28.8.05

Não sou, quase, um lobisomem...

Um sonho, ontem.

Tinha escrito um texto para a Ribeira, e era uma coisa importante. Tinha-o escrito mas não sabia o que lá estava, e por isso tentava lê-lo com atenção. Mas só me ficou a primeira frase inquietante: Não sou, quase, um lobisomem...

Não sou, quase, um lobisomem. Talvez o sonho tenha razão. Não sou, quase, coisa nenhuma. Não sou, quase, uma coisa qualquer. Não sou, quase, eu. E o mundo não é, quase, parte de mim. As coisas estão por um fio, e por isso me fio nelas para viver. Po isso quase sonho, quase me detenho nesta quase-ribeira quase-negra que é quase diferente de mim.

Às vezes estou quase a sorrir.

Nota: a língua portuguesa é estranha, se a olharmos com atenção. A palavra quase marca uma fronteira subtil entre o ter e o ser, e essa fronteira está no uso da forma negativa: dizemos o carro quase não tem gasolina, mas não dizemos o copo quase tem água. E no entanto é vulgar dizermos sou quase adulto, e é raro dizermos não sou quase uma coisa qualquer.

Estou quase a não descobrir o que isto quer dizer.

24.8.05

Sob os arcos de pedra



Sob os arcos de pedra não anda a noite a correr. Por isso gosto de estar, momentos em que sou como se não fosse. Há luzinhas vermelhas a rodar no chão, na parede um desenho que ninguém deve ter olhado: é preciso parar num certo sítio para o encontrar. Mas é assim com tudo o que o mundo tem.

Eram três, e com elas estavam rapazes com cruzes orgulhosas e qualquer coisa de outros tempos. Eram três e vestiam bocadinhos de negro como se ainda não tivessem a certeza, como se ainda não quisessem largar o verde e o branco e o azul. "Só tenho dezoito anos" disse uma perto de mim, e sorriu como se o mundo fosse feito de tantas coisas. Como se o negro fosse uma coisa entre tantas, e não a coisa de que as coisas todas são feitas. Eram três e dançavam e riam e foram até beber um shot como se aquele fosse um momento especial (e era). Sob os arcos de pedra, sob os arcos que os braços lhes faziam quando dançavam em roda, indiferentes ao resto como só na noite podiam ser. Se houvesse fadas na irlanda, se houvesse noites assim.

Sob os arcos de pedra eu olho, e quando olho parece-me que ando sozinho. Eram três, sim, e eram como se fossem a mesma. E era eu, como se fosse o mesmo também.

23.8.05

Esquizoide (Schizo) I



Não sei quem é a AstraZeneca (alguém se lembra da AnacoZeca???), mas aqui está um link que pode ser útil:
http://www.saude-mental.net/index.php?article=119&visual=4


Chamo em especial a atenção para as seguintes afirmações (ver os links associados):

"Aproximadamente 1% da população desenvolve esta doença - ou seja, em cada 10 milhões de habitantes (a população de Portugal) cerca de 100 mil desenvolvem a doença"

·· Comportamentos inofensivos, como por exemplo ler a Bíblia, tirar as plantas do quarto, vestir-se de preto, num indivíduo em particular, podem ser sinais de um agravamento. Se isto acontecer os familiares deverão comunicar imediatamente ao médico, pois só este poderá avaliar a gravidade dos mesmos"

Os estudos mostram que após 10 anos de tratamento, ¼ dos doentes esquizofrénicos estudados recuperou completamente, ¼ melhorou bastante e ¼ melhorou mas não muito. Quinze por cento não melhoraram e 10% morreram, geralmente por suicídio ou acidente.

Vale a pena dar uma olhada no resto. De qualquer forma, aqui ficam algumas coisas mais:

- "esquizofrenia" é uma palavra inventada ("cunhada" é a palavra que normalmente se utiliza) recentemente. Data dos primeiros anos do séc. XX e deve-se a um psiquiatra contemporâneo de Freud, chamado Bleuler: É composta, como sempre acontece nas palavras médicas, por termos gregos: "schizo", que quer dizer "cortado, dividido", e "frenos", que quer dizer "alma" ou "coração" (no sentido emocional). Portanto, "alma dividida" ou "coração partido" seriam expressões apropriadas em língua portuguesa.

- a palavra apareceu pouco tempo depois de os médicos psiquiatras terem começado a prestar atenção aos sintomas que lhe estão associados: numa primeira fase (fins do séc. XIX) falava-se em "demência precoce" no sentido de ser uma loucura surgida pelos vinte anos de idade, ao contrário da "loucura" mais clássica, a "senilidade", própria dos velhos.

- os psicanalistas (não confundir com psiquiatras) ou, pelo menos, alguns deles, tendem a ver aqui o resultado de uma situação criada na primeira infância (até, para alguns não-freudianos, antes do nascimento ou imediatamente após ele) e que corresponde a qualquer coisa como uma "incompleta" construção do sentimento de si (o "ego"). Disto hei-de falar uma outra vez, é a parte para mim mais interessante.

- algumas pessoas de "alma dividida" conseguem, apesar de tudo, ter suficiente controle (?) sobre o seu comportamento para serem (mais ou menos) aceites nas interacções sociais padrão: há nelas um factor "esquizoide" mas não (ainda) uma "esquizofrenia". Esta corresponde a uma situação de ruptura total.

- como se vê aliás dos textos que linkei, isto pode estar associado a um estado depressivo permanente (mas não É uma depressão) e pode originar um comportamento paranoico (mas não É uma paranoia).

- quem tiver visto o filme Uma Mente Brilhante ( história inspirada no economista John Nash Jr, Nobel de 1994 ) pode ter ficado com uma impressão distorcida disto. Encontra-se facilmente na net muita informação sobre isto. Designadamente, as "visões" nunca existiram na realidade (e o casamento dele não foi tão açucarado).

- durante anos e anos, o tratamento típico era... choques eléctricos (!) e internamento num tipo especial de prisões a que se chamam "hospitais". As coisas melhoraram um pouco ultimamente.

- há um enorme problema moral, político e legal associado a tudo isto. Algumas pessoas têm uma percepção "diferente" da realidade. "Diferente" de quem? Das pessoas que se consideram a si mesmas "sãs" (em primeira linha, polícias, famílias e psiquiatras) e que decidem (claro, para o seu "bem") interná-las e dar-lhes choques eléctricos ou "medicamentação". Talvez algumas pessoas homossexuais entendam o que isto pode querer dizer. Se não, eu explico de bom grado.

- a AnacoZeca deve ser uma multinacional farmacêutica (se não for, peço perdão). No site que linkei só se fala nos "modernos medicamentos". O drama é que a maior parte das pessoas "doentes" não quer ouvir falar de médicos nem de hospitais nem de tartamentos modernos. Quer ser deixada em paz (pelos outros, por si mesma). Está terrivelmente assustada a um nível mais profundo do que o mais fundo abismo. Sente-se (e com razão) incompreendida pelas pessoas que a rodearam e a sufocaram desde que era uma criancita. Isto para dizer que não basta ir a correr à farmácia comprar as coisinhas milagrosas. Vejam os números: metade das pessoas varia entre o "melhorou, mas não muito" (depois de ser torturada durante anos) e "olha, morreu". É obra. Deixo aqui um link (infelizmente em inglês) de quem não acredita na "medicamentação" como solução:
http://www.webcom.com/thrive/schizo/welcome.shtml

- conto fazer um destes dias um outro post sobre o que me parecem ser os "primeiros traços" da alma dividida. Isso sim, poderá ser interessante (lá estou eu com a tentação de adivinhar o perfil das pessoas que me lêem). Mas de qualquer forma, não se esqueçam: cem mil pessoas em Portugal. Há um esquizoide perto de si (dentro de si?). Trate-o com respeito (se escrevesse em inglês, poderia dizer "with love").

- e às vezes as coisas pioram em mim. Era isto que eu queria dizer com a Serpente que passa (a propósito, isso é parte de um poema de Ângelo de Lima, um esquizofrénico que deixou algumas das maiores poesias que já se fizeram em Portugal. E que morreu em Rilhafoles. Coitado do Álvaro de Campos, não é? Coitado do Ângelo de Lima).

22.8.05

Passa, às vezes, a Serpente...


Passa sim. Mas não basta. Não consigo escrever. If I could tell you, I would let you know. Que pena.

14.8.05

Regras (por causa de alguns dos últimos posts da Gotika)

"Assumir a responsabilidade é o primeiro passo da maioridade. Cresçam.
Aceitem o castigo. Acabem com a impunidade. Paguem as multas. Párem no sinal vermelho. Cumpram o código da estrada. Paguem os impostos. Não deitem beatas na areia. Não peguem fogo às florestas. Não copiem nos exames. Não gastem acima das possibilidades. Sejam honestos. Párem de fazer favores. Não aceitem cunhas."

Isto diz a Gotika, e por trás disto está uma coisa mais complicada. Fala ela do "estado do país", de coisas como governos e férias de governantes e incêndios de verão e fugas a impostos. Verdade. Só que as coisas têm raízes fundas.

Há trezentos anos atrás, ou um pouco mais, aconteceu uma coisa estranha em algumas regiões da Europa. Ninguém sabe o verdadeiro motivo. Já se tentou explicar isso por serem as regiões onde havia liberdade de expressão, onde os Estados não usavam a Igreja Católica como quem tira as castanhas do lume com as patas do gato (falo da Inquisição, que não foi "medieval" como se costuma dizer, mas "moderna"); por os judeus estarem presentes, em vez de expulsos e clandestinos como na Espanha e Portugal; já se explicou até que o tempo frio faz bem aos miolos. Não sei qual seja a razão. Essa coisa estranha é o aparecimento de um tipo de sociedade em que as pessoas desenvolvem, conscientemente, regras de comportamento que não tem como justificação o medo à polícia ou à inquisição ou ao rei. Regras simples, como a de trabalhar à semana e beber só aos sábados. Regras simples, como as que permitem enriquecer. A pontualidade, que nós achamos uma "excentricidade inglesa" e compensamos com histórietas árabes para quem Allah é o senhor do Tempo.

Eu penso que o protestantismo teve um papel importante nisso, uma vez que induziu as pessoas a aprender a ler - para ler a Bíblia. Mas deve ter havido mais coisas. Mistérios da História.

Nos dias que se seguiram à derrota de Hitler, com Berlim em ruínas e as tropas inglesas, americanas e mongóis (os soldados soviéticos que entraram na Alemanha às ordens de Estaline eram basicamente mongóis, para se não sentirem "próximos" do povo derrotado...) patrulhavam a cidade, um capitão inglês da força aérea fazia uma madrugada um voo de rotina. Viu um bairro bombardeado, viu uma fila de pessoas paradas no meio das ruínas. Avisou os comandos militares. Foram ver. Bem, a fila de pessoas tinha na mão declarações de impostos. Aquele lugar tinha sido a Repartição de Finanças. No topo da fila, numas tábuas improvisadas, estava um funcionário, ou melhor (nesses dias não havia sequer Estado Alemão, que tinha sido dissolvido pelos ocupentes), um ex-funcionário das Finanças, com ar grave a recolher papéis e a entregar recibos. Os berlinenses não viam relação entre a derrota na Guerra e não cumprir uma coisa que lhes tinha sido pedida, ou ordenada, para aquele dia, para aquele preciso dia. Berlim demorou quinze anos, ou menos, a tornar-se de novo uma cidade rica.

A questão de observar ou não este tipo de regras (as "regras informais", não aquelas que estão na Lei, ou não apenas essas), e da relação entre isso e o desenvolvimento das sociedades tem sido estudada com muito interesse pelos teóricos do liberalismo (que precisamente não querem que a sociedade dependa do Governo para ter regras). Tem-se chegado à conclusão de que há basicamente dois modelos de sociedade, e de que esses modelos assentam numa diferente percepção da "confiança": num, as pessoas só confiam na "família" e nos "amigos". A confiança vem no sangue herdado ou no sangue da aliança masculina. É fácil ver aqui o modelo das Mafias. Mas é também o modelo que leva às "fidelidades partidárias", às declarações emocionadas dos patrões do futebol, às empresas em que o filho vai suceder ao pai e ao avô, ao modelo das cunhas e dos favores. Os autarcas da corrupção não estão onde estão por "oprimirem" o povo. Pelo contrário, fazem permanentemente favores a toda a "sua gente", mesmo que não conheçam pessoalmente a pessoa. É um modelo feudal. Estamos seguros, mas a segurança depende do poder do "chefe".

No outro modelo, as pessoas associam-se livremente segundo os seus interesses, e por isso encontram permanentemente desconhecidos em quem confiam sem ter razões de "sangue" para confiar. Não é por acaso que na Inglaterra ou na Alemanha ou na Holanda (que foram o motor deste novo mundo) se multiplicaram os "clubes", mesmo que sejam de caçadores de raposa, de coleccionadores de selos ou de arqueólogos, de "senhoras casadas" ou de "caridade". Não é por acaso que a organização não-hierárquica das igrejas protestantes facilitou um sentido de pertença à "comunidade" que as paróquias católicas nunca estimularam.

A diferença fundamental é que no caso da Mafia (que é o caso português), as regras existem porque Deus ou o Chefe ou a Polícia as impuseram. Não se diz "cumprir" ou "observar" as regras mas sim "obedecer" a elas. No caso "europeu" (que é também o japonês) as regras existem porque são caminhos para ajudar a atravessar a floresta. E não interessa quem o abriu, mas aonde ele nos leva.

Que é possível migrar de um modelo para o outro prova-o a Espanha dos últimos quarenta anos. Não é Governo que muda isso por decreto-lei. Não são os políticos, nem o ódio aos políticos, que aqui servem para alguma coisa. A caridade bem ordenada começa por si mesmo, diziam os antigos católicos. Quantos de nós se comandam a si mesmos o suficiente para viver segundo regras? (lembrei-me agora do filósofo Kant, de quem se dizia que a sua passagem diária a caminho da Universidade fazia ACERTAR O RELÓGIO DA IGREJA...). E, claro, para sujeitar essas regras à comparação com as regras do vizinho, não para o destruir a ele (vizinho) mas para as destruir a elas (regras) substituindo-as por outras mais ágeis ou eficientes ou úteis ou claras ou simples ou "boas"? Os jornais de ontem diziam que os portugueses gastam dois por cento do seu rendimento no Euromilhões. Quando gastarmos dois por cento do nosso tempo numa associação qualquer (uma igreja, um clube de coleccionadores de borboletas, uma associação cívica) as coisas começarão a dar os seus frutos.

É claro que não acredito que isso vá acontecer algum dia. Pelo menos, antes do colapso total da sociedade que conhecemos - o que para mim quer dizer, antes de 2015 ou 2020.

(isto deveria estar na Maré Negra, talvez).

13.8.05

La Serpenta canta



No Porto. Em Setembro, que é um bom mês para uma Serpente, Diamanda Galas. Por uma noite, a casa da música vai ser um lugar sagrado.

12.8.05

Fiquei a pensar num artigo que li no jornal há dias sobre um senhor que seria "um dos mais profundos dos pintores abstractos". Não sabia que havia na pintura abstracta degraus de "profundidade". O artigo dizia que ele era judeu e nao gostava de nazis (parece-me lógico), e que tinha desenvolvido uma "linguagem privada". Dizia que era muito importante vermos a exposição das obras dele, embora elas não comunicassem connosco. Dizia que a obra dele nos "remetia".

Descobri que sou o mais superficial dos escritores abstractos. Nada disto "remete". Não é muito importante ler o que aqui está. E não sou um senhor.

10.8.05

Descobri que sou esquizóide.

6.8.05

Cavalgar o tigre

A experiência da Maré Negra. Tem tudo para não servir de nada. Não vou ter tempo. É estranho, tantas coisas a dizer e nenhuma vontade de discutir. Cada dia que passa aumenta a distância que o mundo tem comigo. Evito os blogs de "actualidade política" como se fossem cães famintos. Ouvir falar em Barnabé ou em Blasfémias é como ouvir falar no guarda-redes do Boavista ou no árbitro do Penafiel - Campo de Ourique. Os jornais não desistem de pôr fotografiazinhas de comentadores com a mão apoiada no queixo, acho que isso foi inventado pelo António Barreto e copiado pelo Paulo Portas. E no entanto antigamente até os lia. Como mudei, como fiquei o mesmo.

O mundo actual impele à acção, e impele à constatação da suprema inutilidade de toda a acção. Releio Raymond Abellio, que compreendeu isso bem no já longínquo ano de 1943: doravante a política será a desvergonha, a acção política será a palha no vento. Releio Julius Evola; chegou o tempo de cavalgar o tigre. Ontem escutei, na missa, uma pequena meditação bem conduzida sobre a diferença entre "ter" e "ser". Tudo o que eu faça é do domínio do ter. Importa só o que seja.

E é essa a armadilha do mundo moderno: Ser, como uma forma de acção - em vez de agir, como uma forma do que se é. Não tenho a certeza de estar a escapar-lhe, e a palavra "escapar-lhe" já está irremediavelmente errada. Maré Negra: nomear as coisas, ensina a Bíblia, é ter poder sobre elas.

5.8.05

Fugiu de casa, dois minutos a porta da cozinha aberta. Talvez o apelo do sol. Ao contrário do que é costume, não voltou ao fim de duas horas, nem ao fim de seis horas. Não veio reclamar o jantar. Quatro dias e quatro noites andou por aí, como andamos todos no mundo. Sozinha. E depois voltou, derrotada. Magra. Ferida. Que inimigos enfrentou, que aventuras? E as aventuras não terminam sempre bem.

Ontem à noite, o Gatinho foi operado. Sobreviverá, até ao próximo desafio. Perdeu um olho. O outro continua tão azul como no primeiro dia. Diante da Vida, só podemos ajoelhar em espanto.

Já descobri o que me faz não gostar de Agosto. É duro morrer sob o sol. O fogo deve ser só o antigo fogo das piras dos heróis. E lembro-me de Alcacer-Quibir (ontem). Em Agosto, a derrota queima.

3.8.05

Agosto - o mês que tem a forma de um túnel. Detesto isto. Agosto foi feito para o Mediterrâneo grego e romano: o mundo de casas brancas, silêncio, o céu e o mar azuis escuros, azeitonas e vinho. Fora do Mediterrâneo e fora da Antiguidade é apenas o tempo do disparate: uma espécie de Carnaval alargado com demasiado barulho, demasiadas corzinhas, demasiado "divertir".

Há a praia, claro. Para mim é ainda mais obscena do que o resto.

Um túnel. Ao longe Setembro, o novo ano anunciado pelas uvas. Outubro, o mês da doce cerveja preta. Ao longe as coisas são sempre melhores.