Há dias dizia a uma pessoa de que gosto muito sem conhecer que "as máquinas e os animais não gostam de mim". O meu gatinho tolera-me, penso eu, e não lhe peço mais nada porque eu é que gosto dele e assim é que está bem. Mas as máquinas?! O meu computador portátil está pela segunda vez a arranjar em dois meses; ontem avariou-se o meu telemóvel; em casa, duas lâmpadas estouraram quando as acendi (sim, aquelas a que só chego com um escadote, eu que não tenho um escadote...); o leitor de CD recusa-se a ler dois que me gravaram ontem e que queria ouvir; o velho microondas faz um barulho cada vez mais suspeito; o ferro não aquece o suficiente para passar a roupa. E a máquina que é o meu corpo também não anda nos melhores dias: febre alta e dores nos olhos, depois de uma ida ao dentista. Com tudo isto, um dia de atrasar coisas que devia ter feito. Frio. E, o que é pior, querer escrever e ler e precisar de ter os olhos fechados.
Com tempo e noutra altura, talvez dissesse isto de outra maneira:
Existe, Deus, nem que seja por um instante; o tempo para permitires que nunca chame bondade à minha fraqueza, razão à minha força, justiça à minha vingança, verdade à minha diferença, amor ao meu desejo, demónio à minha escuridão, deus à minha imagem.
31.3.04
... é mais fácil falar de coisas grandes do que das coisas pequenas à minha volta. Isso deve vir também da febre com que tenho andado: suporto mal o barulho, a agitação, o dia. Outra vez a armadilha: não sou a noite, sou apenas o desejo da noite. Mais dois dias de antibióticos e verei nas maçãs da minha cozinha mais do que a imperfeição do vermelho.
30.3.04
Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias
dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse
para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua
natureza mais potente. Pois o belo apenas é
o começo do terrível, que só a custo podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha
destruir-nos. Todo o anjo é terrível.
Um texto de Rilke (As Elegias de Duíno), uma pintura de Franz von Stuck. Talvez também Dead can Dance: The Host of Seraphim. O belo, começo do terrível: de que coisa inominada será a luz o pálido e talvez enganador princípio?
Conhecer uma coisa é sempre devolvê-la ao Mistério de onde ela vem. Por isso conhecer te eleva. E por isso se te quiseres conhecer começa por alargar o vazio à tua volta. E não te assustes com a noite que se faça em ti; é nela que te distinguirás melhor das sombras do mundo.
Só nos filmes americanos há fantasmas nas casas modernas. Isso pode ser um argumento a favor do bom-gosto dos outros mundos. Mas pode haver uma outra razão, mais assustadora. Não há-de ser a morte: apesar dos hospitais as pessoas não escolhem o seu último lugar e o seu último momento. O que distingue as casas modernas é que nelas já não nascem crianças. E o momento do nascimento é tão terrível como o da morte. Nós é que raras vezes damos por ela.
Nunca soube contar uma acção quando escrevo: ela entrou, acendeu a luz e sentou-se na cadeira... vi uma vez num livro de história de arte que há centenas de quadros e gravuras inglesas com cavalos a correr, e que neles a sensação de velocidade é-nos dada por uma certa posição do corpo, da cabeça e das pernas do cavalo; a fotografia veio mostrar-nos, depois, que essa posição nunca acontece. A acção dos outros é uma coisa parada dentro de nós.
29.3.04
Demónio, de Vrubel. Tenho andado a reler um livro sobre anjos caídos (Intimações de morte, Ana Teresa Pereira) e a descobrir dois sobre vampiros (o fabuloso Interview with the Vampire e o catastrófico Memnoch, Anne Rice). Cada um deles merece um comentário demorado, e neles há coisas que nos falam - a frase é da Bíblia - de coisas escondidas desde a fundação do mundo. Mas hoje só estou a olhar para as asas deste demónio. As asas frias do desejo. "Como caíste do céu, Lucifer, filho da Aurora?".
Repara bem, e diz devagar a palavra inglesa: desire. (o Mal diz-se melhor em inglês, She desired dragons). E é logo impossível não sentir as asas e a falta delas, a insuportável proximidade das asas inacessíveis. E no desejo crês que estarias pronto para voar. Mas o que desejas não é nisto o mais importante, pois não? Desejar é em si o sentimento de tudo. E tu não desejas o que te falta, não desejas o que vês. Porque não és capaz de desejar por ti. Desejas sempre ver pelos olhos do outro, e no final seres o próprio desejo do outro por ti, porque sabes que nesse desejo finalmente existirias:
- "Tu ensinaste-me a ver!", disse ela. "Tu ensinaste-me as palavras olhos de vampiro", continuou. "Ensinaste-me a beber o mundo, a querer mais do que..." (in Entrevista, fala a vampira Cláudia).
Isto é simples, e ao mesmo tempo muito complicado. Repara na evolução da publicidade: já não te mostram o gelado, mas o desejo de um gelado. E no limite o desejo puro (desire), o desejo absoluto como é absoluto este demónio.
Não conheço nenhuma obra literária em que isto esteja tão claro como no Henry & June, de Anaïs Nin. Um dia hei-de falar mais desse. Mas o desejo do vampiro e as asas dos anjos caídos são a encarnação do desejo que se contempla a si mesmo.
E é por isso que se compreende - que se pode começar a compreender - o mais extenso dos dez mandamentos: "Não desejarás...". Não é na mulher do próximo que está o mal, ao contrário do que muitos julgam. É no simples desejar.
Por duas ou três vezes vi coisas que caminham na terra e que talvez venham de outro sítio. De duas tenho a certeza: já vi um fantasma e já vi o homem de azul, só não sei se me viram a mim. A terceira foi no princípio do Verão passado.
Tinha ido ao Bairro Alto como quando preciso da noite. Era sábado. Nas ruas havia gente e cores e risos demais e procurei um bar onde não reparassem em mim. E passei a noite comigo.
Quando saí era tarde e as cores tinham ido embora. Andei devagar. Havia nas esquinas um nevoeiro denso e lembrei-me do "Excalibur": o bafo do dragão. Agora era o Bairro e a noite estava acordada. Um gordo vestido de preto com figuras de sangue na roupa. Uma miúda a chorar. Dois namorados desistiam de um charro porque abraçar era mais perto, mas na parede atrás deles havia "fim" em letras de giz. À minha frente ia um grupo animado, riam um riso alto que incomodava. E então passou por nós uma rapariga de preto que andava muito depressa e no silêncio em que passou não a pude ver bem, só uma saia comprida e botas e nas costas um xaile grande ou um manto enrolado. Mas tive a certeza de um pescoço delgado e qualquer coisa de prata e lembrei-me dos versos da Sophia:
Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos...
"Gótica", pensei. "É igual à noite, ou talvez seja a noite que é igual a ela". E tive vontade de que ela se não afastasse muito. Parecia feita de tinta da china que o nevoeiro tivesse esborratado. O grupo animado entrou num carro e eu fugi da música que puseram e andei mais depressa, e era bom porque estava cansado mas assim ia chegar a casa mais rápido e já não havia ninguém entre mim e a rapariga de tinta da china.
Eu sempre andei muito, os meus passos são sempre largos e por isso é fácil andar depressa. Mas não me estava a aproximar. Ela ia já muito longe, quase a chegar à Rua do Carmo.
Concentrei-me nela como se estivesse numa caçada. E ela andou como se a distância fosse precisa. Quando cheguei aos Restauradores já tinha atravessado a praça toda e estava a subir a Avenida da Liberdade. E era sempre aquele vulto esguio, e era como se o nevoeiro a fizesse dançar.
"Preciso de dois quarteirões para te apanhar", pensei. "Não vires já". E andei como se corresse.
Andei cada vez mais depressa, tão depressa que agora tinha de ver o chão com cuidado e só de vez em quando podia levantar os olhos. Mas ela estava cada vez mais longe, era agora um vulto pequeno muito à frente, e não podia ser. Ela não ia a correr. Vi tudo o que podia ver dos seus passos. O xaile ou o manto esvoaçavam como se houvesse muito vento mas não havia vento nenhum. E o nevoeiro fechava-se como se estivesse ali para a ajudar.
Tive de parar numa esquina para deixar um táxi passar. Comecei a correr. Desviei-me de dois polícias. Não me aproximei nem um palmo. Já tínhamos saído da Avenida e ela entrou nas ruas cada vez mais estreitas que levam à minha casa. Como se me seguisse, embora fosse à minha frente. E fui eu que tive medo (mais ainda do que do homem de azul) e parei e dei uma volta grande para chegar a casa pelo caminho mais comprido. Ela não estava à minha porta, não. E já não havia nem rasto de nevoeiro.
Não tenho a certeza, claro. Mas acho que alguma coisa de fora caminhou no Bairro nessa noite.
28.3.04
J. Aston
Sorrowful fields, ablaze with sunflowers
any anxious colour, blue and gold
Impress your face across the mirror
Water falling, spilling over you
I see a scarecrow standing alone
A silhouete burning, a perfect form
A lonesome star, still and white
Some kind of jewel illuminates the night
A poison sun in a septic sky
Spitting on the open face of muddy water
Any anxious colour, blue and gold
Now don't say you're hungry
You're so damn cold - motherless child
in your overcoat
With your titian hair and your eyes of China Blue
Any anxious colour, blue and gold
blue and gold, blue and gold now, blue and gold
star craver
You're a wounded pussycat
and you're drenched by the rain
now you flee to the kitchen
see what love you can gain
with your titian hair
and your eyes of China blue
Any anxious colour, blue and gold
Antes que alguém venha dizer-me que aqui está o meu "dark side": não, não vou falar de israelitas e da Al-Qaeda, do George Bush e das próximas eleições, da queda das bolsas e dos campeonatos de futebol. Não vou falar desse lado escuro do mundo: que os mortos enterrem os seus mortos.
A Ribeira não é o meu dark side, e não é sequer o que os meus olhos vêem: é o que são os meus olhos quando estão cansados, e cansados é quando deixam de se saber fechar.
Não, não é o meu dark side. Se quiserem, é mais o meu dark pride. Eu sou a ribeira negra, e as luzes de néon não me sabem tocar.
Há uma sombra cega que comigo passa
quando eu passo entre vós durante o dia;
não sei de onde ela vem, nem de que raça
era aquele que ela foi quando vivia.
Só sei que me acompanha, cega e baça,
e me estende as mãos em sórdida agonia;
e quando a noite vem e ela me abraça
sinto os beijos tristes de uma boca fria...
E eu fico acordado, pela noite fora,
à espera que a sombra volte à sepultura,
que me deixe dormir, se vá embora...
Que quer ela de mim? O que procura
quando me vem assombrar, quando me implora
que a siga (-Só desta vez!...) na noite escura?
27.3.04
Nuvens, de Turner.
Assim somos nós, mesmo quando não damos por ela. E quando damos é preciso escolher: voltar para trás ou ir mais além, até à noite mais escura? Pintar pode ser ver o que há para além das coisas, para além da luz. Escrever pode ser olhar como se não houvesse nada no meio. Mas, e viver assim? Viver como se tudo fosse a primeira noite do mundo. Aprender a noite com o olhar nocturno do falcão.
Gosto de contar histórias, que são a única maneira de contar comigo. É nelas que por mim passa a vida, e tantas vidas por viver me dão as cores e os cheiros e os sabores de tantos tamanhos. Não sei o que há para lá do mar, nunca fui a Veneza e nunca fui a Granada. Mas não preciso de andar. Posso falar-te de Bombaim, e do barulho de uma rua em Madrid, e da cor da noite na Argentina, e dos olhos do lobo que agora está mais perto de ti, mesmo que nunca os tenha visto. No mundo fiz poucos passos; em vez disso coleccionei conchas, e ainda tenho pedrinhas que me trouxeram da Noruega, de África e da Tailândia.
O silêncio habita em mim. Mas gosto de ouvir as pessoas, e às vezes fico com aquele ar compenetrado, de olhos muito atentos, que têm o Snoopy ou o Hobbes. Às vezes passo uma noite inteira assim, a ouvir. É raro querer falar. Só aos meus grandes amigos digo tudo o que me vem à cabeça.
Esqueço sempre as regras dos jogos de cartas que me tentam ensinar, e acho que as pessoas fazem barulho demais. Gostava de xadrez, mas há muitos anos que não jogo. Gostava de envelhecer numa casa que tivesse uma biblioteca onde houvesse uma lareira e uma mesa de xadrez e em que nas noites de Inverno um amigo me viesse visitar para jogar um pouco e para ficar calado junto de mim. Nunca joguei bowling, mas sei que não tenho qualquer destreza fisica.
Preciso dos sinais que os outros não vêem. Gosto de todas as criaturas que têm em si algo de quebrado, no corpo ou na alma. Às vezes, na rua, escrevo numa folha o retrato de uma rapariga sentada à minha frente, quando o olhar e as mãos e o modo como o cabelo desobedece me gritam um pedido de ajuda que ninguém parece escutar.
Não gosto de cores misturadas. O amarelo, o azul e o vermelho puros só deviam ser usados dentro de casa. A natureza tem as suas próprias cores, e o preto é a cor que esclarece a luz. Mas é o mar cinzento que no mundo está mais perto de mim. Não sei nadar. Gosto de cerveja e as aguardentes fazem-me mal. Já bebi e já conheci outras drogas. Gosto de conduzir à noite, e de apagar os faróis quando não há nenhuma luz no mundo. Já fiz cem quilómetros por um olhar, e trezentos por um nascer do sol, mas se juntasse as músicas que me pertencem só juntaria músicas nocturnas. Não suporto o fado durante a manhã. Gosto do último momento do dia, e do último momento da noite. Gosto mais dos fins do que dos princípios, e cada vez mais para mim os princípios são apenas o prefácio da história que o fim nos vai contar. Mas as despedidas podem ser cruéis. Se tocar alguém pela última vez queria saber que era a última. Não tenho nome. Há anos que fico na fronteira de chorar. E a Lua nunca me ouviu. Não me disseram nada disto quando me mandaram crescer. E eu tentei sempre portar-me bem.
Gosto dos contos góticos ingleses, não do cego terror americano. Descobri Tolkien há muito tempo, num comboio que atravessava a noite alentejana. Gostava de poder dizer a alguém tudo o que sinto. Sou próximo dos lobos, são o meu totem ("Somos rubros lobos baços / perdidos na serrania / por entre sombras e passos / por entre a noite e o dia..."). Às vezes gostava de gritar. Não vi o Elephant Men, mas gostei muito da Bela e o Monstro, do Cocteau. Eu sou parecido com esse monstro ("Monstro de coração tão simples, hoje não quero casar contigo..."). Gostava de ter sido um príncipe, ou um cavaleiro. Gostava de fazer uma peregrinação a pé nos Caminhos de Santiago, e de chegar à Catedral ao amanhecer de 25 de Julho para rezar. Gostava de não ser eu. Gostava que o mundo não tivesse livros. Gostava que nos devolvessem as asas roubadas. Gosto de sinos de igreja. Gosto de estar sentado num baloiço sem balouçar. Gosto de me sentar no chão. Gosto de vaguear na Feira de Ladra com uns jeans velhos e umas sandálias. Não gosto de cognac nem de charutos nem de cocktails nem de diamantes. Gosto de espadas e de chapéus. Não gosto de jazz moderno. Gosto de violinos. Não gosto de conhecer pessoas. Gosto de descobrir um amigo. Não suporto barulho ao acordar. Muitas vezes acordo a tremer. Um gato adoptou-me e dormiu comigo. Gosto dos versos de Auden, mas não os compreendo ainda. Perdi-me em Londres com nove anos, e não tive medo nenhum. Perdi-me de amores aos dezasseis e tive muito medo. Perdi os versos mais bonitos que fiz e não me lembro deles. Perdi muito tempo. Gostava de escrever um romance. Gostava de saber o nome de muitas estrelas. Gostava de saber o que é ser mulher. Não gosto de chá de limão. Não gosto de luzes de néon. Gosto de varandas abertas para o mar ou para árvores, muitas árvores. Gosto de guitarras baixinho. Gosto de ficar a ver as andorinhas ao fim da tarde. Gostava de ler já a minha história para saber as páginas do fim. E os lobos, os lobos baços.
26.3.04
Durante muito tempo pensámos que o importante era iluminar, saber o que se escondia no fundo da noite. Agora começamos a saber que não fomos feitos para ser criaturas de luz, mas para resgatar a escuridão. Agora sabemos que importante é ir além, saber o que se esconde atrás da luz. E é agora que os olhos não podem mesmo estar fechados.
Sebastião da Gama:
Meus olhos nítidos, olhai,
em que mistérios creis ainda?...
A Ribeira Negra está aqui porque uma noite houve uma pessoa que me disse (no lugar certo, no momento certo) que ela aqui podia estar. Pareceu-me uma boa ideia, ou antes, pareceu-me que era coisa para aceitar. "Não há coincidências, sabes?", dissera-me ela.
Pois não, não há coincidências. Em toda a história do mundo, e em todas as histórias verdadeiras que o mundo tem, há coisas que foram propostas e se aceitaram, olhos nos olhos, e há coisas de que o olhar se desviou. Adivinham que coisas fizeram nascer outras coisas, não é?
Este dia 25 de Março, em que a Ribeira chegou aqui, é o dia em que desde há séculos se conta uma estranha história de aceitar. É uma história pequena: um anjo apareceu a uma rapariga e disse-lhe que dela nasceria um deus vivo, se ela quisesse. E ela quis. É um bom dia para a Ribeira começar, se for uma história verdadeira.
25.3.04
Há uma diferença entre as histórias verdadeiras e as histórias inventadas, aquelas em que "era uma vez": nas histórias de verdade por mais atrás que se vá já a conversa vai a meio, e por isso elas nunca se contam para chegar ao fim mas para chegar mais perto do princípio.
E isto é uma história verdadeira e não é, portanto, o princípio de coisa nenhuma; é uma página, tão a meio como outra qualquer, de uma história que ainda não sei como acaba e ainda não sei como começou. E só por isso não é muito difícil escrevê-la.