30.1.08


Quis escrever. Como quase sempre, comecei por buscar uma imagem: sucessivamente considerei, e rejeitei, uma montanha islandesa, as ruínas de uma fábrica, as perturbantes mãos de Eva Green, dois corvos. Encontrei esta evocação de pedra e água, que me recordou um verso breve de Pound. Pensei na beleza dos mundos, na nossa estranha ignorância dos demónios. Inconscientemente acendi um cigarro, e outro depois. Esbocei uma frase que me não agradou e que apaguei devagar. Lembrei-me da carta que não escrevi a uma amiga na Holanda, lembrei-me do meu colégio: tectos de madeira esculpida que são agora a fria ostentação de um Banco. Lembrei-me de que ainda me falta fazer tanta coisa, de que ao contrário da água e da pedra hei-de morrer.

É tarde, e talvez já não escreva hoje.

24.1.08

Eyak
Falam hoje os jornais de muitas coisas. Às bolsas da Europa "voltou o optimismo"; a mim, não, nem promete.

Morreu em Anchorage, a maior cidade do Alaska, uma mulher chamada Marie Smith. Tinha 89 anos de idade. Era a última pessoa que no mundo tinha como língua materna a língua Eyak, a língua da sua tribo. Era nominalmente a chefe da tribo, filha do último chefe efectivo, aquele que teve o azar ou o destino de crescer e viver com a chegada dos homens brancos, do caminho de ferro, das bolsas que vivem momentos de euforia e optimismo. Era tudo, porque na sua tribo não havia mais ninguém.

Morreu Marie Smith, que não usava já o nome dos seus antepassados. Morreu com ela a língua Eyak. Morreu mais um pedacinho do mundo velho, feito de vivos e de mortos, feito das diferenças que só as coisas vivas - ainda que mortas - podem ter.

À minha frente o crepúsculo, e talvez os homens domesticados.

18.1.08

Post mortem



A Libânia de Magalhães, avó bruxa do meu bisavô M.,
que morreu sem saber assinar o nome mas que
sabia a noite dos montes e o sujo sabor do sangue


As coisas mais bonitas que já li fui eu que as disse.

Demorei muito a conseguir pensar isto sem vergonha, mais ainda a conseguir dizê-lo. Mas a Ribeira era para ser o lugar de dizer as coisas. E há dias percebi que era assim que devia ser, assim só que podia ser.

Quando falamos, ou escrevemos coisas úteis como uma receita de cozinha ou uma declaração de IRS, pensamos em coisas e pensamos nelas através do nome que lhes damos. "Lápis" é a palavra que me faz chegar ao objecto-coisa quando na papelaria digo "quero um lápis", e também podia dizer "F-35" ou "Tolstoi n.º 7". Bastava que o vendedor me entendesse, e que além de entender me estendesse o lápis. No mundo dos vivos, todas as palavras são chaves (e é por isso que todas as chaves são falsas).

Mas eu escrevo, e quando escrevo não é nas coisas que ando a pensar: a pensar tinha andado eu antes. As palavras não são sinais a apontar para o mundo, são mundos de abrir em mim, coisas de andar, mistério. No mundo que eu sou, todas as chaves são palavras.

Na escola ensinaram-me que a "Poesia" (que palavra tão feia) era o falar de coisas bonitas: o Sebastião da Gama, que era poeta e professor, escreveu num livro um poema de uma criança-aluno: "o amor é um pássaro verde num campo azul". Um pássaro verde é medonho, digo eu, e campo azul não sei que seja; mas não me interessa falar de coisas bonitas.

E por hoje basta.

7.1.08