29.1.06

Neva

Disse aqui há dias, Cai neve lá fora, ou caiu no primeiro dia do mundo, ou devia ter caído no dia em que os meus olhos se abriram. Cai sempre a neve que alguma vez o céu largou.

E hoje mais uma vez o mundo ficou igual ao que sou.

26.1.06

Gostava de saber olhar como se fosse o cálice e agir como se fosse a espada.

23.1.06

as coisas quando ninguém



As pessoas para quem uma história quer sempre dizer qualquer coisa não sabem que há outras para quem qualquer coisa quer sempre dizer uma história. Não sabem que há pessoas que trazem consigo fios de tempo velho como se trouxessem fios de teia de aranha no cabelo, que olham cada coisa do mundo como se o mundo todo lhes chegasse em imagem de espelhos cansados. Não sabem, e por isso se admiram quando vêem pessoas que vivem como se estivessem quase a chegar a uma história qualquer. Não lhes queiras mal por isso, não? São pessoas que não sabem que foi pelo fim que começou a tua história.


Somos coisas que andam à espera, separados da luz na janela da casa fechada. Andamos no mundo como se nos sentássemos ao canto: tão difícil tocar. Tão difícil enxugar os olhos com sorrisos feitos a lápis. E tentamos, tentamos tudo. Ver as flores da cerejeira como se fôssemos a primeira flor a tombar. O voo breve da garça, como se dele ficasse sempre marcado o céu. Sair do tempo devagarinho, como quando saimos do quarto de uma criança a dormir, quando pedimos às tábuas velhas do chão que não gritem. Tentamos tudo e somos sempre esta coisa à janela dos mundos. É por isso que pinturas e fotografias e músicas e coisas escritas à margem nos podem fazer tão tristes, é só por isso. Somos tão iguais a elas todas, coisas prendidas ao tempo velho como se não houvesse nada entre o princípio e o fim, entre o cedo demais e o demasiado tarde. Cai neve lá fora, ou caiu no primeiro dia do mundo, ou devia ter caído no dia em que os meus olhos se abriram. Cai sempre a neve que alguma vez o céu largou, sempre vazio o bule amolgado.


E somos como as coisas quando ninguém as vê.

[fotografia de katia chausheva]

22.1.06

Calling for angels

Tomem uma coisa pequena: pode ser uma criança de três anos. Ponham-na numa casa grande, tão grande que tem quartos sempre fechados, tem mesmo um quarto onde nunca ninguém entrou. Ponham-na numa casa branca, da cor de tudo o que um dia podia ser. Uma casa sempre cheia de silêncio só pontuado pelas badaladas de um relógio antigo, um relógio inglês de caixa alta a que o avô dá corda de quinze em quinze dias como um ritual de adorar o tempo, um relógio com uma tábua em que estão as assinaturas de crianças que se transformaram no Avô e no Bisavô e no avô do Avô, tão longe. Ponham uma criança numa casa onde há uma gaveta fechada à chave onde se guarda a chave de um armário também fechado onde está uma caixa preta amarrada com cordas onde estão as peças de um xadrez belíssimo, cavalos negros de ébano damas brancas de pau-rosa, uma casa onde há árvores cheias de flores e bancos de pedra e o tronco morto de uma ameixoeira e o cheiro doce da buganvília.

Tomem uma coisa pequena e ponham-na num lugar onde o céu é sempre cinzento, onde em Junho pode chover de manhã à noite todos os dias como se fosse uma tarde de Inverno, onde o vento faz arrancar as telhas dos telhados e onde no céu andam corujas e gaivotas, morcegos e estorninhos, pintarroxos e aviões. Ponham-na num lugar onde se ouvem os sinos da igreja e não se ouve o riso de outras crianças.

Tomem tudo isso, com cuidado porque tudo isso fica tão frágil. E juntem-lhe adultos zangados, a cadeira vermelha de onde o Avô já não se levanta, bengala encastoada a ouro tão inútil. O anel de armas da Avó, a cair dos dedos tão magros. Juntem-lhe a cozinheira que contava histórias de fantasmas, o jardineiro velho com o seu barrete de pano, a lenha a arder reflectida nas pratas polidas, os livros escritos em latim, as flores breves da cerejeira. Agora deixem tudo ficar quieto, deixem os anos passar.

O Avô já foi embora, não é? Sim, passaram os anos e é igual a buganvília e o tronco morto da ameixoeira mas a caixa preta das cordas já não está no mesmo armário (quem assim atraiçoou as coisas?) e é verdade, também não está o Pai, um dia foi-se embora ao volante do carro grande de prata. As mães não deviam chorar. Passaram e é ainda o mesmo céu, já nem sempre dão corda ao relógio tão gasto como gasto anda o jardineiro velho, e a criança cresceu sem se habituar a coisas simples: mais próxima da prateleira com as obras completas de Camilo e os livros em latim (uma geografia, livros de direito, uma história dos romanos, folhas comidas por bichos folhas comidas) do que de outras pessoas. Juntem-lhe uma Revolução (ah, se soubessem agora o que é uma Revolução). E sim, deixem passar mais tempo, não há pressa.

Não aconteceu nada, pois não? Não aconteceu nada de especial à coisa pequena criança frágil, não aconteceu mais nada senão cairem uma a uma as flores da cerejeira. Todos sabemos que os avôs se vão embora um dia, dentro de outra caixa preta tão grande (havia uma gaveta que só tinha chaves de caixões, como se a família as não soubesse esquecer).

E não, não foi isto que me fez a mim, pois não? Não foi isto nem foi a festa dos meus sete anos quando espalharam pétalas de camélia branca à volta da minha cadeira tão alta, nem foi aquela vez aos dezasseis em que pela primeira vez me abraçaram junto ao Douro e me disseram "nem se vê a outra margem. Gosto tanto do nevoeiro, sabes?". Não foi.

Calling for angels sim, porque alguém me deixou a meio e só os anjos me saberiam terminar. Não sei de onde nasci. Não sei o que seria agora se não fosse a buganvília e a coruja de anoitecer. Ficou em mim a infância como se fosse uma cicatriz rasgada, até o meu corpo cresceu como se não tivesse a certeza. Ficaram coisas que parecem flores por colher.

Calling for angels. As coisas que vivo passam tão fundo e tudo está misturado. Nem sei porque estou agora a escrever. Deve ter sido Sintra, deve ter sido tudo o resto que hoje vivi, deve ter sido o mar que parece sempre que vai falar. Passam os dias e deixam-me na pele um bronzeado leve que amanhã já não há-de estar. E eu guardo, guardo. Às vezes chegam coisas a arder. Ai de mim, que sou como as folhas de outono. Calling for angels, mas o meu grito não é tão forte que os traga, não é tão fiel que afugente os anjos cegos. E este terrível fingir a normalidade dos dias, a incomensurável aflição dos dias. Este acordar de pesadelo que é saber que lá fora anda uma coisa enorme a vibrar chamada humanidade, e que vou mergulhar nela como se fosse um deserto de sal, um poço de enxofre. Esta saudade triste das flores.

E sim, sei que andam anjos à minha procura. Talvez o mundo os deixe passar. Tomem uma coisa pequena...

20.1.06

White and Greens in Blue: Requiem



No princípio criou deus todas as coisas, e deu-lhes
a forma pura de um requiem. No princípio criou a noite,
e o abismo que é a noite da noite, e o grito, que é o abismo
do abismo. Sim, as primeiras coisas criadas. Fez depois,
com imenso e vagaroso amor, os anjos cegos; e ordenou-lhes
então que dançassem. E os anjos obedeceram, e da sua dança
sobre a noite e o abismo, da sua dança sobre o grito,
saiu o árctico mar, e a constelação da Virgem,
sairam as vinte e duas letras que contém o mistério,
o voo breve da garça real e a árvore decepada de inverno
e a visão da ferida no teu braço: vertigem de inatingir.
Sim, disse deus, começo a compreender mas não basta.
Se eu pudesse morrer. Então avançou o mais forte dos
anjos, aquele que primeiro atravessara
o abismo: e as estrelas apagaram-se à passagem das asas.
E o anjo reclamou a luz, silêncio gelado das hostes.

Quando deus não permitiu ao anjo ver o que a sua dança
nos fizera, ele bateu irado com a espada na rocha
que sustenta o trono, e abriu-se o fundo da terra.

Então disse deus a partir de agora a dança cega
caberá a esses que porei aí onde a tua espada fendeu
a rocha: e por-lhes-ei uma marca na fronte, o negro
que é igual ao abismo que atravessaste e à noite,
a primeira das coisas em que me fiz mundo. E tal como
foi imenso o amor vagaroso que te tive, assim
será imenso o meu remorso ao saber das coisas
que a sua dança fará. E isso mesmo me ensinará
a dançar.

[Pintura: White and Greens in Blue, de Mark Rothko.

18.1.06

Onde irei eu buscar a força?

15.1.06

Muito antes da apresentação das coisas (II): o entrelaçar das chamas altas

Fosse isto a vida, disse a Aquilária, o entrelaçar das chamas altas, murmúrios que no silêncio se abraçam. E atrás tinha-me avisado: toda a beleza é convulsiva. E por isso trago aqui esta pintura, que tem a vida tal como é, não como a vemos ao nos venderem olhos vendados: Evelyn de Morgan outra vez. Amigos, não temam as asas dos anjos maiores.



Fosse isto a vida, não é, e a vida seria uma coisa inteira, amor grande que não sabe de princípio nem fim. Mas a verdade é que a vida não é o que fazemos, mas o que ocultamente em nós alguém como a uma coisa nos faz. Dizia-me há dias um de nós, há um amor que é desde sempre, tão mais raro que o amor vulgar para sempre. Há um amor que é feito de ir ao princípio. E no princípio estão os príncipes, o gesto claro que enforma o mundo tão grande. No princípio, Aquilária, há sempre o entrelaçar das chamas mais altas. Há sempre esta coisa que é a dança que todas as coisas fez: mistério da criação, início.

Somos as chamas, sim. Incendium amoris.


E se tratas de averiguar como sejam estas coisas, pergunta-o à graça, e não à doutrina; ao desejo, e não ao entendimento; à oração, e não ao estudo; à esposa, e não ao mestre; à escuridão, e não à claridade; a deus, mas não ao homem; não à luz, mas ao fogo que inflama totalmente e conduz ao Único [...], fogo [...] que experimenta aquele que aprende a dizer " minha alma quis o suplício e os meus ossos a morte". Aquele que ama está morto, e por isso pode ver a deus: porque, sem dúvida, são verdadeiras as palavras "não me verá homem algum sem morrer". Morramos, pois, e penetremos nesta escuridão.

S. Boaventura, Itinerário da mente para deus.

Muito antes da apresentação das coisas está a noite, que ilumina a luz.

12.1.06

Muito antes da apresentação das coisas

Abraçava-se a mulher, abraçava-a o escuro véu lançado aos seus pés descalços, como se a quisesse proteger da lua, como se a quisesse devolver ao mar. Aqui - disse baixinho a voz tão clara - como convém aos mortais, tudo é divino. São frias as águas, sim, e opacas, tão negro o corpo enorme dos anjos. Foi este então o meu Natal.

Ribeira: contigo soube o mistério da apresentação das coisas.

Como que dá a impressão que por trás
de todas as coisas há um abismo.
A estrita apresentação duma cadeira na varanda, tal toda assim
brotando do nada, porque não é eterna - quero dizer,
aquele momento não esteve sempre ali.
E por extensão, nós próprios, imersos
naquilo que não somos, e que é vasto
como o silêncio em que se ouvem os sons,
nós próprios aqui com os nossos pequenos momentos
que se sucedem extinguindo-se em réstias de imaginação.
E, um pouco estranhamente, é como se intuíssemos
que nesse nada de nós, a que não temos
contacto nem acesso, pode haver algo, e que não é como as coisas,
as nossas coisas - pois é precisamente esse o motivo
da sua inacessibilidade e ausência. Ainda não é o divino,
mas tão só um estertor provocado pelo conceito vazio
da ausência de nós próprios, e que nos é imposto
pressupor, sabe-se lá por que obscura intuição.
Algo de irrepresentável, tal como a cadeira
quando não está lá ninguém para olhá-la.
Como é que é uma cadeira não vista? Pois é o halo escuro
da cadeira não vista que a envolve, à cadeira vista,
tal capa de negação, que nos interroga e assusta
e abala. É por isso que as cadeiras gritam, e certos
pintores as pintam.Enfim, o terror deve vir logo
ao primeiro raio de presença.
Muito antes da apresentação das coisas.

(Vitor Mácula, comentário na RibeiraNegra, 5.1.2006)

E agora continuo eu, embora devêssemos talvez ficar calados.
Por trás de todas as coisas há um abismo. Se o tentarmos olhar descobrimos que só o facho negro o ilumina, como o facho do anjo ruivo na pintura belíssima de Evelyn de Morgan. E descobrimos que há coisas que nos gritam sim. Como se a nossa ausência fosse o que há de mais presente em nós. Como se vivêssemos sempre na cadeira frágil da varanda, no quarto lunar à espera que o dono da casa regresse. Somos os pés descalços de alguém que dança velado. Somos as filhas abandonadas, na janela aberta para a noite maior. Há sempre ao lado uma cadeira vazia, mas sabemos que nela só se virá sentar o anjo negro. E há a luz ardida, tão pequena.


Antes sim, muito antes da apresentação das coisas há esta coisa terrível que é talvez a luz que ilumina a luz.


[pinturas:
Herói segurando o facho, de Evelyn de Morgan (1850-1919)
As filhas abandonadas, de Augustus Egg]

7.1.06

Uma coisa posta



Anda em mim a alegria, como a onda agitada sobre os abismos do mar: coisa posta sobre uma coisa imposta, rasto deixado no céu pelo voo da garça real. Sou feito de não fazer.

Anda em mim a canção, como o musgo sobre a terra tão fria: coisa guardada sobre uma coisa aguardada, laço pequeno que me prende aos dias mais breves. Sou feito de desfazer.

Anda em mim a viagem, como se a minha casa de pedra soubesse para onde há-de ir. Sentado à sombra do céu olho os homens, estrelas de tão pouca luz. O tempo é sempre o templo que eu sou.

[pintura de Carl-Gustav Carus (1789-1869]

3.1.06

Nunca gostei de Janeiro. Capricórnio. A palavra "janeiro" faz mesmo lembrar chifres retorcidos. Janeiro é cor branco-sujo. É um mês com a mania que está no princípio. É todo igualzinho àquelas ruas de 26 de Dezembro, cheias de caixotes de lixo a derramar caixinhas de bonecas e garrafas de vinho do porto de má qualidade. Antigamente, o mundo dormia, sementes subterrâneas a germinar. Hoje, as cidades sem tempo (não há tempo onde o tempo não seja cíclico) transformaram Janeiro numa espécie de loteamento sem infra-estruturas.

Ainda por cima eleições. Uma das razões por que eu gostava de ser rico era sair daqui no São Martinho e voltar na Candelária. Todos os anos, e em especial neste.