Julieta, ou o vampiro do Bairro Alto
Para a Gotika, que sabe de coincidências.
Quando comecei a Ribeira Negra, em Março de 2004, lembrei-me de contar os meus três encontros com fantasmas. Acabei por só falar de dois, e a história do homem de branco ainda espera pela sua noite de chuva. Mas contei a história do homem de azul, e contei a história da rapariga de negro. Tenho agora uma razão importante para recordar a história da rapariga de negro, e por isso vou começar por pedir que a leiam aqui. Queria que a lessem tal como foi escrita, na noite de 28 para 29 de Março. Já vão perceber porquê. E queria dizer que contei uma história verdadeira, que me acontecera em Maio, ou talvez em Junho, do ano anterior.
No Sábado passado, na feira da Ladra, comprei um livrinho de capa vermelha editado em 1906. O seu autor é hoje quase desconhecido, e a verdade é que não era um grande escritor: chamava-se Manuel Pinheiro Chagas, e lembro-me de na biblioteca do meu avô haver dele "A mantilha de Beatriz", que nunca cheguei a ler. O livrinho da feira da Ladra chama-se "A Lenda da Meia-Noite" e a história foi publicada em 1890 (comprei a segunda edição). Nem sabia que esse livro existia. E comecei a lê-lo, deixando a meio aquele que vinha lendo. A Lenda da Meia-Noite é uma história gótica (na verdade, uma série de pequenas histórias góticas) cheia de sepulcros e noites de inverno e raparigas pálidas de olhos tão fundos. Exactamente o que me apetecia encontrar, agora que o Verão passou.
Um dos capítulos (uma das histórias) chama-se "Julieta". Um homem ainda novo, Henrique Osório, vai ao teatro de S. Carlos assistir à ópera "Um baile de máscaras". Levanta os olhos para um camarote. E agora deixo-o falar, como falou nesse ano tão longe de 1890, como fala o livrinho vermelho que agora trago comigo:
"Uma senhora de beleza maravilhosa estava sozinha nesse camarote, e encarava-me com uma atenção extraordinária. Não sei porquê, gelou-se-me o sangue nas veias (...). Se algum defeito se lhe poderia notar, era a rigidez marmórea da fisionomia. Via-se que nem tristezas nem alegrias seriam capazes de alterar a regularidade do semblante, que só parecia ter vida nos olhos (...). Aquele rosto assemelhava-se a uma urna de mármore, em cima da qual se tivesse colocado uma lâmpada de luz fascinadora. Era um fragmento de gelo, dourado levemente pelos reflexos de um vulcão (...).
Olhei para o relógio. Os ponteiros marcavam no mostrador meia-noite em ponto. (...) Estava toda vestida de negro, e isso ainda mais contribuía para realçar a alvura da sua tez. (...) Eu olhava-a deslumbrado; e uma transformação estranha se operava em mim. Parecia-me que as luzes do teatro iam esmorecendo pouco a pouco até se reduzirem à claridade sinistra das lâmpadas sepulcrais, o palco e a plateia confundiam-se num vasto cemitério onde o vento da noite fazia ondular a copa dos ciprestes, por entre cujos ramos passavam os raios da lua, da pálida cismadora, da solitária amiga das sepulturas. (...)
Tinha acabado a ópera: levantei-me e saí. Fiz um esforço sobre mim, não querendo olhar para o camarote fatal. (...) Quando cheguei ao corredor, o primeiro vulto que passou por diante de mim foi o vulto elegante e nobre da gentil desconhecida. Ia só. (...)
A desculpa que dei a mim mesmo, quando apesar de todos os protestos me surpreendi a seguir a senhora de negro, foi a desculpa da curiosidade. (...)
A senhora que eu seguia caminhava lentamente a quinze passos adiante de mim, quando muito. Passava ela então defronte da Igreja dos Mártires. Puz o chapéu ao lado com modos conquistadores, coloquei o charuto ao canto da boca e acelerei o passo.
Apesar disso, e apesar de a minha bela não alterar por forma alguma o seu andamento, não diminuía, pelo menos sensivelmente, a distância que nos separava. O vulto elegante da senhora de negro, ao passar por diante dos candeeiros de gás, revelava-se em toda a sua riqueza de formas, em toda a majestade do seu porte airoso. Havia uma suprema distinção no seu modo de andar, mas apesar disso havia um não sei quê de misterioso naquele mover de estátua, lento e inteiriçado (...). Chegámos assim à Rua Nova do Carmo; ela voltou para baixo; eu segui-a.
A distância conservava-se a mesma (...). Tomei uma resolução definitiva, e comecei a dar grandes passos para apanhar finalmente aquela mulher que me fugia (...). Nem assim pude diminuir a distância que me separava desse vulto extraordinário (...).
Chegámos ao Rossio. (...) Comecei a andar com dobrada rapidez. A senhora de negro caminhou pelo Rossio em direcção ao Passeio [nota de Goldmundo: o "Passeio" é hoje a Avenida da Liberdade] (...) Nem uma polegada diminuira a distãncia que mediava entre nós (...) A quinze passos adiante de mim caminhava sempre, elegante e distinto, o vulto negro (...). Perdi a cabeça e deitei a correr, literalmente a correr, atrás dela. A bulha da corrida produzia um som lúgubre, e fazia-me estremecer de vez em quando. (...) Entrámos na Calçada do Salitre, chegámos à esquina da travesa do Moreira, e eu não conquistara um palmo de terreno. (...) Quando ali chegámos, a desconhecida entrou resolutamente na travessa, e eu parei. (...) Tive medo, confesso-o.
(...) entrei resolutamente nessa rua tão deserta. A minha desconhecida chegou ao pé de uma casa isolada no meio da travessa, parou, voltou-se para mim, e (...)"
Bom, posso depois contar o resto da história, se alguém a quiser saber. Queria dizer só que descobri que tinha razão em Março de 2004, e que ainda bem que não me meti atrás da rapariga de negro e de prata pelas ruas estreitas que talvez levassem à casa dela. Suspeito que o Pinheiro Chagas tenha ouvido falar de uma história verdadeira e se tenha lembrado de a contar no seu livro, fingindo que a inventou. Não sei se ele acreditava na sua história. Mas eu sei bem como pode ser fascinante o vulto negro de uma rapariga pálida. Sei como devagarinho o fascínio se transforma em medo frio. E sim, "alguma coisa de fora caminhou no Bairro nessa noite".