30.12.04

Mistérios

O maior mistério é haver coisas que o não são, coisas que fazem sentido. Porque é que há alguma coisa em vez do nada? Porque é que há algumas coisas que compreendemos? Porque é que é possível fazer perguntas como estas, mesmo que para elas não haja resposta?

Gostava muito de pôr na Ribeira aquilo a que a Igreja chama a meditação dos mistérios. Muitos dos que aqui passam não acreditam nestas coisas estranhas, escolheram acreditar noutras talvez mais bonitas, não sei. Mas vou falar delas à mesma. São vinte (durante séculos foram quinze, são vinte desde há dois anos e as coisas que afinal mudam na Igreja não são sempre aquelas que nós pedimos que mudem). São vinte mistérios que contam histórias que tantas vezes são mal contadas porque se complica o que é simples (não há nada mais simples do que um mistério, é um mistério e pronto). São os mistérios da alegria, da glória, do sofrimento e da luz, cinco de cada. É deles que somos feitos. Mesmo quando mal damos por isso.

E portanto, um por um, vou-lhes pedir para falar. Os primeiros serão os mistérios da alegria, porque eu tenho andado triste outra vez nestes dias.

Voltei a Lisboa



Voltei a Lisboa, voltei a mim. Tive um Natal Natal, sem pais natais da coca-cola, sem musiquinhas, sem prendas a torto e a direito a não ser para os pequenitos para quem o mundo todo é ainda uma prenda por abrir. Um Natal centrado no milagre do tempo e não na ilusão dos dias da pressa. À meia noite na missa do galo, numa das igrejas mais bonitas de Portugal, revi candelabros antigos com a forma do dragão e as sombras que só a pedra do Norte sabe dar-nos. E voltei a Lisboa, devagarinho.

Cheguei à noite, e como faço tantas vezes fui andar a pé pelas casas velhas, pelas colinas. Ver, ouvir, respirar, pensar. Para quem sabe ver tudo são signos, diziam os sábios antigos, e talvez seja verdade. Estranhos foram os signos que vi. Numa rua movimentada, daquelas em que à meia noite ainda os carros fazem fila, um vulto no chão eram afinal dois homens abraçados, ou mais do que isso. Ao lado uma garrafa de vinho entornada, e os cabelos brancos de um deles não me fizeram pensar em sabedoria mas no dinheiro e no poder das fraquezas. Pareceu-me um mau sinal. Mas numa rua deserta (horas mortas) vi uma árvore cheia de ratos, não sabia que os ratos trepavam às árvores, e pensei nas falsas árvores de natal com que as coisas falsas se escondem brilhando. Não gostei muito, também. Vi uma fogueira a arder, menos mal mas não me aproximei. Vi uma coruja, e é sempre sinal de que a noite anda acordada. Passou por mim um homem que falava sozinho e dizia "isto não pode ser, não pode ser", e por mim passou nesse instante a humanidade toda. Vi um muro a que se encostavam raparigas fáceis de vida tão difícil. Numa loja havia uma tabuleta com o meu nome, não sei porquê. Como sempre nas cidades, não havia estrelas no céu.

Tudo é signo, tudo é sinal. Tudo está em olhar à volta, e em aprender que somos isto que somos porque somos o olhar de alguém, em nós pousado. E passei do Natal ao anúncio do Novo Ano (vestidos pretos nas lojas da cor), e isso sempre me fez lembrar aqueles DJ's que põem, uma a seguir à outra, duas músicas bonitas que não ligam bem. Não gosto desta semana de espera, desta semana de ano a agonizar e de um ano novo que promete aquilo que já devíamos saber que não vem. É como se desta vez o Carnaval fosse a seguir à Páscoa. Gosto mais dos fins do que dos princípios, escrevi aqui uma vez, e tenho pena que na vida não baste olhar para trás. É talvez por isso que não gosto dos dias.

A Clara terapeuta diz-me que as coisas estão a andar bem, voltei lá e também ali se disse "para o ano será melhor". Não sei. Os sonhos ensinaram-me que é sempre pena acordar. O mundo ensinou-me que é sempre pena sonhar. E eu aprendo facilmente, facilmente demais.

27.12.04

Se eu morrer antes de acordar



Dias de aniversários e passagens, mesmo quando as passagens são estreitas como estreitos fazemos os dias. Natal. Por uma daquelas coincidências que não há por haver vezes demais, o blog que deu vida a este blog fez agora um ano: encontrei-o numa noite fria de Fevereiro, e foi um texto sobre o Natal (não o Natal passado, mas o Natal que falta cumprir) que nele me fez abrir coisas que andavam quietas sob o gelo de que fui feito. Depois passou algum tempo, passaram-se coisas e passei-me eu, e no dia 25 de Março a Ribeira começou a correr, devagarinho como quem vai aprendendo a ser. Dia bonito, nove meses contados antes do dia Natal, e por isso o dia em que a Igreja revive a história de Gabriel-o-Anjo e de Maria-a-Verdadeira, a história da Anunciação: Ave Maria, um bom dia para começar, que foi nesse dia que tudo começou.

Nove meses agora passaram (nove meses, novos meses), e a Ribeira que eu sou deixou de caber em mim, portas tão frias tantas coisas. Como mudei para ser o mesmo! Sim, eu sou a Ribeira Negra, disse eu quando nos primeiros dias não sabia o que dizer, eu sou a Ribeira Negra e as luzes de néon não me sabem tocar, dark pride. Mas sabes, agora sei quem sou, sei de certeza o que quer dizer sou a Ribeira. Sou isto que vês aqui. E ainda bem que assim Alguém mo propôs.

Setembro, disse eu, e disse então é o Outono, sei que agora começa a dança de Goldmundo. Mas não sabia que ia ser assim. Logo a seguir adoeci, parei, cheguei ao fim de caminhos velhos e houve dias em que achei que me perdia. Mas as ribeiras sabem abrir novos sítios, não é, nem que tenham às vezes de se esconder na terra, e foi isso que me aconteceu. Afinal era simples, bastava envelhecer um bocadinho, ter medo um bocadinho, andar. E agora ando a aprender quem fui, ando a aprender a quem pertence o olhar que me contempla e abraça desde antes de ser mundo o mundo. Como o rapazinho do Rembrandt aqui atrás, vou a caminho de casa e vejo já ao longe abertos os braços do amor feito de verdade. Páscoa, Natal. Vinte anos feitos de andar, que sorte.

Sim, sou isto que vês aqui, coisas paradas. Mas é tão bom ter comigo este céu tão fresco, bocadinhos de azul que em mim se reflectem negros. Sou a ribeira que corre das terras altas. "oh minha alma, enfim sós, tu e eu!", disse uma vez Montherlant, mas não é verdade. Não estamos nunca sós. Fomos feitos por um olhar, como o mundo se faz todos os dias do olhar que sobre ele deitamos.

Se eu morrer antes de acordar, pensava eu tantas vezes, se eu morrer antes de subir o rio até à nascente, antes de me dissolver na foz de tantos mundos. Se eu morrer antes de acordar, sim, se cair e morrer na tarde quieta e ninguém souber dos meus passos, que tristeza. Por isso busquei sempre nesta terra um olhar e umas mãos que me acordassem. Sonhos tão fundos, como fundas são estas águas que aqui vês. Mas sabes, ontem, a caminho de Lisboa a caminho de casa e da casa que o Ano que começou me dará, ouvi cantar uma canção baixinha, um gospel feito de água a correr:

If I die before I awake,
angels watching over me my Lord.
Pray the Lord my soul to take,
angels watching over me.

If I live for other days,
angels watching over me my Lord.
Pray the Lord to guide my ways,
angels watching over me.

21.12.04

Madrinha

A minha Madrinha Gotika fez anos, ou fez anos o blog dela que é tudo, quase tudo o que dela sei. Hoje tem lá uns versos lindíssimos, como ela mesmo diz; e costuma dizer que não gosta de versos, embora eu ache que não gosta, antes, das coisas que os versos lhe dizem.

O que aqui fica não é uma tradução. É apenas o que consigo dizer de uma coisa que a Madrinha me ensinou a ver.

Obrigado, Gotika.



Deixa calar nas sombras que te abraçam
essas coisas frias que nos sonhos passam;
e deixa-as erguer-se em voz, fazer-se espuma,
nas noites feitas de estrela nenhuma.
Debruça-te sobre elas com ternura...
não lhes digas nada, dá-lhes sepultura...

Abre no teu coração a cova estreita,
deita-as de mansinho na noite perfeita...
estende sobre elas as asas tão quentes
(ardem e não voam...) das coisas que sentes.
E reza a mesma oração, devagarinho:
"possa o sangue inteiro ser em nós o vinho.."

Deixa calar. À tua volta o muro
fez-se luz quebrada, tempo sem futuro;
deixa calar os olhos que do mundo
guardam sombras quietas num silêncio fundo.
Vive toda em ti, e eternamente dorme:
sob a cruz tão branca canta a noite enorme...



20.12.04

25 de Abril Evolução?! 25 de Dezembro Atal!!

A maior parte dos meus amigos que justamente se indignou com o infeliz slogan do governo anda entretida agora a enviar cartõezitos de boas-festas dos quais anda ausente qualquer referência à Criança-Deus. Por todos os lados circulam bolinhas, estrelas e renas; já recebi também um coelho (no meu tempo deixávamos isso para a Páscoa), vários cometas e uma coisa que talvez seja arte moderna; mas desapareceram os cartões simples com pinturas do São José e da Virgem, das palhinhas e da alegria que faz os corações bater.

Eu percebo bem que se não acredite em coisas estranhas. Eu próprio não acredito na criação de riqueza pelo Estado, na justiça fiscal, na reencarnação ou nas virtudes da educação sexual nas escolas. Sou talvez muito velho e falta-me a fé simples que opera milagres. Mas não me passa pela cabeça mandar no 25 de Abril aos meus amigos de esquerda um cartão com uma girafa, ou no Halloween aos meus amigos wiccas um retrato a corpo inteiro do Marquês de Pombal. Não, o 25 de Abril não é Evolução. A cada um os seus deuses. Então porque é que agora recebo bolinhas, coelhos e cometas?! Porque é que tenho de ouvir, de todos os que não querem o Natal, a queixa de que não gostam do Natal?

18.12.04

Deus-Mãe



O Caravaggio aqui - e coisas que os meus amigos do Tapor disseram sobre arte e sobre coisas menores - fez-me recordar este quadro, o Filho Pródigo de Rembrandt. Passamos da pintura italiana para a pintura flamenga, da luz do Mediterrâneo para as brumas do Mar do Norte. Passamos para um pintor de que nunca gostei muito. Mas deste gosto, e esta pintura que está, creio, em S. Petersburgo da Rússia (algum dia o verei?) bastaria para que Rembrandt van Rijn ficasse guardado nas imagens que guardo comigo.

Continuamos na Bíblia, e da próxima vez hei-de pôr um quadro com deuses gregos ou com a natureza morta do fim. Um dia há-de ser. Mas agora é a história daquele miúdo filho de um milionário (milionário em rebanhos, em escravos, em tendas do deserto assombroso) que veio reclamar ao pai a sua herança, que veio dizer-lhe "a vida é curta e eu quero aproveitá-la bem, não me apetece esperar que morras". Os costumes dos judeus faziam disto uma coisa insólita. Era como se o filho renegasse o pai, e portanto se renegasse a si mesmo. E não se esqueçam que os judeus - povo ético, tão ético - não sabiam que havia uma coisa chamada perdão. Quem falhar uma vez só pode ser julgado, condenado, afastado, calado.

Talvez o pai o pudesse ter castigado, não sei. Mas preferiu (fraqueza de velho?) ceder e vender ovelhas e cabras e dar-lhe o dinheiro cobiçado. E o miúdo foi à vida dele, que é como quem diz foi fazer coisas que todos nós já quisemos fazer. Deve ter tido imensas namoradas de olhos de amêndoa. Deve ter provado o vinho quente da Síria. Deve ter corrido o deserto à conta dos cavalos tão puros do deserto. Deve ter dormido a sesta em palácios de mármore. E depois, um dia, as coisas deram noutras coisas. Os olhos de amêndoa olharam para outro lado, o vinho fez doer. O dinheiro acabou. Talvez tenha ficado doente, como se vê da sua cor tão cinzenta. As coisas correram mais do que os cavalos, e como sempre correram mal. E o miúdo acabou, sem saber como, sem saber nada, guardador de porcos de um homem que não entra nesta história. Davam-lhe para comer as sobras que os porcos não queriam. E o miúdo pensou em voltar atrás.

É difícil voltar atrás, não é, caminhar sobre os passos andados. E fez as coisas da maneira desajeitada que afinal tinha usado desde sempre. Pensou "vou ter com o Pai e vou pedir-lhe que me aceite entre os seus escravos. Pelo menos hei-de ver as palmeiras onde nasci, a fonte de água em que brinquei com os meus irmãos, a música que me embalou. Talvez consiga dormir à noite, sob as estrelas da infância. Talvez, talvez.". E pôs-se a caminho, miúdo cinzento como dourado tinha partido.

O fim da história está contado no quadro. O pai veio ao seu encontro, mal lhe vieram dizer que um mendigo se aproximava, a capa vermelha mal lançada aos ombros envelhecidos. O miúdo começou a falar, e não sabemos se conseguiu dizer alguma coisa se apenas chorou como chorara ao nascer. O pai não deve ter dito nada. E ao lado temos a figura que tantas vezes é a nossa, a do irmão mais velho que sempre se portara bem, que tinha ficado, que tomara conta, e que agora pensa "há qualquer coisa de injusto nisto tudo, eu é que devia ter este abraço, este silêncio, eu é que devia estar no meio do quadro do Rembrandt". O amor é sempre injusto, não é? Porque se tivéssemos só o amor que merecemos não teríamos quase amor nenhum.

Reparem nas mãos do pai. A esquerda tem veias salientes, é mão de homem cansado, dedos abertos para melhor agarrar. A outra... ai, a outra dedos tão finos, mãos de mulher, mãos de mãe, da mãe que também não sabíamos que entrava nesta história. Porque todo o amor tem qualquer coisa do amor da mãe pelo filho perdido. E é nestas coisas pequenas que se vê que andou aqui outra mão, a mão de mestre de um grande, grande pintor.

Poucos de nós gostariam de ter este quadro na sala, não é? É mais giro ter as cores soltas que agora se sabem fazer. Não gostamos de ver que os homens são isto, que a nossa casa de dentro é tudo isto que aqui se mostra: o miúdo cinzento, a capa vermelha, o olhar frio do irmão que se porta bem e que deixa as mãos ficar quietas. Gostamos mais de olhar para o corpo perfeito das raparigas. É fácil vê-las de olhos fechados. Mas eu acho que o velho da capa anda cego, mas é o único aqui cujo olhar nos olha de dentro.

15.12.04

Gótico

As árvores dançam
no espaço no tempo
são cordas vibrando
nos dedos do vento
Desfolham-se os ramos
destelham-se as casas
e sobem às nuvens
raízes com asas
e à fúria do vento,
vazios, cansados,
os homens entregam
os sonhos frustrados.
Destroços sem vida,
de vidas incalmas,
evolam-se os corpos,
só ficam as almas:
e as almas esfriam
na noite assombrada,
sedentas de tudo
já não pedem nada;
nem mal que lhes doa,
nem bem que as conforte,
são cordas vibrando
nos dedos da morte.

Nunca soube de quem são estes versos lindíssimos. Terão, pelo menos, trinta anos, e talvez sejam mais antigos. Sei que já foram cantados em noites calmas como se fossem um fado, ouvi-os eu em Lisboa, num bar que já não existe, como se fossem um choro. Tinha eu dezoito anos e não os voltei a esquecer. Gótico, digo, gótico puro, e não sei se a pessoa que os escreveu, se a pessoa que os cantava, se a pessoa que mos mostrou há tanto tempo compreenderiam alguma coisa disso, julgo que não.

Não havia eyeliner e não havia correntes de metal. Não havia tanta coisa que daqui a uns anos não haverá outra vez. Pode-se ser gótico e não se saber, como se pode ser homem e saber tão pouco do que isso seja. Mas há coisas nas almas de alguns que andam por aí desde sempre. São talvez os anjos baços.

12.12.04

Mistério da luz


Gosto muito de Caravaggio, o homem que pintou este quadro, e gosto muito da história que este quadro conta. É uma história estranha dos evangelhos: Depois da morte na cruz à vista de todos, corria o boato de que Jesus andava por aí, vivo de novo, homem de novo. Dizia-se que as mulheres o tinham visto, mas as mulheres vêem tanta coisa, beatas tontas. Dizia-se que Pedro fora ao túmulo e o encontrara vazio, mas mereceria Pedro confiança quando na própria noite da prisão e da tortura negara conhecer os amigos? E os homens que tinham seguido Jesus andavam dispersos, confusos, perdidos. O Reino de Israel fora talvez apenas um sonho mau.

Dois desses homens puseram-se, não sei porquê, a caminho de uma cidade chamada Emaús. Na estrada encontraram um caminhante, um tipo mais novo, calado, quieto. O mais novo perguntou-lhes, "e então, novidades de Jerusalém?". "Deves ser o único que não as sabe", disseram os mais velhos, "mataram o Carpinteiro, sabes, aquele que dizia ser o Filho do Homem, o tipo que curou os leprosos. Foram os romanos, ou talvez os reis, ou talvez os padres, ou talvez cada um de nós. Mataram-no numa noite terrível".

"Estava-se mesmo a ver que isso ia acontecer", respondeu o mais novo, "tudo isso se sabia há muito, muito tempo".

E o mais novo pôs-se a explicar-lhes o sentido de muitas coisas, de coisas que estavam escritas há séculos, de profecias, de sinais. Os mais velhos ouviam, faziam perguntas. E faziam uma pergunta dentro de si, quem será este?

Chegou a noite e chegou a luz acolhedora de uma estalagem. Tinham fome, foram cear. E o mais novo, no fim da refeição, disse de repente as palavras que os mais velhos já tinham ouvido, enquanto partia um pão e segurava a taça do vinho quente, "este é o meu sangue".

Os mais velhos olharam-no, e olharam-no como se os olhos se tivessem realmente aberto. E só aí reconheceram aquele com quem tinham vivido, cantado, dormido e sofrido durante três anos todos os dias. Só aí se rasgou a luz que cega. E disseram o que cada um de nós há-de sempre dizer, "onde estavam até agora os meus olhos baços?". Mas o mais novo desaparecera.

Gosto muito de Caravaggio, gosto muito do modo como ele inventou a luz e a sombra. Acho que ele nunca quis pintar um Cristo como nos habituámos a ver, com ar de sábio yogui oriental, com ar de quem faz meditação transcendental e é muito inteligente. Mas quis dar aos homens o rosto cansado dos homens. Em todos os quadros que contam a vida do Filho do Homem (e são tantos), os santos não são figurinhas de cera, não são meninos lindos, não são anjolas suspeitos. Parecem os sem-abrigo de que nos afastamos durante a noite, o tipo chato que está à nossa frente na fila, o vizinho embirrento. Têm caras esculpidas em cansaço e pintadas em espanto, rugas fundas na testa com o esforço de compreender alguma coisa da vida tão grande. Têm mãos cansadas e roupas rotas e adivinha-se que não tomam banho há algum tempo.

Mistérios. Grande, grande pintor, não acham? Grande pintor o Caravaggio, sim. E grande pintor aquele que em nós anda pintando a sombra forte dos dias, e a inimaginável luz do possível.

Inverno

Muitas coisas, poucas palavras. Tem sido difícil escrever. Mas a Ribeira ainda me faz sentido.

5.12.04

Soninho / Sininho

A Catarina-dos-sOnhOs (não, não vou pôr o link) fechou as asas e prepara-se para adormecer. Vejam como a fotografia é bonita. Falem baixinho para não acordar a borboleta azul. E preparem uma festa feita de risos para quando a Sininho acordar.

4.12.04

Nuorena nukkunut

Frans Eemil Sillanpää nasceu em Yla-Satakunta, filho de Franz Henrik Henriksson e de Loviisa Wilhelmina Isaaksdotter. Escreveu Nuorena nukkunut em 1931, sim, mas também Omistani ja omilleni (1924), Maan tasalta (1924), Tollinmaki (1925), Kiitos hetkista, Herra... (1930) e tantos outros.

Difícil de perceber, não é? Por isso é a Finlândia tão bonita. Está traduzido em português. Ele tem um prémio nobel. E entramos com ele numa terra estranha, e percebemos que a Europa não é só Londres e Paris.

1.12.04

Un Dó Li Tá, Moeda Boa, Moeda Má...

Mais um governo que aluiu, não se distinguindo nisso das pontes e dos túneis. Mais um tempo de espera festejado por pombas e saudado em surdina por falcões. Nada em que valha a pena demorar.

Vale a pena, no entanto, apontar a mentira onde ela se encontre. Refiro-me ao temível Professor Cavaco, que penosamente atravessámos há alguns anos (ai da memória curta dos povos) e que anunciou, pela primeira vez, o Homem Novo que causaria a admiração da Europa. Lembro-me dele, em tronco nu, trepando a um coqueiro, numa fotografia que fez as delícias dos jornais e a incredulidade da multidão.

Pois esse senhor veio avisar, no seu jeito de economista controleiro das coisas, que os políticos maus expulsam os políticos bons, como a má moeda expulsa a boa. É portanto urgente chamar os bons políticos, que é como quem diz desentesourar a boa moeda e lançar a má para o caixote de lixo da história.

Se eu estiver na república das bananas em férias e se puder pagar um táxi com dólares ou com o que seja a moeda local (imaginemos os "bananeses"), prefiro pagar com bananeses e guardar os dólares para o que der e vier. Há jogos de cartas que têm esta lógica simples: entrego aos meus parceiros os duques e quadras e vou guardando os ases e os reis. É por isso que as moedas de ouro nunca, antigamente, ficavam em circulação muito tempo: guardavam-se em covas para os tempos de guerra e de fome, e pagavam-se os impostos em notas do banco público ou, antes disso, nas moedas "quebradas" pelos reis (as moedas "quebradas" eram moedas que valiam, nominalmente, mais do que o metal de que eram feitas; os reis lançavam moedas de prata e, a pouco e pouco, misturavam outras coisas na prata mantendo o valor que aquilo teria se tudo fosse feito de prata pura. A economia é uma coisa simples para quem não leia demasiados jornais).

É uma coisa simples, e é por isso que a comparação do Professor Cavaco, vinda de quem vem, é prova de uma desonestidade intelectual que nos devia relembrar outras histórias do homem. Os bons políticos não estão entesourados em covas fundas à espera dos tempos difíceis. Eu não tenho bons políticos guardados, à espera de tempos novos. Antigamente, se a fome ou a peste ou a guerra fizessem por algum tempo desaparecer a polícia e a ganância dos cobradores de impostos (os novos xerifes de Nottingham vestem gravata mas continuam a ser tão salteadores como há mil anos) eu só conseguia comprar uma vaca se o vendedor tivesse razões para confiar em mim e, principalmente, no pagamento que lhe propunha. Ou seja, se eu tivesse oiro "sonante e cantante". O ouro - a "boa moeda" - era e é um problema de confiança.

Não é preciso ser um génio para entender que neste sítio que insiste em se considerar um país nenhum político merece confiança e a ninguém que mereça confiança ocorre sequer a possibilidade da política. Não há moeda boa. Há falsificações baratas, daquelas que se notam logo no toque, e falsificações elaboradas, daquelas que só os laboratórios detectam a tempo. Há políticos apalhaçados (do I need to name someone?) e políticos sisudos (ainda há dias alguém num jornal chamava pelo General Eanes, pelo amor de Deus). Há tontos que sabem que são tontos e tontos que se levam a sério. Mas não há ninguém em que possamos depositar cinco gramas de confiança. Ninguém que valha o preço da vaca que nos querem comprar.

Quer isto dizer que não há solução e que nada vale a pena? Não. Há, para já, duas soluções. Uma é a de escolher a falsificação mais caricata que o mercado nos ofereça. Não há falta delas. Prepararmo-nos para viver, quotidianamente, a hilariedade. Não deixar que se diga nem se faça nada de sério. A outra é, permanentemente, jogar uma variante do jogo das cadeirinhas que consiste em permanentemente - sim, permanentemente - tirar a cadeirinha ao tipo que se prepara para sentar. Em Junho foi um, ontem foi outro, esperemos que o próximo esteja a andar lá para Abril ou Maio.

Claro que ficamos com problemas terríveis por resolver. E se houver outro Prestige? E se houver mais desemprego? E se (como anunciou há três dias, não sei se alguém reparou, o director da Organização Mundial de Saúde para a Ásia) tivermos este Inverno ou no próximo uma epidemia global como foi a Gripe Espanhola em 1918 - mais mortos na Europa que a Primeira Guerra - e que, nas suas palavras, poderia fazer cem milhões de vítimas no mundo antes que as vacinas estivessem disponíveis? (Não se assustem; isso dá apenas, feitas as contas, cento e cinquenta mil mortos em Portugal - muitos de nós ficarão vivos). Pois, problemas terríveis, mundos frágeis. Mas olhem bem para a cara dos senhores que fingem que nos governam, olhem-nos como se estivessem a perceber se o tipo que vos quer comprar a vaca está ou não a passar moeda falsa. Um a um. Moeda boa?

Un.. dó... li... tá... olha, eleições.