25.6.06

Danças


Imperfeição da pedra, que faz as sombras dançar


... Sonhei-te o Labirinto
e o anjo alado que dele me liberta
.




No fogo, na dança exactíssima do fogo

... Sonhei-te estrela polar. Sonhei-te árctico navio
e eu a passagem do noroeste
.





Dança em mim a estrela dos cavaleiros pálidos

... Sonhei-te alto castelo
e eu o canto rude dos seus homens de armas.




A minha dança sustém os pássaros

... Sonhei-te lago escuro da montanha
e eu a bruma que o precede.





Como pegadas de uma deusa virgem

... Sonhei-te a espada e a lei,
sonhei-te a mão que desenhou em mim a aurora.


[fotografias de Simon Marsden]

24.6.06

Acha na fogueira, em dia de S. João

Acha na fogueira, sempre. Para que na fogueira ninguém se volte a achar.




"Para que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada."

Sir Edmund Burke (séc. XVIII)

23.6.06

A espiral

- Uma pessoa que deixa os outros perceber que lê muito pode ter outros maus hábitos.

- Não é bem isto.

- Uma pessoa que deixa os outros perceber pode ter outros maus hábitos.

- Não brinques.

- Uma pessoa que lê livros demasiado recentes pode ter outros maus hábitos.

- És um snob.

- Podes deixar os outros perceber que leste muito, e que ler é importante para ti. Podes deixar os outros perceber que acabaste de ler este livro e aquele e aquele. Mas não podes ter as duas coisas ao mesmo tempo, a menos que tenhas outros maus hábitos.

- Ahahah. Põe isso de outra maneira.

- A Catarina disse-me uma vez: "sim, já tive montes de namorados. Mas não queres a minha ficha técnica, pois não?"

- Wuthering Heights. Mas isso é outra história.

- A forma como falas dos livros que leste. A forma como falarás de mim quando me acabares.

- Mas isso dito assim podia querer dizer outra coisa.

- A forma como calas os livros que leste. A forma como eu te calarei quando me acabares.

- ... Isso é para pensar. Mas tu falas dos livros que leste.

- Não. Podes falar dos livros que leste, ou podes falar do silêncio que em ti foram deixando. Mas não podes querer as duas coisas.

- A não ser que tenhas outros maus hábitos?

- Não sei. A não ser que aches que um Mil-Folhas é igual a uma garrafa de tinto velho. Mas isto parece frase de um livro demasiado recente.

21.6.06

Meu senhor tão sério, de fato e gravata,
venha olhar a lua feita toda em prata...

Venha olhar a noite feita de mistério,
meu senhor tão velho, meu senhor tão sério...

Guarde essa gravata de seda azulada,
feche-a num armário, deixe-a bem fechada...

Nem bengala de oiro nem botões de punho,
não precisa deles na noite de Junho...

Ainda vai a tempo, meu senhor sozinho,
saia à rua agora, deite-se a caminho...

A camisa branca, tão bem engomada,
troque-a pelo negro, não lhe custa nada...

E o par de sapatos ontem engraxado...
(Meu senhor, condiz com o caminho errado!)

Umas calças pretas, umas botas duras...
saia à rua agora, está tudo às escuras...

Venha até ao bairro de casas tão velhas,
troque o telemóvel por rosas vermelhas...

E na porta estreita com uma luz azul,
meninas de negro, meninas de tule...

Meu senhor calado, meu senhor tão só,
dance com fantasmas vestidos de pó...

Dance toda a noite, beba mais e mais,
brinde aos sonhos tristes, brinde aos seus iguais...

Que é feito do rosto que já foi o seu,
meu senhor tão novo de olhos cor de breu?

Que é feito das mãos que já foram as suas,
meu senhor tão simples de olhos como luas?

Que é feito das asas que um dia quis ter?
.................................................
(meu senhor vampiro, vai amanhecer...)

Vamos para casa, vai nascer o dia,
meu senhor tão velho, de alma tão vazia...

(- Diz-me, meu amigo, naquela janela...
um vulto tão lindo, poderá ser ela?...

Ai o fim da noite, tão igual a mim...
Diz-me, meu amigo, porque sou assim?...)

20.6.06



Há uma Lisboa que atravesso de dia, a cidade das raparigas loiras e dos banqueiros e advogados, a cidade dos que querem vencer e que julgam que dançar é coisa contente que se faz nas luzes. Há uma Lisboa que é igual ao Verão sufocante. E passo por ela como passo pelo Verão interminável, para me reencontrar no abraço da noite maior. Inquietação do bronze!

A noite sabe fazer Outono das coisas todas que abraça, e nela Lisboa se refaz igual a mim. Meia-noite na Rua Rosa Araújo, na Rua Alexandre Herculano: das sedes mortas dos Bancos apaga-se devagar a metálica vibração das máquinas. Despertam as últimas casas, onde cada janela ainda é desigual. Um morcego dança à minha volta o inútil triunfo dos homens.

Há uma Lisboa feita de arcos de pedra. Há qualquer coisa em mim que sorri à dança breve do morcego.

17.6.06

Lados (III)

E tu, de que lado estás?

16.6.06

dezasseis de junho por dentro



ela: deve ser giro falar contigo num dia de inverno muito frio a meio da noite no meio de uma rua sentados com carros a passar.
ele: no meio de uma rua sentados vamos parar ao hospital
(silêncio)
ele: mas eu levo o meu casaco preto quentinho quando estiver contigo numa noite de inverno
ela: Sim. Mas no meio da rua não era da estrada
(silêncio)
ela: era no passeio
(silêncio)
ela: encostados a uma casa velha a cair.
(silêncio)
ele: e em frente a outra casa em que num dos andares de cima há uma janela iluminada pequenina
ela: sem ninguém saber quem lá está nem quem é
(silêncio)
ela: e traçamos - lhe uma vida.
ele: uma vida muito importante
(silêncio)
ele: a luz tem de ser amarela, se não a vida nao é importante
(silêncio)
ele: e a porta cá em baixo tem de ter campainhas e uma das campainhas caiu, já só há um buraco
(silêncio)
e talvez seja a do quarto iluminado
porque é um quarto de certeza
ela: sim.
ele: um grafitti vermelho do lado esquerdo
ela: também.
ela: cartazes de peças de teatro que já não estão em cena do outro lado
(silêncio)
ela: e os carros estacionados do lado esquerdo e do direito do buraco por onde vemos a outra parte da rua
(silêncio)
são velhinhos.
ele: e se tivermos sorte tu apercebes-te de que cheira a pão quente
ela: e um tem uma nossa senhora de fátima à frente.
ele: um dos carros está abandonado, cresce uma erva junto ao pneu
ela: está um pacote de ice tea daqueles de papel sujo e totalmente velho, amachucado a cinco metros de ti
(silêncio)
que estás do lado esquerdo.
ele: eu olho para cima e vejo uma coruja, mas quando te digo ela ja passou. ficas a olhar como se soubesses que ela vai voltar. e eu fico a olhar para ti, como se tivesse medo de que te magoasses.
(silêncio)
e é verdade que estou do lado esquerdo.
ela: estou com o meu casaco preto comprido. deve ser Novembro. agradeço - te o olhar com um sorriso um bocadinho triste, porque Novembro é triste. não falo. aperto o cachecol preto comprido ao pescoço. tiro um chocolate do bolso. ofereço - te metade sem saber se gostas de chocolate negro, aquele amargo.
ele: gosto. tiro um bocadinho de chocolate e reparo que ficou uma migalhinha na tua mão. mas tu metes a mão no bolso logo a seguir. e dizes uma coisa que me faz rir.
ela: rio também. baixinho para não perturbar o quarto iluminado.
ele: nenhum de nós tem vontade de voltar a casa
ele: nao tenho a certeza se já deste por um gato que está ao fundo da rua.
ela: mexe com a pata direita num saco plástico abandonado. olha, correu para o nosso lado da rua. vem lá um carro.
ele: calamo-nos para o carro passar.
ele: não sei se quero voltar a olhar para ti, fiquei a ver o carro virar a esquina. tenho medo que me perguntes outra vez uma coisa que me faria falar. tenho medo que te tenhas esquecido dela. o pacote de ice tea está desajustado ali, e eu penso que alguem o pôs para eu me lembrar de mim.
(silêncio)
ele: mas talvez me ofereças outro quadradinho de chocolate.
(silêncio)
está mais vento agora.
ela: o carro tinha aquela música irritante de discoteca. era um carro tunning. não gosto de tunning. pergunto - me se é a altura certa para to dizer, agora que o carro passou. tenho medo de falar, o silêncio está - me a fazer bem. não falo, pois. falo? não. que estarás tu a pensar? não trouxe as luvas.
ele: de repente eu penso "tu brilhas com uma luz tão negra". começo a contar-te uma história qualquer.
ela: o frio da noite deve estar a atingir o seu ponto máximo. tiro o chocolate do bolso, tiro um quadrado e ofereço-te enquanto pronuncias a palavra relâmpago na história.
ele: a luz apagou-se, nem demos por ela (terás dado tu? é tão dificil ver os teus olhos). "não", digo, "já não tens mais. esse é p'ra ti, não jantaste nada"
ele: eu sei que estou a sorrir. sei, como se fosse uma coisa estrangeira.
ela: "nunca tenho fome", respondo, baixinho e triste e não sei porquê. "de chocolate. pelo menos." não quero olhar para ti agora.
ele: sei.
(silêncio)
ele: e eu olho.
ela: encosto devagarinho a cabeça no teu ombro.
ele: eu ia passar o braço pelo teu ombro, devagarinho. tenho a certeza de que reparaste que não me saiu bem o gesto de tirar a mão do bolso, ficou presa e acho que corei.
(silêncio)
ele: mas isso não interessa muito.
ela: senti que percebias que estava um bocadinho perdida naquele dia. aconcheguei-me a ti.
ele: seguro-te baixinho.
ela: não te digo o que tenho. não sei o que tenho.
ele: eu estou calado. tantas coisas para dizer.
ele: frases e pedaços de frases e palavras e coisas que não podem ser ditas porque são imagens ou gestos ou músicas, não são palavras nem frases nem coisas que soubesse dizer.
ela: reparei que não perguntei como estavas, como te sentias, nem olhei para os teus olhos para o saber. mas não me apetece levantar do teu ombro.
ele: e penso "se eu dissesse tudo talvez tu sorrisses"
(silêncio)
ele: a minha mão está pertinho dos teus cabelos. lembro-me de me terem dito que se pode tocar neles sem que ninguém dê por ela. mas isso faria a coruja não voltar.
(silêncio)
ele: e de repente estou muito triste. não quero que te apercebas.
ela: uma onda de ternura invade-me, e de remorso pela minha falta. levanto-me devagarinho e olho nos teus olhos. Estão baços.
ele: tenho de encontrar qualquer coisa para te perguntar, como se te oferecesse um caminho de outono.
(silêncio)
ele: porque é que só consigo sorrir? o mundo é tão completo.
ela: "o teu sorriso não chega aos olhos", digo. e sinto-me branca-de-neve ao dizer isso.
ele: "agora chega sim"
ela: "porque não chegava?"
ele: "não queria mais nada nos olhos senão isto. és bonita, k."
ele: "tão bonita" digo ainda mais baixinho. dava tudo por um quadradinho de chocolate negro.
(silêncio)
ele: e penso "tenho dez segundos para te saber"
ele: "para saber como se a tua historia fosse eu a inventá-la, fosse eu que a fosse contar"
ela: coro um bocadinho. ainda tenho o quadrado de chocolate negro na mão. não derrete, pois. sorrio um bocadinho e faço-te uma festinha ao pé dos olhos cansados.
ele: desculpa ter pegado na tua mão. gosto do teu casaco, do teu cachecol tão comprido. lembro-me de coisas que me disseste ontem, coisas claras e pequeninas.
ele: desculpa estar assim.
ela: eu não me importo. estou preocupada contigo. sinto que hoje para ti já é dezembro. Queria fazer-te sentir que ainda é outono.
ele: quando te ergueste reparei na sombra, na tua sombra. só se distingue a cabeça e um ombro, o resto mistura-se com a minha.
ela: não sei se te hei-de falar.
ele "sabes, k...", digo. mas calo-me.
ela: "és o único que me chama k."
ela: "mas fala"
ele: "sei. às vezes nao sei chamar-te outra coisa. às vezes só a k. me não assusta"
ele: "falo... às vezes a k. dá-me vontade de a abraçar. como se as coisas fossem feitas de outono"
ela: eu gosto que me chames k.. não a deixas sozinha. espero q ela também te acompanhe
ele: um dia vais-te esquecer dela como as crianças se esquecem de um brinquedo quando as férias chegam ao fim. quando isso acontecer eu guardo-a, posso? eu trato-a bem para ti
ela: não me quero esquecer da k.
ele: talvez eu seja a tua terra do nunca.
ela: ela é a minha ligação contigo aqui nesta noite de novembro.
ele: eu sei. hoje é para a k. inteira que eu estou a olhar. hoje é a k. que está aqui embrulhada em negro.
(silêncio)
ele: hoje a lua devia parar.
ela: nem vi a lua hoje.
ele: ali, atrás daquele prédio grande. mas não se vê a luz. as nuvens.
(silêncio)
ele: nunca se vê o céu em lisboa.
ela: por isso é que o alentejo é tão lindo.
ele: tenho medo do alentejo, sabes?
ele: a planicie grita. as flores são amarelas.
(silêncio)
ele: no alentejo eu teria medo de ti.
ela: porque eu estaria no meu elemento. ou num dos.
ele: sim.
ela: reparei que não continuaste a frase. paraste em k. há bocado. que falavas? que esconde o baço dos teus olhos hoje?
ele: pois parei. nunca digo as coisas, nao é? nunca faço e nunca digo e nunca vou onde devia ir.
(silêncio)
ele: perco-me antes de chegar a ti.
ela: escondes-te.
(silêncio)
ela: não tenho luz. não sou farol. que me falta para chegares a mim?
ele: "não é esconder, sabes", penso eu
(silêncio)
ele: "nao é esconder", digo
ele: é...
(silêncio)
ele: calei-me outra vez. porque é que não digo as palavras?
ele: sinto o meu casaco como se fosse um muro feito de noite.
ela: nunca saberei de que querias falar?
ele: sou mais um dique que uma pessoa, sabes? se abrir as coisas espalham, nao fica nada do meu lado do dique.
(silêncio)
ele: talvez seja por isso que tenho medo do alentejo, da planicie.
ela: eu sou o outro lado do dique. abre as comportas, a água fica entre nós e é dos dois.
ele: um dia contei um sonho na ribeira, não me lembro se já te conhecia.
ele: estava numa casa grande e havia um rio e havia coisas que queriam fazer mal à menina de negro. e eu dei-lhe a mão e puxei-a para mim e disse 'a unica hipotese é perdermo-nos juntos'
ela: se eu fosse a menina de negro abraçava-te pela protecção.
(silêncio)
ela: que fez ela?
ele: se eu abrisse as comportas era só a água.
ele: descemos umas escadas grandes. mas nao sei se conseguimos fugir.
(silêncio)
ele: a casa era tão grande que um dos corredores tinha um rio no meio onde andavam barcos, as escadas subiam e desciam sem que lhes víssemos o fim.
ela: sonhos estranhos que tens.
ele: tenho sempre sonhos como se fossem histórias de assustar.
ela: aqui começa a anoitecer para as pessoas de luz.
(silêncio)

14.6.06

Internet

O entusiasmo com que tantas pessoas se tentam manter "alegres", ou "confiantes", ou "felizes" ou o que quer que seja e - muito pior - que suplicam aos outros que o sejam, para eles poderem julgar que são. O espírito de missionário sórdido com que escrevem "simplesmente lindo" em comentário a alguém que escreveu "hoje acordei e fazia sol". A quantidade de azuis e rosas e borboletas e bonecos. Os maus poemas. A raiva contida, e às vezes incontida mesmo, a inveja.

E no entanto, aqui e ali, traços ténues de pessoas inteiramente vivas, quase caladas mesmo com tanto a dizer.

Não é muito diferente de ver os corpos, os rostos.

13.6.06

Praying Mantis

I. Andam em mim demasiadas coisas por dizer para ser capaz de escrever. Talvez, se soubesse tocar, pudesse um piano ser as palavras hoje, as cores. Ainda bem que o céu está encoberto. Faz-me falta o Douro nos dias assim.

II. Gostava de escrever um post em que dissesse "gostava de escrever um livro chamado A sinceridade de Tobias Janssen". Mas se o fizesse alguém havia de passar e comentar "e então porque não escreves?". E não, isso não.

III. Em que é que o livro seria diferente se se chamasse "A sinceridade de Benjamim Cravo"? Nunca o saberei, que pena. Mas isso é como dizer "que sentiria eu se te abraçasse?"

IV. Ser um outro, que fome.

12.6.06

Tudo o que é sólido se dissolve no bar.

6.6.06

Bilhete de Identidade

Nome: Goldmundo

Idade: Média

Altura: É boa sim, diga

Estado civil: Também

Naturalidade: Pouca

Profissão: Darkeólogo

Morada: Até ver, um corpo

2.6.06

Lados (2)

E o anterior lembrou-me uma história que dizem ser do Maio 68 de Paris. O professor num exame de geometria pergunta ao estudante: "e o senhor conhece algum sólido com apenas dois lados?"

"Sim", diz o estudante, "a barricada".

Eh bien.
Lados

Leio no jornal de ontem que um senhor que foi nomeado para um alto cargo no governo norte-americano é "por um lado" um adversário dos ambientalistas e, "por outro lado", um defensor das políticas do Presidente Bush.

Também acho que estou a envelhecer. No meu tempo não eram precisos tantos lados. Ou será apenas que no meu tempo as palavras queriam dizer coisas?