As coisas que eu sou (I): Os despojos do dia
Não sei porque é que me deu hoje para falar disto, nem se saberei falar, com vagar e com nitidez, das coisas que eu sou, das coisas que me fizeram - livros, filmes, talvez algumas paisagens e algumas casas e talvez também algumas pessoas que na minha vida passaram como um filme, uma paisagem ou talvez, temporariamente, uma casa. Deve ser por ser Setembro, por a luz andar cada dia a entristecer.
E de entristecer é a história com que começo, o fabuloso filme (ainda não li o livro que tenho na minha prateleira, e talvez tenha medo de me desiludir, ou de entristecer mais) de Anthony Hopkins e de Emma Thomson, de toda uma Europa e de toda uma casa que foi feita para durar, como para durar foi feito este nosso mundo. Tão frágil. Tão frágil Emma Thomson, tão frágeis as mãos. Mas é melhor contar as coisas desde o princípio. Vamos ver se me lembro, porque vi este filme demasiadas vezes para reter pormenores, cada vez mais só vão ficando os olhos e as mãos e o silêncio e as coisas quebradas, só vai ficando o que afinal importa.
Há uma casa grande, talvez no Norte de Inglaterra, uma daquelas casas inglesas que nos ensinam que não há tantas diferenças assim entre um castelo e um palácio, rodeada por um lago e por árvores grandes que devem esconder pássaros e ribeiros e amoras silvestres e que é habitada por um lorde simpático, grisalho, solteirão, cheio de boas intenções e cheio de falta de senso. Há um batalhão de criados chefiados por um mordomo que sempre lá esteve, Mr. Stevens (Anthony Hopkins) e por uma governanta recém-chegada (Emma Thomson). Há Mr. Stevens Senior, o antigo mordomo reformado e pai do actual (e pai e filho tratam-se por "Mr. Stevens" e já vou explicar porquê). Há um sobrinho do Lorde que creio ser um inacreditavelmente jovem Hugh Grant. Há a casa, e a casa é o principal personagem. A casa, o mundo, as pessoas: os despojos do dia.
O lorde lá em cima, entre as tapeçarias e as lareiras acesas, planeia a aliança e a paz com a Alemanha de Hitler em que tantos ingleses acreditaram antes dos anos da guerra. Para ele há todo um mundo a preservar, um mundo tranquilo como tranquila era aquela casa ao fim da tarde e de que ele acredita ser o servidor fiel. Mr. Stevens, lá em baixo, reproduz com meticulosidade a ordem que reina (porque ele a faz reinar) em todo o lado. Ele sabe o sítio das coisas, o lugar dos homens, o tempo de fazer com que as coisas nasçam. O lorde vai ter convidados de toda a Europa, diplomatas e políticos vão tratar grandes coisas, como a paz e a guerra. Haverá franceses e alemães, aristocratas e raposas. O lume tem de estar aceso, o chá tem de estar pronto, no jantar não pode faltar uma atenção, um esmero, um cuidado. Hoje a Casa vai ser a Inglaterra, e a Inglaterra vai ser o Império.
E por isso a vida de Mr. Stevens cruza a vida da governanta sem ter tempo para a palavra que talvez mudasse tudo. Hoje não tenho tempo, minha senhora. Hoje estou muito fatigado, e amanhã tenho que acordar com o nascer do sol. Eu não sou eu, n?o sou o homem que quer encontrar atrás dos meus olhos baços. Sou Mr. Stevens, que ocupa o lugar que foi de Mr. Stevens Senior, e as coisas têm de estar feitas, alguém tem de as fazer. Lá em cima Sua Senhoria desenha os Impérios e por isso eu tenho que desenhar o lugar à mesa dos Eleitos. Vá trabalhar também, minha senhora tão linda e tão desastrada, as flores e as taças delicadas precisam de si como de mim precisa o batalhão de criados e ainda agora Sua Graça chamou, talvez alguém queira mais chá. Have a good night, Ms. Thomson.
Há uma cena fabulosa em que, na mesa dos criados em que o jantar tem mais regras e mais cerimonial do que a maior parte de nós alguma vez viveu, um dos mais novos (um dos do fundo da mesa) diz "quando for grande hei-de ser mordomo", com os olhos brilhantes como se anunciasse uma cruzada ou um amor de Outono. E Mr. Stevens Senior, na sua voz arrastada que nos arrasta para dentro das coisas começa devagar a contar uma história, "there was this butler in India...". Na casa de Lorde X, quando entrou um tigre na sala enquanto os convidados jantavam. E o mordomo apenas perturba a paz dos Grandes do mundo para dizer ao ouvido do seu senhor "havia um tigre na sala, Sir. Procurámos não sujar o tapete.". E nós vemos Mr. Stevens franzir o sobrolho, porque a gargalhada de Mr. Stevens Senior foi um pouco alta demais, indeed...
E depois, talvez dez ou quinze anos depois (depois da partida da governanta, depois da guerra que afinal o Lorde não evitou, depois da morte de Mr. Stevens Senior, depois da queda de tantas coisas representadas por um tabuleiro de ch? que se derrama no jardim), Hopkins e Thomson reencontram-se numa tarde marítima (o mar em que as coisas nunca poderiam ser assim ordenadas, assim quietas), sabendo que essa tarde já nasceu tarde demais. Já não me lembro se falaram daquilo que entre eles sempre andara calado. Se um ao outro disse as palavras que melhor do que ninguém murmurou a Nastassja Kinski no "Revolution" quando também deixou passar para sempre aquele que podia ter ficado, "we could have talked...". Já não me lembro do olhar dela que trago trago inteiro no fundo de mim.
A casa grande das lareiras e dos livros encadernados (ah, a biblioteca de Lorde Darlington...) é, claro, a imagem do mundo, e a imagem de cada um de nós. E esta não é (a não ser que já levemos lá para dentro os olhos enganados) uma história de injustiça social e um apelo à criação do novo mundo. É talvez, juntamente com o "Leopardo" de Visconti (outro filme que é uma coisa que me fez, e de que falarei um destes dias), o melhor retrato da impossível fragilidade da beleza. É uma coisa que demora duas horas a passar à nossa frente e que afinal é o último raio de sol por entre as árvores tão grandes. Sim, os despojos do dia. Quanto em mim é esse Lorde Darlington toleirão e simpático, que acredita que as coisas simplesmente estão ali para que ele as desfrute, quanto de mim é esse Mr. Stevens que não nasceu para se sentar (a certa altura o Lorde diz-lhe "Tens trabalhado muito, Stevens, e tens trabalhado bem. Have a cup of tea.". Obrigado, Milorde, mas tenho ainda algumas coisas para fazer hoje, yes. If you excuse me, Sir.)
A Casa não viveria só com o andar nobre, e não teria sentido só com a cozinha e a copa. Só é pena que a Thomson não tenha ficado, só é pena que as coisas sejam assim. Que eu seja essas coisas, e mesmo assim seja tão pouco. Mas o que dava vida a todo aquele mundo não eram os olhos altivos do Lorde Dralingtom, não eram os olhos sonhadores (os olhos sonhados) da Thomson. Era o olhar baço de Mr. Stevens. Era o olhar dele que fazia o fogo arder, os cobres luzir, os olhos da governanta saber que podem ser outra coisa além da governanta. A catedral assenta inteira na pedra humilde junto ao chão. Em que assentam afinal os nossos voos mais altos?
There was this butler in India... E não, não vou chorar alto de mais.