O cavaleiro olhou-o com curiosidade primeiro, com mais atenção a seguir, e era preciso conhecer muito bem a sua expressão altiva para adivinhar que reconhecera o homem aos seus pés: quando tens frio és igual a mim.

A espada romana brilhou um momento no ar, mas não era dia de guerra e de vitória do Império. Brilhou sim, e rasgou a capa vermelha que cobria o cavaleiro (El Greco imaginou-a verde) em duas partes iguais: fica com isto, murmurou a espada, é tudo o que te podemos dar.

Seguia o seu caminho o cavaleiro ("segues sem capa no ombro / com o pouco que te tapa...", terá Pessoa sabido desta história, ele que tantas coisas sabia?) seguia sim, e era o frio por fora e o fogo por dentro que o começava a arder em fogo inextinguível. Ao fundo um homem (agora sim, vejo-o parado e a neve, a neve), mancha vermelha, meia-capa enrolada ombros tão magros.

E nessa noite o cavaleiro sonhou, e sonhou com o deus vivo embrulhado em meia-capa vermelha e viu o olhar quieto do deus vivo e ouviu ainda tenho fome, sabes? vens? E Roma perdeu um cavaleiro e ganhámos nós o São Martinho e por isso dizem que neste dia faz sempre sol como fez hoje sol em Lisboa. Verão de S. Martinho, e verão que S. Martinho tinha razão em ter reconhecido o outro, quando tens frio és tão igual, tão perto.

Meia capa, sabes? É que Roma pagava metade das armas aos seus soldados, a outra metade era paga com o seu próprio bolso. Sim, se nem tudo nos pertence metade é tudo o que podemos dar.

[pintura: S. Martinho, de Van Dick]

8.11.05

Fire, burn!

Je suis la guerre civile. Je suis la bonne guerre.

Henri de Montherlant

Entre as águas de La Nouvelle Orléans e o fogo nocturno de Paris, escutamos os passos das Dark Ages que se aproximam. Nós, os impérios, sabemos agora que somos mortais. Sabemos que não é a paz, mas a espada, quem dorme no fundo do coração dos homens. Sabemos tudo o que é preciso saber. As redes que construímos rompem-se devagar, não há sondagem para o abismo que espreita. Assim termina a Revolução Francesa, sem honra nem glória. A História continuará dentro de momentos. E, parbleu, os sobreviventes sobreviverão.

O neto de Luis XIV, Delfim de França, no fim de comandar a sua primeira batalha contra os alemães, no fim da primeira vitória: "Dieu, que la Guerre est jolie!"

2.11.05

Somos barcos. Somos, impossivelmente, barcos. Sempre pequenos, tão frágeis. Barcos lançados sem saber por quem, no alto mar de que não sabemos nada. Às vezes - andei desde quinta feira no meio de gente assim - cruzamos no mar os navios orgulhosos, os couraçados revestidos a metal, as velas arrogantes: aqueles que julgam que a noite os temerá, gente tão forte. Ah... mas lá de dentro, tão lá de dentro dos porões da vida calada, tento escutar o soluço baixo dos marinheiros jovens. A que naufrágio terrível, a que inútil vitória os arrastam os comandantes cegos? Estive no meio de gente tão diferente do que sou, tão difícil ver por trás das paredes cerradas. A vida é assim.
Somos barcos, sabes? Todos somos barcos de além-andar. Desde quinta feira trabalhei sempre (estranho Halloween tive, noite sombria). Pensei também: pensei que o amor aos homens não é mais que o amor que nos merecem os prisioneiros. Pensei que é fácil amar alguns, os barcos pequenos e abertos, os barcos à deriva feitos do medo e da aventura da vida. E pensei depois que perdoar não é esquecer uma ofensa, mas ver no barco de guerra os olhos prisioneiros, e não o navio inimigo.