Outro eu, mim mesma (II): Mar adentro[continuação do post de 26 de Fevereiro, que mereceu
uma encantadora resposta da Eu-mesma, nos comentários ao post do dia 25]
Não vi o teu filme, sabes, mas Mar adentro é uma boa coisa e faz-me lembrar esta visão de Claude-Joseph Vernet: não há ainda alto mar, repara, não sabemos marinheiros nem vitórias, firme se mantém só (tão triste) a casa ancestral fechada; mas a lua entoou a canção de chamar, e a fogueira do cais já sabe que o seu tempo amável está contado. Meia-noite sim, hora de voltarem a casa as Cinderelas e de despertarem os Vampiros, e este é o instante eterno em que, assombrados, eles e elas se fitam: faz sempre meia-noite à luz da lua maior. Por isso estamos aqui; por isso vem comigo, se quiseres, ao encontro da lua cantada. E os vampiros que somos deixar-nos-ão passar.
Vi em ti o desespero de quem não se encontra, dizes de mim, e dizes outras coisas que bem se prestam à forma de um grito. Não sei; mas queira Deus que me não tenha encontrado ainda. Ai dos que se encontram a si mesmos, sabes, porque se detém na pequenez que consigo trazem. Não é a si mesmo que o navio há-de buscar, mas ao porto longínquo que o justifique. E a viagem fá-lo navio grande, mesmo a viagem última do naufrágio.Aquele que não procura elevar-se acima do Homem viverá sempre aquém do Homem.
E talvez haja um leitor, Eu-mesma, a julgar que andamos os dois a mudar de assunto.
Moldado pela sociedade, em nome da moral vigente, o menino-inocente que crês reconhecer nas palavras que aqui ponho? Sabes, ninguém de fora me moldou. Em criança fui precoce, o que é uma maldição, e fui-o sozinho, o que é uma impossibilidade. Cresci numa casa enorme e vazia, onde os limites eram só os muros altos do jardim e onde aprendi melhor as árvores e os livros do que as pessoas e as vidas. Ninguém me mostrou afecto, mas ninguém me impôs violências: hoje creio que tudo isso teve por causa, só, uma distracção perdoável dos adultos. Mas nunca me socializei, como hoje se diz; não andei em jardins infantis, não brinquei com os primos mais velhos, uma intermitente bronquite dispensou-me das aulas do colégio onde ocasionalmente tirava fotografias com a turma antes de levar para casa as melhores notas. Aprendi a ler com três anos, sozinho; aos sete ter-te-ia podido dar a lista dos reis de França e o nome das maiores cidades da Austrália; mas era demasiado novo para entender os romances, e ninguém me ensinou as regras que regem veladamente as relações dos homens. As outras crianças eram para mim, apenas, uma inofensiva estranheza.
Julguei sempre que a minha família era feliz, como eram as das histórias todas que ia lendo; infelizes eram os pobres, os órfãos, os que sofriam a guerra e a fome. Lá fora brilhava o sol; e o meu tempo de crescer chegaria a seu tempo.
Preocupado com a minha fragilidade física, recomendou um dos meus médicos que eu (tinha talvez catorze anos) entrasse para um ginásio; entrei, sem o saber, num centro de pedofilia homossexual. A essa época tudo ignorava do mundo frio dos adultos, a não ser talvez as histórias de Romeu e Julieta ou de Tristão e Isolda, que conhecia de cor. Sei agora que tive sorte: foram mais as coisas que vi do que aquelas por que passei. Tudo atravessei calado, como sempre vivera; tudo procurei não ver, como erradamente julgava ter aprendido; tudo me ficou, como ficam afinal em nós as coisas todas. Desculpa-me se ainda hoje não gosto dos homens. Tive de os vigiar, como se vigiam as hienas, e de os enfrentar, como se enfrentam os ursos. Alguns, como sempre, eram mais fortes do que eu. Uma vez a Gotika disse que sobreviver é fácil, manter a lucidez é que é difícil. Pois é.
Desse tempo ficou-me sobretudo a definitiva sensação (para que a escola, por outras razões, contribuía) de que era profundamente diferente dos rapazes e homens que me rodeavam fora-de-muros (em casa o meu mundo era predominantemente feminino). Diferente e, inevitavelmente, superior. Esperava encontrar afinal os meus iguais quando crescesse: guardava dos livros de aventuras a ideia ingénua de que os militares eram bravos, os políticos patriotas, os professores cultos, os padres santos, os velhos veneráveis. E então cresci, para descobrir que o Pai Natal era afinal a mais razoável das minhas crenças.
Continuo, Eu-mesma? Para ti é que venho falando. Vai longo outra vez. E o meu barco ainda nem largou. Os direitos do amor, perguntaste. Sim, se calhar devíamos partilhar um vodka.