Cada vez mais leio só as coisas que se escreveram até aos anos da minha infância, como se o que veio depois me não tocasse já. Agora foi o Urbano Tavares Rodrigues, Estrada de morrer. Não gosto muito dele. Não o conhecia bem. É raro gostar de contos. E não gosto do "realismo" nem do "romance social". A burguesia é um lugar que me não interessa conhecer, tal como a improvável República Dominicana ou a sombria Las Vegas. Antes que digam que é um preconceito contra o Partido, gostei muito do Até Amanhã, Camaradas (não vi o filme) e chorei com os Esteiros. Não é do Partido que eu não gosto, é mesmo da burguesia. E de um olhar feio que se detém e compraz na fealdade. Abro à sorte a Estrada: "- Deixa lá, a gaja é xarope" (página 47), "Pois é, é uma boa merda tudo isto! Enterram-nos na merda para nos glorificarem mais tarde" (página 106), "Quando o Sortes Pereira despiu as belas calças flexíveis de fibra de alumínio, as nossas colegas sorriram" (página 62). Devo ter lido outras coisas, mas já não me lembro. Coitado do Sortes Pereira, coitado do Urbano. Acho que ainda vive, não sei.
E no entanto... ah, conhecem a história da Bíblia, se houver um único justo na cidade, Deus (o terrível e o zangado, o Jeová do Judeus) terá pena e poupará a cidade inteira? Um dia eu conto. Uma frase pode ser o único justo, e aqui assim foi também. Escutem.
"... nas mãos imóveis qualquer coisa de pedras brancas começando a arder". Sim, nas mãos imóveis dela (ela, claro, não se vê logo que é de uma menina que se está a falar?), nas mãos imóveis pedras brancas começando, e quem ardia eram afinal os olhos dele, os meus olhos. Tantas vezes assim foi. Coitadas das mãos quietas, fechadas no livro feio. Coitada da chama de pedra que não chegou a fazer-se dança. E as veias, as veias frágeis. Sim, o branco quando quer sabe ser a cor mais terrível.