31.3.05

A Casa dos Punhais Voadores



Uma história para quem gostar de histórias, para quem souber ver e escutar. Para quem gostar de sair calado. A explosão das cores verdadeiras, do verde impossível, do rubro. O branco no fim. Os tambores iguais ao sangue. O canto da seda que desafia a lâmina da espada. Os olhos, as mãos, a curva, a graça intocada. O fio de sangue, a boca que é igual ao fio de sangue. O amor que chega ao fim, como chegam ao seu destino os punhais implacáveis. Porque para esse fim ele nasceu, para esse peito foi forjado o último aço.



Não vejo muito cinema, e tenho pena. Por sorte tenho visto, tantas vezes por acaso, alguns dos mais belos filmes que já se fizeram. O ano de 2004 foi para o mim o ano do "The Village", e dele já falei aqui. Para 2005 as minhas contas estão feitas: A Casa dos Punhais Voadores (o Segredo dos Punhais Voadores no imbecil nome que lhe dão em Portugal).



As imagens, a música: uma perfeição só ultrapassada pela beleza do olhar dela, das mãos dela (reparem-lhe nas mãos, e lembro-me de que já disse isto ao falar da rapariga do Village, e não é a única semelhança que elas têm).



Notas finais:

Estamos num mundo em que eu não posso fumar na sala de cinema para que o meu vizinho do lado tenha os pulmões suficientemente em forma para dar uma gargalhada no momento em que chorei.

Falei há meses da beleza cega do The Village e acabei a discutir o Reagan ou coisa parecida. Por favor não façam agora comentários sobre o futuro do jogo em Macau. Não quero saber. A sério, não quero saber. Não agora, não aqui. Quero pensar naquela dança assombrosa. Quero fechar os olhos e ver a floresta dos juncos. Quero abri-los e ver a tinta da china.

30.3.05

Les jardins sauvages (I)



As pessoas mudam de sítio, as pessoas até morrem,
as pessoas simplesmente mudam. Podem nunca retribuir o nosso amor.
Amar é perigoso. Então, o que se faz?
Fecha-se o coração e vive-se em estado de autosufiência
ou aceita-se o perigo de braços abertos?


Gotika, 28.03.2005


and so it is
just like you said it would be
life goes easy on me
most of the time
and so it is
the shorter story
no love no glory
no hero in her skies
i can't take my eyes off of you
and so it is
just like you said it should be
we'll both forget the breeze
most of the time
and so it is
the colder water
the blower's daughter
the pupil in denial
i can't take my mind off of you


Damien Rice, The Blower's Daughter


Gosto do último momento do dia,
e do último momento da noite.
Gosto mais dos fins do que dos princípios,
e cada vez mais para mim os princípios
são apenas o prefácio da história
que o fim nos vai contar.
Mas as despedidas podem ser cruéis.


Goldmundo, 27.03.2004


Pois é, Gotika. As coisas vão sempre embora, e bocados de nós vão agarrados a elas quando nos esquecemos de as largar. Por isso se disse sempre que o mundo, que é feito de todas as coisas, é como um rio grande, ribeira negra que não devolve os corpos mortos que alguma vez apanhou.

E, sabes, nós vamos embora também - coisas pequenas que somos, largadas tão cedo no mundo enorme. É raro pensarmos nisso (eu sei que pensas). Mas somos folhas de outono, e o mais que podemos fazer é dar forma a essa lenta queda a que chamamos vida - da árvore tão alta de onde nos atiraram ao nascer até ao chão onde o resto da noite dormiremos; e podemos dar-lhe a forma de uma dança libertada, ou a forma de uma solidão satisfeita e morta. É só escolher. Podemos ouvir os sensatos, aqueles para quem nunca as árvores dançaram, e ser sempre a folha por escrever. Podemos ganhar a forma verde do medo (como se não fosse sobre o verde que o sangue sabe brilhar melhor). Podemos dar-nos a forma de um templo. Ou forma nenhuma. Podemos falhar. Mas só não somos livres de o não ser.

Os outros vão embora, sim. E tantas vezes nos enganamos a nós mesmos, com a ideia de que estamos aqui desde que nascemos, e só os outros são os barcos andados, e só nós o porto igual... Mas tu sabes que não: sabes que estamos todos, sempre, sozinhos no alto mar. E sabes que não adianta buscar portos de abrigo.

E haveria, Gotika, de ser diferente com o amor, que é o que há de mais trágico no mundo e na vida, porque é a coisa maior que o mundo e a vida têm para nos dar? Só por ser a mais frágil das coisas, a que mais facilmente nos prende ao que não foi mas podia ter sido? Haveria de ser diferente com o amor que, por isso mesmo que é do tamanho da vida, é o que nela há de mais igual à morte verdadeira? De que perigo falas tu, que não seja o perigo de não amar ninguém?

Mas era bom, dizes tu (dirás?), que pelo menos o amor tivesse o cuidado de não partir. Para nos não partirmos a nós com ele. Que tivesse o cuidado de ficar inteiro. Para não ficarmos nós depois dele, tão inteiramente vazios. Que tivesse o cuidado de nos levar embora também. Que fosse, se não quisesse ser mais nada, um vento tão solto que não deixasse as folhas mortas pousar no chão.

Talvez haja mais alguém a pensar no que perguntaste. Não há comentários no teu blog. No meu, cada vez mais, só comentários vão ficando, porque cada vez mais ando a fingir que não estou calado. Não sei se queres saber o que é que acho. Gostava de saber dizer três frases curtas e partir para outra com este assunto arrumado (a shorter story?). Eh bien. Se tivesse a resposta pronta talvez não estivesse aqui, porque melhor que escrever sobre o amor, ainda que bem, é vivê-lo, ainda que mal. Mas tenho comigo os caminhos para responder. Para responder a mim mesm@, aproveitando teres sido tu a perguntar, e este blog não ser o teu. Para contar a história do amor verdadeiro, que não é o amor a uma pessoa, mas o amor aos jardins selvagens que nela há.

Talvez possa continuar amanhã.


[as mãos esculpidas são a Catedral, de Auguste Rodin]

27.3.05

Dissonância



Reconhecem a janela? Há dias era uma mulher de castanho que sobre ela se debruçava. É a janela do estúdio de Caspar David Friedrich, que a pintou e que aqui é pintado pelo seu amigo Georg Friedrich Kersting. Hoje a janela está fechada, mas não tenham pena: não precisa dela o pintor, como se vê, para pôr na tela as coisas que lhe andam na alma a querer sair.

Hoje as minhas janelas andam fechadas. Não sei pintar. Há dias assim, dissonância.

[pintura: Georg Friedrich Kersting (1785-1847):
Caspar David Friedrich no seu estúdio]

26.3.05

O Pomar das Laranjeiras



É hoje Sábado de Páscoa, e portanto um dia bom para olhar de frente a morte e o amor. O que quer dizer olhar de frente para tudo, porque neste mundo nada mais há que valha a pena ser realmente visto.

E hoje venho aqui (nunca mais digam que só trago pinturas antigas...) com o mais espantoso quadro da espantosa Frida Kahlo, El abrazo de amor. Não é o amor fácil dos amantes, não é o sorriso. É uma coisa grande que dói como não devia doer. O Universo (vejam o título completo da obra) abraça a Terra do México, que abraça a sua filha Frida (a sua filha ferida), que abraça o seu amante-pai-irmão-rival Diego Rivera. No fim, o homem, o homem adulto que volta a ser criança ou nunca o deixou de ser, mesmo quando as feridas são incuráveis (ai, a cabeça esburacada). Mas resume-se assim o amor a abraçar cada um com abraço de Mãe? Claro que não, e disso a Frida sabe muito mais do que nós algum dia saberemos. Por isso junto deles há um cão adormecido (reparaste?): é o Señor Xolotl, o deus Azteca associado a Vénus (ao amor), que guarda o Sol durante a sua viagem nocturna pelas trevas, até que de novo chegue a radiosa madrugada. Todos, menos o Amor, estão de olhos abertos, e ainda bem: porque só ele já viu tudo quanto era preciso ver.

Tudo aqui está rasgado, não é? E rasgados estamos nós também, mesmo quando fingimos não dar por isso. Nunca a vida foi pintada assim, rasgão que a morte faz sem querer, insuportável cicatriz dos mundos. Olha bem as espantosas plantas: são como mãos erguidas em súplica a um céu sádico e calado, e por isso das mãos imensas do Universo saem raízes estéreis, como estéril é tudo o que anda sozinho. O que os quadros da Frida Kahlo têm de espantoso é mostrar-nos a diferença que vai do amor da morte ao amor a morrer.

Gostávamos que o mundo não fosse assim, não é? E a maior parte do tempo fingimos que as cores dançam à nossa volta como se fossem uma corte de borboletas. Mas o mundo é mesmo esta coisa rasgada. E como amar num mundo assim, num mundo que não anda feito à nossa imagem? Como é possível?

Mas dos mais fundos rasgões sai o canto suave do amor escolhido.

Jurarei
eterno amor
saudade
a vida inteira
ao nascer do sol
no Pomar das Laranjeiras

E se o dia
não vier
voltarei
de qualquer maneira
só para te ver
no Pomar das Laranjeiras

É tão grande
o meu amor
foi assim
logo à primeira
só será maior
no Pomar das Laranjeiras

[pintura: Frida Kahlo, El abrazo de amor del universo, la Tierra (Mexico), Diego, Yo y el Señor Xolotl (1949);
texto: O Pomar das Laranjeiras, de Pedro Ayres de Magalhães
(cantado por Madredeus)]

23.3.05

Fragmentos da sabedoria apagada




** A lua cheia sempre foi lua de lobos, até as cidades forjarem a sua ignóbil treva iluminada. E os lobos são companheiros baços, símbolo do que em nós não soubemos sentir como nosso, mas não pudemos também sentir como inteiramente alheio. Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele, diziam os antigos, e na Bíblia lêem-se as palavras que deram título a um dos mais belos livros do mundo: "cuidado com o lobo das estepes", o que quer dizer cuidado connosco, cuidado com o que de nós só sabe despertar ao anoitecer. Por isso, vós que como eu andais em busca da lua cheia, sabei que não há lua que não seja de lobos, nem lobo que não ande a rondar. E por isso cuidado quando quisermos andar na lua. (O livro é de Hermann Hesse, e chama-se O Lobo das Estepes, precisamente...)

** Muito haveria a aprender nas antigas histórias sobre a aliança - e a inimizade - entre o lobo e a raposa.

** Na astrologia medieval, certas configurações estavam associadas ao lobo - por exemplo determinadas posições de Marte (a força, a energia) que na linguagem psicológica actual se traduzem por sentimentos reprimidos. Os Antigos estavam mais habituados do que nós a vigiar os vulcões adormecidos. E, já agora, saibam alguma coisa sobre uma estranha doença chamada LUPUS: não, não há coincidências. Os símbolos falam a todos os que querem ouvir.

** Para quem queira pensar, nestes tempos de Páscoa, no mistério da existência do Mal, recomendo um filme suave: A Companhia dos Lobos, de Neil Jordan. E saberão porque é que foi pena abandonar as antigas crenças. (entendam-me bem: não é o Lobo que é o Mal. Se não entenderem isto, não entenderam nada...)

** Uma vez, com onze ou doze anos, tentei imaginar uma história de terror. Numa certa alcateia de lobos corriam estranhas lendas: nas noites de lua nova alguma coisa acontecia, e dizia-se que lobos perdiam o pêlo e corriam pela floresta transformados na terrível raça chamada Homem...



[iluminura do séc. XV:
Gaston Phebus, Le Livre de La Chasse]

O Príncipe deste Mundo, por quem nele não acredita



"Não devemos esquecer que a violência não tem uma existência à parte e é, de facto, incapaz de a ter: está invariavelmente entrelaçada com a falsidade [...] O único refúgio da violência é a falsidade, e a falsidade encontra o seu único apoio na violência. Um homem que tenha aprovado uma só vez a violência como o seu método, inexoravelmente terá de escolher a falsidade como o seu princípio."

Alexandre Soljenitsine

Em tempos, a violência e a falsidade tinham um rosto e um nome. Hoje vivemos na era da sinceridade das máscaras. Meditemos bem, nesta semana de Páscoa, as inesquecíveis palavras de Soljenitsine. Sim, é uma questão de escolher um princípio - e no princípio há sempre um príncipe...

20.3.05

A imagem




Who has twisted us like this, so that--
no matter what we do—we have the bearing
of a man going away? As on the last hill
that shows him all his valley, for the last time,
he turns, stands still, and lingers, so we live,
forever saying farewell.


Rainer Maria Rilke


"I pray every night to wake up crazier"

James Broughton


Vai fazer um ano este blog, vou eu fazer anos também, começa a Primavera, estamos na semana da Páscoa. Tanta coisa. Tantas coisas de que não falarei. Hoje não.

Eu sou a ribeira negra, disse quando este blog começou. Depois escrevi e li o que me escreveram e mudei e andei; a minha Ribeira mudou comigo. A ribeira é o que são os os meus olhos quando estão cansados, disse também. Mas agora estou um ano mais velho, um ano mais ferido, um ano mais forte. Há noite suficiente em mim para abrir os olhos à luz. Eu vejo o mundo, e ao ver o mundo vejo-me a mim. É tão estranho perceber como isso é o que mais importa.

Não sei o que me vai acontecer. Sei que me vai acontecer aquilo de que eu for feito. E serei feito sempre daquilo que os meus olhos virem.

15.3.05

The End

Acabou aqui a primeira fase da Ribeira. Les jeux sont faits.

13.3.05

Lune rouge



O meu corpo é às vezes tão estranho como o mundo que me rodeia. E no entanto hoje a primeira pessoa que vi foi uma rapariga que parecia estar em paz consigo própria (seria o chapéu de lã que usava, o modo como a mão pousava no balcão do café?)

Há momentos em que vivo num imenso cansaço. Como se estivesse farto de caminhar, tão farto. DE não chegar a sítio nenhum. Até quando, Senhor, me deixarás sem fé?

6.3.05

Outro eu, mim mesma (IV): O escafandro e a borboleta



Agora que o Mar Adentro está aí recordo uma pessoa cuja vida não deu um filme. Jean-Dominique Bauby, jornalista, redactor-chefe da Elle francesa. Parisiense. Rico. Casado. Dois filhos. E um dia uma doença estranha paralisa-o: apenas pode mover a pálpebra esquerda, mesmo respirar implica estar ligado permanentemente a uma máquina. Completamente lúcido. É o escafandro. E é a borboleta dentro dele aprisionada. O fim?

O princípio. Bauby faz, durante um ano, uma espécie de código morse com as pessoas à sua volta: um piscar de olhos quer dizer sim, dois quer dizer não... daí às letras, uma por uma. Daí às palavras. E no fim um livro inteiro, ditado devagarinho (cada noite imaginava um parágrafo, cada manhã penosa ditava o que a borboleta ia pensando, asas imensas na escuridão do ser-que-não-tem)

O livro está publicado em Portugal. Falou-se dele na secção erudita dos comentários literários. Não conheço ninguém que o conheça. Mar adentro, céu aberto para a borboleta submersa:

Fala Bauby: "O escafandro torna-se menos opressivo e o espírito pode vagabundear. Como uma borboleta. Há tanta coisa a fazer. É possível elevar-me no espaço ou no tempo, partir a voar para a Terra do Fogo ou para a corte do rei Midas. É possível ir visitar a mulher amada, deslizar junto dela e acariciar o seu rosto, ainda adormecido. É possível construir castelos no ar, conquistar o Tosão de Ouro, descobrir a Atlântida, realizar os sonhos de criança e os sonhos de adulto.

Basta de dispersão. É sobretudo necessário que eu componha o início deste diário de viagem imóvel, para estar pronto quando o enviado do meu editor vier recolher este ditado feito letra a letra. Na minha cabeça, mastigo dez vezes cada frase, corto uma palavra, acrescento um adjectivo, e decoro o meu texto, parágrafo a parágrafo."


O nosso problema - o problema do mundo de hoje - é pensar que somos apenas escafandros, e que devíamos ser apenas borboletas. Por isso, quando dizemos que celebramos a vida e a liberdade, celebramos apenas o medo imenso da morte e ficamos parados na ombreira da escravidão. Sim, um dia a borboleta será livre e voará para a luz da Vida. Mas aqui na Terra, aqui nos dias que passam, são os tempos mortais e preciosos do escafandro. Todas as sabedorias do mundo nos tentam ensinar a viver a vida como uma morte acompanhada (olhem bem para o retrato de S. Jerónimo que aqui trago, Caravaggio mais uma vez). E isso significa que viver é, basicamente, aprender a morrer, e a morrer bem. Para que a morte se faça então passagem, passagem para o verdadeiro mar aberto a que só temos acesso na aceitação diária e nocturna do escafandro.

P.S. A incomodidade que tanta gente tem diante deste crepúsculo do Papa, que morre todos os dias à vista de cada um de nós. Imóvel e sereno, como a pedra de fundação que foi chamado a ser.

5.3.05

Tenho barcos, tenho remos...



Tenho barcos, tenho remos,
tenho navios no mar...
tenho o amor aqui defronte,
só não lhe posso chegar...

Já fui mar, já fui navio,
já fui chalupa, escaler...
Já fui moço, já sou um homem,
só me falta ser mulher...

Para o caso de uma destas noites vir aqui escrever coisas demasiado enroladas, fica uma dupla chave de decifração. Mesmo assim, decifrar pode não ser fácil.


[Caspar David Friedrich, Lua nascendo do mar;
quadras populares portuguesas adaptadas e cantadas
pelo Dr. José Afonso, aka Zeca Afonso]

Penumbra



Às vezes ando contente, mas estar alegre não sei mesmo o que seja. Não penso que se trate de morbidez ou de depressão. Compreendo, e sinto, que no mundo haja coisas suaves que fazem lembrar mergulhar em águas tranquilas: por exemplo, mergulhar em águas tranquilas; mas a presença de umas coisas não me faz nunca esquecer a presença eterna das outras coisas todas. Não sei o que seja "distrair". Não sei o que seja "não quero pensar nisso". Saber que morreu alguém não me parece motivo para não falar da morte. Saber que alguém tem medo a fantasmas não me parece razão para não contar histórias que me aconteceram. De modo que quando estou num sítio qualquer, a ver e ouvir as coisas que se passam nesse sítio, continuam vivas dentro de mim todas as cores, todas as dores, todos os medos. É embaraçoso quando à minha volta (quando para as pessoas à minha volta) só existe, por exemplo, uma salsa latina.

Sou feito de penumbra.

2.3.05

Outro eu, mim mesma (III): "o amor não tem, ele é"



Pelo caminho que sigo já vi que vou demorar. Talvez assim seja melhor. E por isso hoje (um bocadinho hesitante) trago comigo a vitorianíssima Lua de Mel do Pintor, de Lorde Frederick Leighton (pintado em 1864). Ora aqui está um amor tranquilo, simbolizado nas férteis laranjas que atrás da mulher se vêem (lembras-te dos primeiros Madredeus, O Pomar das Laranjeiras? tão igual...)

Lorde Leighton só nos deixa entrar aqui depois de a história acabar, que nessa época as histórias todas rematavam com o "casaram e foram felizes para sempre"; quem quiser saber muita coisa sobre o pintor (talvez as coisas que ele não pinta...) terá de ir reler folhas antigas ou ficar aqui, nesta tarde que talvez seja italiana e em que nada acontece diferente do pulso dela, tão frágil (o sol no pulso dela). E esperar que o Pintor nos mostre o desenho (porque é que eu sinto que são ruínas que ele retrata?)

O Pintor desenha a lápis. Lorde Leighton deu-lhe um lápis para a mão porque se lhe tivesse dado pincéis o Pintor teria sentido vontade de os mergulhar no corpo dela para ir buscar as tintas vivas: é só dela que lhe vem a força e a vida, e por isso o Pintor está agora tranquilo e pode agora desenhar: ele já a TEM, ela já É, nele e por ele. Como são diferentes o homem e a mulher na época vitoriana... Serão? Ou o nome que dão ao quadro está errado e isto é afinal A Lua de Mel da Mulher do Pintor, ou A Lua de Mel de Mary? Penso que o nome não está errado, não. Lua de Mel do Pintor, só isso, e se reparares bem A Luz ao serviço da Sombra (os rostos deles). E com tudo isto o nosso Lorde Leighton (como o Pintor que ele pintou) foi aqui um homem fiel a si próprio. E era aqui que por hoje eu queria chegar.

Sempre me mantive fiel a mim mesma, disseste. E eu penso no meu navio nocturno de ontem, penso no que escrevi sobre o barco que não busca mais que o longe que o justifique. E quando a Lucrezia me fala no amor que não tem mas é, creio reconhecer o gosto juvenil pela liberdade, o amor de que geralmente os poemas são feitos. Mas o que é a liberdade do navio senão a disciplina do leme, a servidão dos mastros, o esforço permanente das velas inchadas? Que seria da viagem se os mastros se libertassem? E por isso eu canto a liberdade dos mares sabendo que ela se constrói sobre a prisão das tábuas. E por isso não quero ser fiel a mim mesmo, mas a tudo o que seja por mim maior do que eu.

E vou voltar ao casamento, Eu-mesma. O casamento não é nada se não for a aliança inteira: façamos um navio de nós. Por isso não é o amor pelo outro, mas o amor pelo navio, e o amor pela viagem, e o amor pelo além-mar, que nele casamento se consagram e por ele, casamento, se elevam. E o amor ao navio grande não sabe de luas-de-mel.

Hoje fico por aqui.

Coincidências

O último post escrevi-o cansado e muito à pressa, e fui dormir com a sensação de que tinha sido ainda menos claro do que habitualmente. Sei que me devia habituar a escrever um texto, revê-lo devagar e depois expô-lo. Mas só o fiz, até agora, duas vezes (salvo algumas coisas antigas que aqui deixei para o que desse e viesse). Mas não há coincidências, e às vezes o vento sopra de feição. Julgo que os vinte e um primeiros comentários explicam claramente porque é que não gosto do mundo moderno, e porque é que não são os "valores" da "sociedade tradicional" que me incomodam. Não, o que sempre me quebrou foi a fraqueza. A que sei em mim, a que vejo exposta nos outros.

Outro eu, mim mesma (II): Mar adentro

[continuação do post de 26 de Fevereiro, que mereceu
uma encantadora resposta da Eu-mesma, nos comentários ao post do dia 25]



Não vi o teu filme, sabes, mas Mar adentro é uma boa coisa e faz-me lembrar esta visão de Claude-Joseph Vernet: não há ainda alto mar, repara, não sabemos marinheiros nem vitórias, firme se mantém só (tão triste) a casa ancestral fechada; mas a lua entoou a canção de chamar, e a fogueira do cais já sabe que o seu tempo amável está contado. Meia-noite sim, hora de voltarem a casa as Cinderelas e de despertarem os Vampiros, e este é o instante eterno em que, assombrados, eles e elas se fitam: faz sempre meia-noite à luz da lua maior. Por isso estamos aqui; por isso vem comigo, se quiseres, ao encontro da lua cantada. E os vampiros que somos deixar-nos-ão passar.

Vi em ti o desespero de quem não se encontra, dizes de mim, e dizes outras coisas que bem se prestam à forma de um grito. Não sei; mas queira Deus que me não tenha encontrado ainda. Ai dos que se encontram a si mesmos, sabes, porque se detém na pequenez que consigo trazem. Não é a si mesmo que o navio há-de buscar, mas ao porto longínquo que o justifique. E a viagem fá-lo navio grande, mesmo a viagem última do naufrágio.Aquele que não procura elevar-se acima do Homem viverá sempre aquém do Homem.

E talvez haja um leitor, Eu-mesma, a julgar que andamos os dois a mudar de assunto.

Moldado pela sociedade, em nome da moral vigente, o menino-inocente que crês reconhecer nas palavras que aqui ponho? Sabes, ninguém de fora me moldou. Em criança fui precoce, o que é uma maldição, e fui-o sozinho, o que é uma impossibilidade. Cresci numa casa enorme e vazia, onde os limites eram só os muros altos do jardim e onde aprendi melhor as árvores e os livros do que as pessoas e as vidas. Ninguém me mostrou afecto, mas ninguém me impôs violências: hoje creio que tudo isso teve por causa, só, uma distracção perdoável dos adultos. Mas nunca me socializei, como hoje se diz; não andei em jardins infantis, não brinquei com os primos mais velhos, uma intermitente bronquite dispensou-me das aulas do colégio onde ocasionalmente tirava fotografias com a turma antes de levar para casa as melhores notas. Aprendi a ler com três anos, sozinho; aos sete ter-te-ia podido dar a lista dos reis de França e o nome das maiores cidades da Austrália; mas era demasiado novo para entender os romances, e ninguém me ensinou as regras que regem veladamente as relações dos homens. As outras crianças eram para mim, apenas, uma inofensiva estranheza.

Julguei sempre que a minha família era feliz, como eram as das histórias todas que ia lendo; infelizes eram os pobres, os órfãos, os que sofriam a guerra e a fome. Lá fora brilhava o sol; e o meu tempo de crescer chegaria a seu tempo.

Preocupado com a minha fragilidade física, recomendou um dos meus médicos que eu (tinha talvez catorze anos) entrasse para um ginásio; entrei, sem o saber, num centro de pedofilia homossexual. A essa época tudo ignorava do mundo frio dos adultos, a não ser talvez as histórias de Romeu e Julieta ou de Tristão e Isolda, que conhecia de cor. Sei agora que tive sorte: foram mais as coisas que vi do que aquelas por que passei. Tudo atravessei calado, como sempre vivera; tudo procurei não ver, como erradamente julgava ter aprendido; tudo me ficou, como ficam afinal em nós as coisas todas. Desculpa-me se ainda hoje não gosto dos homens. Tive de os vigiar, como se vigiam as hienas, e de os enfrentar, como se enfrentam os ursos. Alguns, como sempre, eram mais fortes do que eu. Uma vez a Gotika disse que sobreviver é fácil, manter a lucidez é que é difícil. Pois é.

Desse tempo ficou-me sobretudo a definitiva sensação (para que a escola, por outras razões, contribuía) de que era profundamente diferente dos rapazes e homens que me rodeavam fora-de-muros (em casa o meu mundo era predominantemente feminino). Diferente e, inevitavelmente, superior. Esperava encontrar afinal os meus iguais quando crescesse: guardava dos livros de aventuras a ideia ingénua de que os militares eram bravos, os políticos patriotas, os professores cultos, os padres santos, os velhos veneráveis. E então cresci, para descobrir que o Pai Natal era afinal a mais razoável das minhas crenças.

Continuo, Eu-mesma? Para ti é que venho falando. Vai longo outra vez. E o meu barco ainda nem largou. Os direitos do amor, perguntaste. Sim, se calhar devíamos partilhar um vodka.