28.2.05

Feira da Ladra



Quando aos sábados, pela manhã, posso ir à Feira da Ladra, sinto-me como se tivesse voltado à minha infância. Nem sempre levo dinheiro, e não vou em busca de coisas raras; procuro, e encontro sempre, coisas vivas que não sejam iguais a todas as coisas. É uma alegria triste, igual à alegria da recordação: encontrar as coisas que já tive, aquelas que sempre quis, aquelas que em criança desprezei ou adorei ou ignorei e que me fizeram assim, tal como sou. Consegui uma vez comprar um Mercedes verde, e já me tinha esquecido que uma vez tinha tido um Mercedes verde; de outra vez vi um livro do Pinóquio, e soube que tinha tido medo de um desenho com uma baleia que havia dentro dele; da última vez quase chorei ao encontrar cubos de madeira com letras (não os pude comprar): foi em cubos exactamente iguais (seriam os mesmos?) que aprendi a ler, tinha três anos e perguntava à minha irmã "ensina-me gato, e pato e casa..". Só nunca encontrei a ameixoeira grande que se cobria de flores em Maio mesmo debaixo da janela do meu quarto, a ameixoeira nunca mais.

A feira da Ladra é feita de tesouros simples: encontrei uma vez um desenho original do Maurício, o autor da Mónica, autografado numa toalha de restaurante, pelo preço de dois maços de cigarros; encontrei castiçais iguais aos da minha avó e um estojo de barba igualzinho ao que o avô usava; encontrei postais de Paris em que um senhor chamado Artur escrevia em 1909 a uma tia-avó velhinha e dizia "é tão bonita a França, sigo para Veneza de comboio, tenho saudades da Adelaide"; encontrei uma peça de teatro de 1950 em que o próprio autor, com uma caneta sépia, amorosamente preparou uma segunda edição revista que nunca chegou e ser publicada; encontrei um azulejo oriundo do palácio real de Sintra (pelo menos assim me disse o vendedor) que tem pelo menos quatrocentos anos e que está pintado com um verde impossível; encontrei, e trouxe para casa, um azulejo certamente destinado a um colégio ou a um orfanato que diz "cumprirmos o nosso dever é a primeira lição da vida".

Já trouxe da feira da Ladra colecções da revista dos Jesuítas, a Brotéria, e da revista dos Franciscanos, a Itinerarium; já trouxe livrinhos de cow-boys, e o senhor que me vendeu uma porção deles (e alguns dos melhores, os fabulosos Silver Kane) me disse "lia livros desses quando tinha dez anos e era pastor em Aljustrel"; já trouxe quase todos os livros de Iris Murdoch, de Graham Greene, de Walter Scott, de Alexandre Herculano, de Chesterton e de Plutarco, livros raríssimos sobre ciência e filosofia e sociedades secretas e aventuras; já trouxe a verdade e a mentira, histórias de amor e de desespero, livros que nunca lerei e livros que salvei do lixo como quem resgata um naufragado.

Gosto de ver devagar as pessoas que andam devagar, como andamos quando estamos na praia ao fim da tarde e a maré baixa dá pedrinhas e conchas a quem as quiser apanhar; já vi uma rapariga italiana comover-se com poesias italianas (era tão bonita, magrinha de cabelos pretos em tranças), e duas raparigas escocesas folhear os versos de Pessoa e dizerem "queria saber português para ler isto"; já vi gente que vai comprar livros "bons" pisar Shakespeare, e arrancar folhas às memórias da infeliz duquesa de Longueville (edição de 1826) para chegar antes dos outros a um livro fosforescente, os Tesouros do Louvre ao Alcance de Todos. Já vi partir-se o bule de chá mais bonito que encontrei na minha vida (era oriental e tinha um dragão desenhado). Já vi muita coisa.

Um dia morrerei, penso, e as minhas coisas virão ter à feira da Ladra. Talvez alguém reconheça o meu Mercedes verde.

26.2.05

Outro eu, mim mesma (I)



Gosto mais do fim do que dos princípios, disse eu quando a Ribeira começou, tão calma. Há um ano (fez ontem) entrei na estrada que aqui me trouxe. Não sabia então que tanto havia para andar, que as estradas começam no primeiro degrau da nossa porta pequena: mistérios do mundo maior. Há um ano, pela primeira vez, entrei no mundo dos blogs, li os primeiros textos, vi por trás de coisas caladas coisas que me deram para escrever. Comentei brevemente um post da Gotika; falei de coisas que lhe não respondiam a ela, que a mim só diziam respeito. A Gotika respondeu, outros falaram. Palavra puxa palavra, habituei-me a andar aqui como quem se faz espelho ou rosa ou labirinto. Ribeira negra foi nome de tudo o que eu podia ser.

Sabes, Eu-mesma, este post é para ti. Diários fecham-se a sete chaves, alguém amargo aqui me dizia há dias. Sete chaves são seis a mais, que sempre perdi a chave primeira do diário que até mim me levasse; por isso nunca os meus diários tiveram mais que uma folha, nunca foram além de dizer não sei que se passa comigo. E por isso é a Ribeira o sítio onde aprendo a ser o que sempre fui: toda a vida fiz as nuvens chover, mais-nada.

(Não há coincidências? Estou num café, começou agora a mais triste das árias de Bach, lembro-me de a escutar uma vez e outra e outra aos catorze anos, sentado na janela grande de pedra da biblioteca de minha casa, foi nessa altura que me deixei acordar pela noite, e dava a janela - leste o meu post anterior? - para árvores velhas e por trás delas para a lua e o tanque de pedra onde quase sempre os gatos cantavam)

Quem quiser compreender que compreenda, tu saberás de que falo e sim, quanto à tua "provocaçãozinha" muito pouco tenho a dizer. Ali em baixo, no post sobre animais em que se fala de tanta coisa, vieste perguntar "então e os homossexuais, o casamento?". Disse eu que me desses tempo e vodka, mas ainda agora não sei, se soubesse talvez não andasse aqui. Por isso trouxe comigo a Danaide de Rodin, lembro-me de a ver em Paris (será a mesma?) num Janeiro de chuva no palácio onde Rilke habitou. É bom perdermo-nos em Paris, é pena a vida perder-nos. Mas sobre a vida sei poucas coisas.

"Expões-te demais", disseram-me também. Eu sei. Sou moreno por fora, mas por dentro um daqueles ruivos para quem uma manhã de sol já foi sol demais. Não sei se fui sempre assim. E agora, à minha volta, a Callas chora no lamento imenso da Madame Butterfly.

Perguntas-me de heranças, arrendamentos, coisas estranhas a que chamamos "direitos". "Direito à indiferença" dizem cartazes por esta Lisboa fora, e sim, a indiferença tem sido muitas vezes o mais que posso esperar, mais fácil é ser passageiro clandestino. Que cada um siga os seus caminhos, caminhos de César ou caminhos de Deus. Mas disseste também "Deus não discrimina", e era sobre isso que queria falar.

Vai longo este texto, Eu-mesma. E começando a falar tenho que falar muita coisa. Sim, vou ser fiel ao que me prometi quando a Ribeira nasceu: este há-de ser o lugar da história verdadeira. Um ano, não é? Um ano tanto tempo, mas de muitas coisas não pude ainda dizer nada: a verdade é que também ninguém me tinha perguntado (o Klatuu falou uma vez em "sensibilidade feminina", e para mim isso é um pleonasmo). Amor, casamento, sexualidade, Deus? Sim, muita coisa. Deixa-me ir devagar. Vou descobrir o que penso disso, contando-te coisas que me foram fazendo assim, e que nunca contei a ninguém. Não posso abusar do vodka. Mas sabes, não há nada a dizer que não esteja dito já nos ombros vencidos da Danaide.

25.2.05

Da minha janela vejo o inconsciente Douro...



Há pessoas que sabem quem são, e não o sabem ser. Outras há que sabem ser o que são, mas ignoram aquilo que sejam. Ontem pensei nisso, e pensei nestes dois retratos, separados por quase cem anos, separados por todo um mundo. A mulher à janela de Caspar David Friedrich, a rapariga à janela de Salvador Dali.

É fácil dizer que representam um a prisão e o outro a liberdade, fácil dizer que em ambos a mesma coisa se diz, a distância. Teria Dali adivinhado os versos de Pessoa, "fitando a proibida azul distância..."? Não sei.

Não sei não, mas sei que não há mundo que não tenha para nós uma janela antes dele. Ninguém sabe quem seja, sabendo sê-lo. E ontem soube a minha diferença: não sei quem sou, e não sei ser esse que ignoro quem seja.

22.2.05

Zeus, por causa de Socrates


Só para comparar as imagens, por causa do post anterior.

21.2.05

Cenas dos próximos capítulos



[texto de 22 Fevereiro, à tarde]

Não acredito nem gosto de coincidências, e por isso claro que este quadro não foi aqui inocentemente pendurado no dia seguinte ao de mais uma atarefada eleição. "A morte de Sócrates", de David, e o Cook do Tapor (no momento em que escrevo tenho cinco comentários já) vai-nos ensinando a ver a História por trás das histórias. Sobre isto - sobre a ligação entre os dois Sócrates - que cada um tire as lições que a si próprio quiser dar.

E agora o Dervixe pede bandarilhas, mas eu nem gosto de touradas. Queria só recordar, para quem já se não lembre, que este quadro nos fala da morte do filósofo Socrates, condenado a "suicidar-se" bebendo cicuta (é a bebida que lhe apresentam, a cena passa-se, creio, numa prisão) por castigo de ter "corrompido a juventude" ateniente com os seus ensinamentos.

O quadro assemelha-se, penso eu, à famosa Última Ceia de Leonardo. O Mestre e os discipulos (creio que Platão seja o único que não chora, o homem sentado junto do Mestre) reunidos na refeição mais solitária, e nem sequer sabemos se Judas-o-Traidor está presente, se um dos que puxam as barbas e teatralizam a dor não será um dos denunciantes aos impiedosos juízes. Talvez não importe. Vejam os encarnados e os azuis, as cores que revestem os apóstolos (as cores do tarot, também). E Sócrates-o-Sábio - "eu só sei que nada sei", lembram-se? - assemelha-se também aqui às representações de sempre de Zeus-Jupiter, o rei dos deuses do Olimpo. Não apenas pelas barbas venerandas, pela impressão de masculinidade forte que o seu corpo transmite sempre, desmentindo a velhice branca dos cabelos (ai o que uma crítica gay terá a dizer daquela mão que repousa no joelho...), mas também pelo modo como a túnica impossível lhe descobre o peito e o ventre de uma forma diferente da de todos os outros homens e de todos os outros deuses, também pelo gesto da mão apontada ao céu: eu sou o senhor dos relâmpagos, era o seu significado inicial. Vejam (basta ir ao Google e pedir imagens de Zeus) outras estátuas, outras pinturas. O Tapor saberá decerto ajudar-me aqui.

De modo que a morte de Sócrates é muito mais do que o retrato da injustiça definitiva (a condenação injusta do único Justo), é muito mais do que a homenagem de David-o-pintor ao mundo clássico que em breve será esquecido, a tempo de Delacroix-o-moderno começar a pintar as delícias femininas do Oriente (as mulheres aqui adivinham-se apenas, ao fundo, e não sabemos se são as amantes, as mulheres falsas do carcereiro ou as esposas indignadas das Braganças-de-todos-os-tempos). O que aqui está mostrado é a morte de todos os deuses, querida por todos os homens. A morte da sabedoria grega, do amor cristão, do inalcançável orgulho do paganismo antigo. Sim, Sócrates-o-divino vai morrer de morte matada. A taça da cicuta tem a forma do Graal. Restam os homens, e a desvairada solidão dos homens. Amanhã estaremos sozinhos. Sim, Napoleão pode entrar em cena.

20.2.05

O Tigre e o Dragão, por Goldmundo Ribas (Parte I)

Ao nobre Klatuu-dos-Gelos e ao múltiplo Tapor dedico
esta humilde fábula sobre desencontros e imaginação.
À Gotika, que talvez saiba do que estou a falar,
peço a indulgência que costuma acompanhar a sua pureza royale.

"Je suis la Guerre Civile. Je suis la Bonne Guerre"
HENRI DE MONTHERLANT



Recordo ainda com emoção (a que não é estranha a memória do generoso perfume de Angelica Hidalgo) o Inverno em que a noite, ou a falta dela, me conduziram ao rasto fulvo e inquietante do Tigre. Foi pouco antes do aparecimento, em Guardanapos, da inesperada e ruidosa Confraria do Dragão; agora, que a guerra entre os potentados ameaça incendiar as planícies largas de San Cristobal, resta-me lamentar ser um dos causadores involuntários da tragédia e esperar que o discernimento ainda fale mais alto que a rude fortuna das armas. Receio, porém, que seja tarde: o Tigre e o Dragão medem-se já, e só eu posso saber o que perde verdadeiramente o mundo com este confronto irremediável. Aprendi, tardiamente, que os homens são jardins de caminhos que se bifurcam; e que o mais alto destino é o de Pontifex, de fazedor de pontes, mesmo de pontes que não levem a sítio nenhum. Falhei aqui, mais por preguiça do que por cobardia: e quero ver nestes apontamentos mais a sentença que me condena do que o discurso que me justifique.

Sempre fui afortunado. O meu leve e monótono trabalho na Segunda Repartición de Pesos y Medidas raramente interfere no prazer clandestino de percorrer ociosamente o mal-afamado barrio chico de San Cristobal de Guardanapos, desprezado pelos turistas: ao fim da tarde, mal o consentem os imprevisíveis óculos de tartaruga de Laura Tyniosa, verifico com devoção o estado dos bens que a República quotidianamente me confia - quatro canetas envelhecidas e um carimbo que reproduz o heráldico orgulho das armas provinciais de Guardanapos (em campo de prata, duas mãos de mulher envoltas na legenda Lealdade e Bravura); embrulhado no sobretudo pardo que recebi de Jose Frias - juntamente com uma dívida de jogo - deslizo pela gasta calçada que abre para os obscuros botequins da Calle Duque de Consolas; na habitual terceira mesa de mármore da Meson Tellier, diante de um ponche duplo e da sublime tradução de Von Geertz do imenso Tratado da Dúvida de Huang Feng, contemporâneo de César, aguardo que a reminiscência obscena dos papéis amarelados da repartição se dissolva na sabedoria alquímica dos últimos raios do sol austral; depois, já noite fechada, enquanto na Plaza del Pueblo batem com estrondo os portões de bronze do Regimento de Caballeria de Puros, subo os cinco lances da escada fria que conduz ao meu quarto para trocar ansiosamente a invisível roupa diurna pelo negro capote, o chapéu largo e o punhal de mortífera prata do meu bisavô Umbelino Ribas el cisnero. Até ao amanhecer, não sou mais o escárnio dos homens.

Nesse tempo entrara a frequentar, discretamente, os vastos salões púrpura do Castillo de Tinieblas: a Gotika - o meu amigo Úria Menendez julgava tê-la encontrado muito antes, em Paris, sob o nome de Comtesse de Saint-Etienne - era nessa maravilha a anfitriã sempre velada, e imaginei imprecisamente, sob o seu amplo e perturbador manto branco aveludado, um vulto esguio em que cabelos rebeldes emoldurassem olhos a que atribuía um etéreo dourado: admirei demoradamente antes da guerra, no Athaeneum de Potsdam, uma pouco conhecida versão da Lady of Shalott de Gabriel Rossetti que brilhava precisamente nessa cor ingrata, e tenho razões para crer que o pré-rafaelita não tomou então para modelo, como se julga, a insignificante palidez da filha de Byron.

Éramos muitos os visitantes das Tinieblas, e as vastas horas da noite passávamo-las evocando lendas macabras de sangue e de lascívia, ao som de músicas impossivelmente negras e de um quente e abafado sussurro tanto feito de álcool como de imprecações em várias línguas. A espaços, a Gotika sentava-se brevemente para deixar a um ou outro recém-vindo um conselho, ou uma advertência, em que não podíamos deixar de pressentir a antiga sabedoria das nobres filhas de Lilith; mas, mais geralmente, as portas do Castillo Alto abriam-se sozinhas para a estranha multidão de visitantes ensimesmados. Era a noite de Guardanapos, sim, a noite do mistério maior.

Sobressaltei-me quando na mesa vizinha (escutava então uma inútil confidência de Jesus Ortega) se instalou pesadamente o vulto enorme e encapuçado do Tigre. Notei as suas mãos enluvadas semelhantes a garras, e instintivamente confirmei que o punhal de prata não largara a sua baínha. Confirmou-me Jesus tratar-se do célebre caudillo de Tormentas, e pude medir a sua inquietação no tremor que agitou o copo ainda cheio de aguardente; mal foi possível pretextou uma indisposição súbita e fez aparelhar o seu cavalo, deixando-me a mim, Goldmundo, hesitando entre a indelicadeza e a mais funda apreensão. Olhei a sombra que ocultava o rosto do desconhecido e acenei-lhe com uma garrafa acastanhada e baça. La sangre, murmurou o Tigre, negra es la sangre del muerto, negros son mis mensageros...

Seria fastidioso repetir aqui como escapei nessa noite às garras de aço (a Gotika estava ausente, dizia-se que por ser lua nova) e como lentamente cheguei a merecer uma consideração que julgo próxima da amizade por parte do solitário assassino de Los Placeres. Uns meses bastaram para que, quando fugazmente nos encontrávamos no Castillo, deixássemos a turba entregue às suas canções embriagadas e escolhêssemos repousar numa das mesas maiores; imune aos efeitos entorpecedores do álcool, o meu irascível companheiro narrava as suas estranhas viagens até à Rússia e aos Otomanos, ou calava-se numa contemplação interior de que só se arrancava para citar de memória um esquecido verso latino ou uma meditação alpina do filósofo de Sils-Maria. Nunca soube se eram verdadeiros os rumores que sobre ele corriam entre a criadagem; a sua presença atraía frequentemente a própria Gotika, que parecia conhecê-lo ou adivinhar-lhe alguns propósitos mais sombrios: e muitas vezes tive o privilégio de escutar as palavras cortantes e firmes da Señora Noche (assim lhe chamavam os índios), sentada disciplicentemente junto de mim e fazendo rodar distraidamente, nas magras luvas de renda, uma pequena e experimentada adaga tunisina. Até o Tigre se sentia então pouco à vontade.

Ausente numa das suas demoradas expedições de caça (tremo ao pensar quem serão as incautas presas do imperturbável), o Tigre tardou em aperceber-se da chegada à cidade dos sicários do Dragão. (Continua)

18.2.05

Reparei agora que o post sobre a Lúcia de Fátima tem treze (13) comentários, treze. Semiótica, dizia o Tapor. Pois. Eu acho que não há coincidências. E acho que alguém vai lá pôr mais uma coisita para me provar que Deus não existe :)

16.2.05

Libertação animal?



Ainda me lembro da primeira vez que vi numa livraria o livro de Peter Singer, "Libertação Animal". Mais um doido, pensei. Folheei e vi um tipo de argumentação típico dos filósofos anglo-saxónicos, e a frase "nenhuma diferença entre um animal humano e um animal não-humano". Logo, deveria ser proibido matar um porco nos mesmos termos em que o é matar um humano. E somos todos, afinal, Hannibal the Canibal. Ri-me e abri um livro de História.

Pois. Não devemos cuspir para o ar. Uns meses mais tarde, numa conversa que começou por ser uma conversa sobre o meu (e o do meu interlocutor) trabalho profissional, soube que estava a falar com uma jurista vegan (ou seja, um "vegetariano fundamentalista"). Aceitei (se ela não fosse uma rapariga bonita teria aceite tão facilmente?) ouvir os argumentos (se é que os havia). Ouvi-os. Não percebi quase nada. Fez-me impressão aquela convicção, tão forte como só costumo encontrar em pessoas religiosas. Pedi livros sobre isso e no dia seguinte levei para casa uma pilha de livros ingleses e americanos.

Como só me tinha acontecido uma vez anteriormente, uma coisa que comecei a ler mudou completamente a minha maneira de pensar. De facto havia argumentos, e irrefutáveis. Discutíveis para quem queira introduzir argumentos religiosos, do tipo "o homem é o rei da criação porque foi mandatado por deus". Mas irrefutáveis de um ponto de vista ético. Ou seja: se quisermos respeitar o princípio da não discriminação (tratar igualmente o que é igual), não há nenhuma razão para negar a um porco, a um gato ou a um cisne o direito à vida, se o reconhecermos a um homem que seja. Podemos, é claro, negar todos os direitos (é o que faz, inconscientemente, um tigre, por exemplo). Mas não podemos distinguir o que não tem fundamento racional para ser distinto.

Como me parece evidente, o argumento "gosto de bifes" não é um argumento eticamente aceitável.

Depois... ai, depois.. Durante uns meses fui um vegan consequente. Todos os meus amigos se enervaram comigo. ouvi coisas absolutamente ofensivas, ditas com a maior naturalidade e certamente ditadas pela estima. Soube o que é ser uma minoria discriminada. O meu problema era, além disso, a gula. EU gosto de bifes!!! Muita gente fazia questão de discutir receitas de strogonoff enquanto eu almoçava quatro folhas de alface. E não sei cozinhar. Ia para casa à noite (chego a casa geralmente tarde) com biscoitinhos de gengibre à minha espera. E às vezes descobria que tinha lido mal a embalagem e havia naqueles biscoitos, por exemplo, leite ou ovos. Pensei nas pessoas que estiveram presas injustamente. Pensei nos animais (mas eu não gosto particularmente de animais). Pensei que era indiferente ter ou não ter fome, porque tinha DECIDIDO não comer animais. Pensei que era um fraco. E um dia comi uma bolacha com ovo (tinha emagrecido três quilos, e três quilos representam para mim muito mais de 5%).

Hoje sou essa coisa vergonhosa que é um vegan não-praticante. Continuo a achar absolutamente injustificado matar um animal para comer ou para ter uma carteira em pele. Acho-me lamentável, mas não sei desistir de uma ideia porque não me dá jeito segui-la. Não gosto de dizer (estou a lembrar-me de um recente post da Gotika que aqui mencionei há dias, e de uma discussão sobre pecados que se lhe seguiu) que "não há pecados para que eu não seja pecador". Mas acho que faço isso (isto é, tenho essa atitude inconsequente) or orgulho (ou seja, mais um defeito) e não por verdadeira sinceridade. Além de seres fraco, digo a mim mesmo, gozas o orgulho de dizer "pelo menos intelectualmente sou perfeito".

E se não fosse cobarde, dizia porque é que escrevi isto hoje. (outro pecado, a preguiça: também é verdade que é tarde e ainda não jantei e isto já vai tão longo...)

14.2.05



Morreu Lucia, a pastora. Não morreu, infelizmente, a falta de vergonha dos senhores que se crêem representantes da "direita" e que caçam os votos "católicos" como quem caça moscas com vinagre. A campanha está "suspensa", foi decretado (ou fala-se disso) luto nacional. Não confirmei se é verdade. Por princípio não acredito nos jornais e nos jornalistas. Mas eu, Goldmundo, católico, não aceito o "luto nacional", e se isso se confirmar considero-me pessoalmente ofendido pelo Sr. Lopes e pelo Sr. Portas. Entendamo-nos:

Ou Fátima - tal como Lúcia a descreveu - aconteceu, ou não aconteceu. Se não aconteceu, Lúcia é uma velhinha como tantas outras, talvez meia tonta, talvez boa pessoa. Se aconteceu, Lúcia vive - porque a mensagem católica é uma mensagem de vida eterna - e encontrou finalmente, face a face, o Mistério que lhe foi dado adivinhar na Terra. Não há terceira hipótese, não há meios-termos, não há conciliação possível. Não há qualquer fundamento para "lutos" e "pesares" oficiais, a não ser uma brincadeira de mau-gosto.

É que, se Lucia não era mais que uma velhinha tonta (e devemos respeitar as velhinhas tontas), era uma velhinha que há mais de meio século decidiu retirar-se do "mundo" e professar na mais fechada, na mais silenciosa, na mais contemplativa das ordens religiosas: o Carmelo. O Carmelo, como Ordem, é mais antiga que a Igreja: é talvez, hoje em dia, a mais antiga organização do mundo "judeo-ocidental". Quem faz voto de entrada no Carmelo morre para nós, os vivos-da-terra, no dia em que as portas se fecham atrás de si. Não há luto - de ninguém - por uma freira carmelita; não há luto - nacional - por uma velhinha tonta. Por boa pessoa que seja.

Mas se Lucia tiver sido a Vidente de Fátima - se a Mãe de Deus se lhe tiver mesmo manifestado num dia quente de Maio de 1917 - então o dia de hoje é um dia de profunda alegria. Perdemos, na Terra, um filho de Adão e Eva, os pecadores; ganhámos, no céu, um filho eterno do Deus Vivo. A Igreja militante - nós - perdeu um membro insignificante; a Igreja Triunfante - os verdadeiramente vivos, os que contemplam a Verdade com o próprio Rosto da Verdade - ganhou mais uma alma para nos acompanhar, nos ajudar, nos fazer encontrar neste mundo de caminhos perdidos.

Acreditem no que quiserem. Mas em caso algum aceitem o luto. Fiquem contentes, os que não acreditam, porque morreu mais um dos que andava enganado. fiquem felizes, os que não gostam dos católicos, porque morreu mais uma dos que fizeram o ópio do povo. rejubilem os católicos porque nasceu mais um santo. Alegrem-se os homens de boa vontade, porque é bom ver uma pessoa que se manteve a vida toda fiel aos seus ideiais e às suas crenças. E todos - mas todos - revistamo-nos de luto por sermos quem somos: um país que aceita hipócritas destes como responsáveis, chefes, políticos, seja lá o que for.

P.S. Receei ver o silêncio dos meus bispos sobre este assunto. É altura de dizer que os bispos católicos são escolhidos pelo Papa, não por pedido do Cardeal de Lisboa mas, principalmente, por recomendação do Núncio ("embaixador") do Vaticano, e que até há bem pouco tempo tínhamos neste cargo um cavalheiro que não devia ser bom da cabeça, a avaliar por quem foi indicando aos pobres dos papas (ele vinha do tempo do Paulo VI). Parece que o Bispo de Setúbal já disse alguma coisa sobre isto. Cristo - há tanto tempo - também disse tudo o que há a dizer sobre esta gente: "sepulcros caiados de branco".

11.2.05

Em toda a noite a vida



"Here we suffer grief and pain,
here we meet to part again"


THOMAS HARDY, Tess of the D'Urbevilles

Mencionei uma alternadeira para, como sempre, falar de coisas que comigo andam. Podia ter calado o sítio onde a encontrei, só ter dito passei uma noite a falar da Rússia e ela tinha olhos azuis, branca-de-neve. Os leitores teriam seguido adiante e hoje falaria aqui de outras coisas, falando baixinho sempre do mesmo. Mas mencionei uma alternadeira (também mencionei Elizsabetha a Czarina, mas a essa ninguém ligou): pela mão hábil do Rasputine-do-Tapor chegou a primeira farpa, a Gotika misturou-me com prostituição e coisas masculinas, no Tapor já se fala de sombrias mulheres-de-estrada e de inúteis bordéis madrilenos; fui eu, Goldmundo, o ingénuo causador desta agitação, e só a mim posso censurar. Mas seja. Venha a farpa do Rasputine, venha o traje-de-luces do Dervixe, venham a Gotika e os seus Sisters of Mercy. Vamos então à alternativa.

(Deixem-me, antes, contar esta história: quando Gustave Flaubert publicou, nos idos do séc. XIX, a sua Madame de Bovary - o primeiro romance a falar explicitamente do adultério do ponto de vista feminino, e do ponto de vista tão moderno de julgar tudo fingindo que se não julga nada - o escândalo foi tal que também o escritor acabou julgado, e julgado num tribunal severo de togas negras e maridos urrantes, acusado de difamar sabe-se lá quem, sabe-se lá o quê. Intima-o o juiz, levante-se o réu e diga ao Tribunal quem é a Madame de Bovary! E a resposta imortal de Flaubert: Madame de Bovary, c'est moi!)

Pois eu, Goldmundo, gosto às vezes de alternadeiras, sim, e não gosto nunca de prostituição mesmo quando gosto de prostitutas. Como distinguir o que anda tão próximo? Talvez com a ajuda da Nastassja Kinski que ali está em cima, junto com o Polanski realizador que dela fez uma Tess como nunca o Thomas Hardy sonhou sequer. Não trocava aqueles olhos fundos, aquele corpo sempre velado, aquelas mãos que se não deixam ver (tão sérias), por toda a crueza de todos os bordéis do mundo. Nunca troquei a noite toda por um momento de luzes falsas. Às vezes (só às vezes) tenho pena de ser assim, e uma noite descobri que tenho pena de ser assim porque me fui fazendo também uma alternadeira. E por isso vou falar agora como se a Nastassja me fitasse, tão pura. Como se vocês me pagassem um cocktail azul para vos entreter.



Lembro-me (lembrar-me-ei sempre) da minha primeira humilhação pública. Tinha treze anos. Estava numa aula de "Religião e Moral". Tive o azar de ter como professor um padre progressista, que é assim um bicho como um coelho carnívoro. Logo na primeira aula, enquanto lá fora os estudantes mais velhos enfrentavam com pedras a polícia de choque (não, já não era a polícia fascista, era a polícia revolucionária), o homem sentou-se em cima da secretária, fatinho cinzento paisano e sandálias de franciscano acomodado, e disse "sou padre, jovens, mas isso não quer dizer nada. Falo a vossa linguagem, sabem? Não acreditam? Ouçam: merda, merda. Hã, falo ou não falo?". Pois. Decerto falava.

Nesses anos fluidos os programas da escola eram também vagos, e as aulas de Moral eram ocupadas com os "problemas" da juventude. A "política" e as "gajas", como dizia o bom do padre piscando os olhinhos turvos, enquanto nos tentava convencer, pela calada, da cristandade do socialismo e da santidade dos "operários". E uma vez anunciou que o tema ia ser "pornografia".

Nesses anos de libertação os quiosques andavam cheios de lixo pornográfico e de jornalecos políticos. O "Povo Livre" e o "Avante", que se vendiam às carradas, não disputavam espaço às revistas cor-de-rosa nem às de informática nem às "Marias atrevidas", não. Era porno mesmo. O padreco rejubilava. Eu estava, lembro-me bem, a jogar a batalha naval com o Zé Fernando. Devo-me ter distraído cinco minutos. "E tu ao fundo, o que sentes?" , berrou a voz gorda do padre-que-não-queria-dizer-nada. Eu? Sim, era comigo, Goldmundito se assim me posso chamar. Ai, já nessa altura nunca sabia bem o que sentia. Ó rapaz, que sentes quando vês essas revistas, essas gajas, essas coxas, hum?. E eu que ainda não era uma alternadeira, sabem? Que pena, pensei, vendo os olhitos cobiçosos do s'tor: "Revistas? Nada, S'tor. Não sinto nada, S'tor. Desculpe."



Deves ser paneleiro, disse distintamente o padre, e passou a conversa ao Valdemar, que tinha dezassete anos e até já fumava charros no balneário. Será?

Passaram muitos anos e eu cresci, ou pelo menos tentei. Enamorei-me aos dezasseis anos. Aprendi a chorar aos dezassete. Casei aos vinte e dois. Algumas coisas nunca foram simples. Andei por aí. Com vinte anos não tive coragem, depois de uma noite de copos, de me afastar de um grupo de amigos que insistia em festejar não me lembro o quê na Rosette, a casa de meninas cantada tempos antes pelos saudosos Taxi. Como na aula do padre, continuava a não sentir nada, e continuava com medo da humilhação. Entrámos para um hall forrado a veludo, reparei numa revista pousada, num candeeiro incongruente. Esperámos. Chegaram quatro raparigas (duas mais altas que eu), e soubemos que éramos nós a escolher. Consegui que o velho princípio da exclusão de partes decidisse por mim. Não me lembro do nome dela, era de Viana do Castelo e eu perguntei-lhe se não preferia conversar. Ofendeu-se. Disse-me que a culpa era das brasileiras, que punham os homens doidos mas eram ladras. Despiu-se (nunca tinha visto uma mulher despida). Não era muito bonita. Não era muito feia. Era tão insípida como um quadro da Paula Rego. Ou melhor, ela nem sei como era, tudo aquilo é que era um quadro da Paula Rego. Convenci-a de que tinha bebido demais. Aprendi que as meias-horas ali andam depressa. Saí e disse aos meus amigos "temos que voltar". Sempre fui um cobarde. Depois a Rosette passou de moda.

Tantos anos passaram, tantas coisas. Não quero entrar em pormenores. Aprendi (tarde, más horas) que é possível encontrar um rosto que se não desfaz em pó quando dele nos aproximamos. Que é possível estar calado sem calar nada. Que existem coisas como acordar feliz. Aprendi que as coisas passam por nós e que nós não passamos delas. Guardei sempre comigo o olhar fechado da Nastassja Kinski. E aprendi que vejo as pessoas como se lhes tocasse, e por isso quando às vezes me apetece tocar em alguém é só porque a queria ver mais de perto. Não sei se os Sisters cantam estas coisas.



Aos trinta anos namorei-me de me enamorar. Aprendi devagarinho a fala e o corpo das mulheres como se tivesse voltado à escola. Disse vezes demais a palavra "sempre". Depois fui-me calando, como se fosse um pôr-do-sol de Setembro. Aprendi a guardar as coisas que não tenho como coisas ausentes que só assim podem ser minhas. Os amigos fáceis dos tempos da Rosette rumaram a casamentos e divórcios a que tentei não assistir, e nunca mais soube deles porque com os mortos não quero nada. Encontrei amigos verdadeiros, ou antes foram-me eles encontrando. Uma noite, por causa da Gotika, recomecei a escrever. E aqui estou.

Prefiro passar uma hora com uma alternadeira a pedir a um amigo o favor gratuito de me aturar. Contas são contas, mesmo quando nada há para contar que valha a pena. Mas não tenho o hábito de as visitar. É muito raro querer falar. Basta-me geralmente ouvir, ou escrever, e há a música e há afinal as pessoas todas (os livros todos). Às vezes vou para as ouvir, e elas dizem sempre a verdade se for a verdade que lhes pedirmos. Julgo que a vida as obrigou a isso.

Isto vai muito grande, e estou cansado. Outro dia continuarei, e hei-de falar das coisas que se aprendem do mundo, "a Etelvina fugiu com o Vítor da Ourivesaria, o coxo, mas o filho veio-se a saber que era do russo porteiro do J...; tinha sido despedida onze vezes pelo Esteves patrão, aquele a quem uma vez sairam vinte mil contos no Estoril e não quis mais nada senão ir para a França com a Xica brasileira". Mas somos todos a Etelvina, somos todos o Vitor coxo. Não aprendemos nada que não pudéssemos já saber. Só queria recordar, a quem achar que estou a ser pouco masculino e que sexo é sempre sexo, como coxa é sempre coxa, a frase grande de um dos primeiros discípulos de Freud: "como é evidente, o pénis é essencialmente um símbolo fálico".


(Roubei o título deste post à crónica de hoje, no Público,
do João Bénard da Costa. Desculpe, Senhor Dr.)

8.2.05

Todos os nomes do nada



Ora então, Kearinn-a-Velada, Clara-a-morena, aqui venho responder à vossa pergunta, atrasado como atrasada anda a chuva tão doce, como atrasadas andam sempre as coisas puras que ainda não nos encontraram. Dia estranho este, sabem, dia em que as máscaras fingem que não mandaram já no ano todo, dia em que mais valia ser diferente, tão negro. Talvez volte a falar disto. Mas agora perguntam-me que busco eu, para que olho quando digo que não é suposto sabermos quem somos. E perguntam-me que faço eu junto da Clara-a-outra, a Clara-terapeuta, e talvez também que faço eu aqui na Ribeira, para onde quero ir afinal quando daqui me for embora.

Não sabemos quem somos, não, e por isso tantos pensam que se andam buscando a si mesmos. Mesmo eu já assim pensei. Como se houvesse dentro de mim uma verdade-à-espera, como se houvesse cá dentro um embrulhinho esquecido nos cantos do natal-da-infância, um rosto-por-abrir, umas mãos virgens de mundo. Pensei, sim, e ainda bem que pensei porque se não fosse assim não me tinha talvez deitado à estrada. E a estrada começa sempre à nossa porta, não é, mesmo a estrada que vai direitinha oa fim do mundo começa aqui, nos degraus da minha porta pequena.

Nós somos a imperfeição. Somos o vaso quebrado. Somos letreiros gravados em línguas que não foram inda inventadas. Índias grandes a que nenhum Gama arribará. Baixios nos mapas de Deus, feitos para navios naufragarem. Músicas tentando atravessar o vazio árctico das almas, rosas mortas. Isso somos, sim, e por isso não sabemos de quem somos senão que somos isto que queríamos saber ser. O resto são coisas nenhumas.

O resto, Kearinn-a-negra, é esta coisa que nos atinge às vezes como o raio do sol inesperado. O resto, Clara-a-esguia, é este escutar-cá-dentro que nos diz que vale a pena valer a pena. O resto é voz que nos chama, e a essa voz chamamos verdade, e chamamos bem. Mas não, não sabemos quem somos, sabemos só que somos chamados a um dia ser finalmente alguma coisa. Não sabemos onde nem como nem quando nem porquê. E por isso tantas vezes fingimos que anda em nós a verdade inteira, que os nossos gestos são claros e as nossas palavras certas. E esquecemo-nos de calar.

O que procuro na Clara-a-outra, o que procuro no jogo-de-falar-verdade em que a terapia se diz, é apenas aliviar a carga. Abrir a mochila dos anos para deitar fora as pedras que a minha avareza acumulou, as areias que no meu orgulho quis ver pedras preciosas, tesouros, coisas-de-mim. Mais nada, sabes, mais nada.

Somos todos tão calados, sabes, por isso disse eu "somos todos alternadeiras". Dizemos coisas para fingir que dizemos coisas. Sorrimos para fingir que sorrimos. Dormimos para adormecer. E sabemos que a verdade anda lá fora, como lá fora andam os monstros a rondar. Odiamos a beleza, sabes, Kearinn, odiamo-la mesmo quando ela nos fala de tudo, vê a arrogância da arte moderna que nos grita "vê na minha fealdade como a beleza era ilusória, vê nas minhas cores imperfeitas como não vale a pena buscar a nascente do arco-íris". Vê. Olha à volta, Clara, e diz-me de que falas tu quando ficas calada contigo. Não sabemos quem somos: mas sabemos, se quisermos saber, que Alguém sabe quem somos desde sempre. Sabemos, como disse um dos meus amigos-do-Tapor, que só nos vemos bem no olhar de um Outro, e por isso tudo o que somos só pode estar de raíz na verdade de um olhar eterno - (e)terno. Sabemos que toda a Terra procura um Rosto.

Não, não sei quem sou nem de tal engano ando à procura. Sou um vagabundo, um peregrino, um caminhante, um exilado. A minha terra não é aqui. A água que bebo faz-me ter sede de novo. Procuro um Rosto desenhado nos céus, na tua mão, em Lisboa vista de avião a pousar, nas letras com que Cervantes terminou o Quichote, no desenho dos bolos do balcão da Confeitaria Cister. Um dia verei a Verdade face a face como agora vejo as coisas nenhumas. Um dia a Verdade olhará para mim de rosto descoberto, e saberei as coisas que podia ter visto e guardado e oferecido e criado e que por minhas mãos desperdicei. Um dia talvez seja abraçado. Um dia.

O resto, amigas, o resto todo do mundo, são coisas de atravessar. Não sabemos quem somos, ainda não. E nos nomes que nos fazemos vêm só todos os nomes do nada.

2.2.05

From Russia with Love



Estava ao fundo do bar uma rapariga de azul, havia a música da Dulce Pontes, "o meu batel...", havia cerveja que era tudo (quase tudo) o que eu procurava. Tão tarde, não é, tão triste... Mas não procurava a rapariga de azul, nem sabia que ela lá estava, e a primeira que tinha vindo ter comigo (na porta ao lado não havia Dulce Pontes) era colombiana e disse-me que se chamava Vanessa.

Era linda sim, e por isso não chamava a atenção, sentada de azul na mesa do fundo, e junto a mim havia um homem de sessenta anos (careca, vestido de vermelho e verde, abraçado a duas brasileiras e ainda o ouvi dizer "sou o maior") e havia homens sozinhos e no fundo todos estavamos sozinhos e eu achei que talvez algumas delas soubessem disso. Sim, não chamava a atenção nem chamou por mim como fizeram primeiro a Vera (romena) e depois a Tatiana (portuguesa). Fui eu que chamei por ela e por quem chamei foi pela Russia. Pela Russia que trazia dentro de mim.

Se numa destas noites viste uma sombra num bar de alterne a falar duas horas com uma rapariga de azul... Sabes, falámos de Tolstoi (é a fotografia dele que está aqui, o meu amor russo não precisa de ser jovem e falso), falámos de Gorki e de Lermontov, de Tschaikovski e de Prokofiev, de Lenin e das manhãs de 89 em que a estrela caiu (ela era pequenita e lembra-se de que nevava em Moscovo). Contou-me histórias de Dostoievski e contou-me histórias de Elizabetha a Czarina. Ivan Grozni, pois. Já esteve em S. Petersburgo e também já esteve em Sintra. Pois, eu sei. Veio para cá, trabalhou num hotel, vida difícil, dinheiro, esta vida também não é assim tão má (terá ela um daqueles namorados que fizeram o Afeganistão e que te matam sem pestanejar?). From Russia with love.

Era muito bonita sim, e por isso não chamava a atenção de ninguém e às vezes é bom passar um tempo com uma rapariga que fala devagar e que tem umas mãos que só podem ter sido feitas de neve e de Sibéria e é por isso que ela faz o gesto de se embrulhar num xaile como se se tivesse esquecido de que cinco graus não é assim tanto frio. Estudou direito, pensou advogar, gosta de discotecas e de luzes, olhos azuis. Alternadeira, dizem os jornalistas, e todos os outros dizem outras coisas e pensam em coisas que só dizem quando estão encostados àquela parede de veludo encarnado, brasileiras tão fáceis. Eu não pertenço ali. Mas estou bem, porque não pertencer sei bem o que é. Mais uma cerveja, e voltaram a pôr a Dulce Pontes, agora canta o italiano cego, que pensará ele quando lhe falam deste azul, desta Russia, deste amor junto aos cortinados de veludo? Sei lá, quero é beber e ouvir falar do Guerra e Paz e do General Rostopchine que incendiou Moscovo em 1812. Sim, história nesta mesa e histórias nas mesas à volta, sei lá, não quero saber.

Despediu-se com um sorriso engraçado.