28.9.05

Ad perpetuam rei memoriam



Houve um tempo em que três reis ajoelharam diante do que acabara de nascer. Depois disso aconteceu muita coisa, ou talvez tenha acontecido uma só. Não sabemos. Há pouco tempo, três imperadores ajoelharam diante do acabado de morrer. E nesses instantes, quem julgará o coração dos homens?

Malhas que o Império não tece... Deus, faz aumentar a minha perplexidade a Teu respeito!

27.9.05

Cerveja preta, país de Outubro

Sempre gostei de rituais, mas foram poucos os que consegui manter; e agora esqueço-me das coisas, cada vez mais deixo passar os dias como se só parte de mim fosse daqui. Hoje descobri que nem viajar me apetece mais (excepto uma viagem que tenho guardada no coração).

Em Outubro bebo cerveja preta. Não é que a não beba no resto do ano (e cada vez a aprecio mais); mas em Outubro bebo cerveja preta como se fizesse um brinde aos dias de escurecer. Tudo veio de um livro que li há tantos anos, "O tempo dos duendes" de Clifford D. Simak: vem, disse o duende, descansaremos e beberemos a doce cerveja preta de Outubro, a cerveja dos duendes. Ou qualquer coisa como isso. Gosto que as coisas tenham um lugar no tempo, como têm um lugar no espaço. O meu mundo é um mundo de regressar.

Às vezes, quando bebo vinho, passo devagar o copo por sobre o copo de água, sem ninguém notar. O brinde ao Rei de Além Mar. Era assim que os partidários do Bonnie Prince Charlie, o último rei legítimo da Inglaterra, saudavam o seu rei exilado em França, exilado além das lágrimas que são sempre o maior dos mares. E brindo devagarinho ao Rei que a minha terra não sabe que existe. O Rei é Rei, como a água é água, como o fogo é fogo.... quem além de mim se recorda ainda das coisas que podiam ser?

A verdade é a beleza do homem, a beleza é a verdade da mulher. Sombras. Toda a palavra é a derrota da verdade, todo o gesto é a derrota da beleza. Silêncio imóvel de deus, abóbada dos mundos. Bebo a cerveja preta de Outubro por causa da beleza dos duendes inexistentes. Brindo ao Rei de Além Mar por causa da verdade ausente. Às vezes olho um corpo como se escutasse um requiem na noite mais funda. Às vezes não sou daqui. Sim. Eu sou o País de Outubro.

18.9.05

Sobre a garça e o falcão



Podia falar-te do voo da garça, do poema guardado em cada uma das coisas frágeis. Mas antes, quero de ti que aprendas o mundo com o olhar nocturno do falcão. Ergue-te antes de tudo o mais. Porque são falsas todas as coisas que não ponham uma canção a dançar nos teus lábios. É falso todo aquele que não te convida a dançar.

É verdade que algumas vezes alguém me lê e deixa um comentário. "As tuas palavras cantam", disseram-me uma vez, e frase tão bonita não é fácil esquecer. Sim. Mas... tu, que me leste, que farás da minha canção quando te retirares? É que só me interessa a flecha apontada ao alvo. Só o arco perfeitamente distendido. E se o que eu disse em nada te mudou, melhor seria ter-me calado.

Moradias Unifamiliares em Banda
na Zona Protegida da Ribeira Negra, ou
O Estado da Nação.
(um post escrito só porque sim).

A história começa aqui com um post da Gotika que eu comentei, ou melhor, de que comentei um comentário. Também a Silvia escreveu isto no seu blog. E aqui está o que eu acho. Tudo a propósito do "diagnóstico" sobre "este país", que toda a gente dá como concluído.

1. Eu ando há mais de três semanas com febre intermitente (muito alta), tosse e outros problemas aparentemente menores. Pareceu-me demasiado tempo para uma gripe de Verão. Senti-me a enfraquecer. Receei uma pneumonia, ou qualquer outra doença misteriosa e temível. Fui ao médico. "Você tem febre", disse ele, "e tosse. E está muito magro. Sente-se bem?". E pronto. Em Portugal chamamos a isto "diagnóstico". O médico começou a escrever, com grande segurança. Imaginei uma encomenda de análises (não era). Perguntei o que poderia ter. "Bom", disse ele, "sabe, uma virose qualquer, uma coisa dessas. Vamos andando e vamos vendo. Tem aqui um antibiótico e umas vitaminas, que mal nunca fazem. Se não melhorar volte cá". E pronto. Em Portugal chamamos a isto "tratamento".

2. A gotika fala em impunidade (e bem), a silvia em preguiça e facilitismo (e bem). Todos nós coleccionamos histórias inacreditáveis (as melhores das minhas continuam a ser o enternecedor "café curto não temos" que me disseram no Porto há uns oito ou nove anos atrás, e o subtil "não podemos querer que os estudantes saibam tudo aquilo que lhes é exigido" com que um eminente professor catedrático me justificou um dia a necessidade de eu rever - em alta - as classificações de um exame que corrigi), todos nós sabemos também que "lá fora" os portugueses até são capazes de fazer o que os outros fazem. E no entanto, a meu ver, não é (só) disso que se trata.

3. Hoje de manhã, levado pela preguiça e pelo facilitismo próprios de domingo, fiquei na cama a ouvir rádio. Entrevistava-se o Dr. Ulrich, um dos mais poderosos banqueiros portugueses (devo dizer que a "alta banca", como se diz nos países de língua francesa, é um dos pouquíssimos sectores em que as empresas portuguesas são tão boas - no sentido de tão eficientes - como as de qualquer outro país europeu). Em dez minutos, questionado sobre polémicas decisões governamentais, o Dr. Ulrich disse três vezes "bom, mas ele terá informações de que eu não disponho". Às vezes temos muito a aprender com o capitalismo. E o primeiro ponto para que eu queria apontar é precisamente este: em Portugal, não dispomos de informação suficiente para traçar um diagnóstico seguro sobre seja o que for. E não dispomos de informação suficiente proque não sabemos como a obter. E se soubéssemos, e se a tivéssemos obtido, era sinal de que não estávamos doentes, e que o diagóstico era desnecessário. Cruel paradoxo. No entanto, agimos como se a informação disponível fosse a informação completa. Raríssimo ouvir alguém dizer "não tenho informação suficiente". Vivam os banqueiros (que são geralmente pessoas bem informadas).

4. É fácil dizer que eu estou com tosse, é fácil dizer que o litoral está a saque. Para muito mais do que isto era preciso dispor de informação estruturada, e não temos (apesar do virtual avanço dado pelas redes de IT) modo de a estruturar. Não conseguimos prever o comportamento uns dos outros. Não sabemos prever como um juiz vai decidir um caso, como uma doença vai evoluir, como os estudantes vão reagir a uma mudança de programa. A aprendizagem das coisas faz-se por "tentativa-erro", mas não dispomos, socialmente, de sistemas de detecção de erros. E portanto não aprendemos nada, nem sequer a aprender a aprender.

5. O mesmo Dr. Ulrich, na entrevista, alertou para o próximo embate entre as línguas castelhana e portuguesa, muito mais preocupante (disse ele e digo eu) do que o controle de empresas portuguesas pelos "espanhóis". A imprensa de Madrid, disse ele, rejubilava há dias pelo facto de, no Brasil, o castelhano estar a tornar-se língua de aprendizagem obrigatória no ensino secundário. Mas logo a seguir, quando lhe perguntaram por que razão a Espanha tinha tão facilmente ultrapassado Portugal, não disse mais do que "são espanhóis, mais ambiciosos". É fácil atirar as coisas para a "preguiçosa índole lusitana". Mas isso é escrever na água.

6. Quando os Americanos foram à Lua nos anos 60/70, o mundo mudou tecnologicamente. Novos materiais, avanços fundamentais nas possibilidades da informática, estudos e conclusões nos mais diversos ramos da ciência. Mas um dos dirigentes máximos da NASA disse na altura que, de tudo o que tinham aprendido, o mais importante fora, de longe, a aprendizagem da organização. Como fazer uma coisa complexa com o máximo de eficiência. Ao contrário do que frequentemente julgamos, não é questão de "dar o litro". Aliás, pelo contrário: dá-lo é, geralmente, mau sinal.

7. É claro que existe corrupção e compadrio. Eu lembro-me de haver, quando era miúdo, contrabando de azeite na fronteira de Espanha (!). Quando as coisas são proibidas, há "mercado negro". Claro. E é claro que os contrabandistas adoram que o Governo proiba montes de coisas. Isso entra para o diagnóstico?

8. "põe quanto és em tudo o que faças". Esta ou uma frase semelhante foi dita por Ricardo Reis (Pessoa) e nós adoramos repeti-la. Bom. Eu preferia que em tudo o que fazemos na nossa relação com o mundo houvesse menos de nós e mais daquilo que os outros antes de nós aprenderam. Na contabilidade de uma empresa não me adianta ver a alma do contabilista - adianta-me ver exposta, com clareza e rigor, a sua situação financeira. Na receita do médico não quero que transpareçam os seus estados de alma - quero que transpareça o resultado acumulado de cem anos de ciência médica. No ensino não quero que o professor se "entregue" - quero que se tenha previamente definido, com simplicidade e inteligência, o que é que é suposto que os estudantes compreendam, e qual a melhor forma de o transmitir. Sim, no fundo queria menos "alma" nas coisas que a todos dizem respeito. E mais regras, que é uma coisa com que as almas se não dão bem. Talvez assim haja alma nas coisas que alma requerem.

9. Parece (só li isto em segunda mão, e não compreendi a história toda) que alguém terá feito há poucos dias uma especial sondagem sobre as eleições presidenciais. Os "portugueses" prefeririam jantar com o Dr. Soares, mas prefeririam que os seus filhos tivessem o Dr. Cavaco como professor. Esta esquizofrenia diz alguma coisa sobre os candidatos. Mas diz muito, infelizmente muito, sobre a desorientação dos eleitores, que não é uma desorientação política. "Sol na eira e chuva no nabal" era a frase usada - nos tempos em que Portugal era um país agrícola - para falar do erro de querer o melhor de dois mundos. Não é preguiça, nem sebastianismo. É não saber em que mundo se está. E isto não é um diagnóstico.

17.9.05

Ondas do mar de Vigo




Ondas do mar de Vigo, se vistes meu amigo? E ay Deus, se verra cedo!
Ondas do mar levado, se vistes meu amado ? E ay Deus, se verra cedo!
Se vistes meu amigo, o por que eu sospiro? E ay Deus, se verni cedo!
Se vistes meu amado, por que ey gran coydado? E ay Deus, se verra cedo!

MARTIN CODAX [trovador galego-portucalense - séc. XIII]

As ondas do mar (podia falar-te do vento norte, ou da chuva, ou do discreto voo da garça) são o que há no mundo mais perto de uma coisa a sentir, o que é o mesmo que dizer - mais perto de uma coisa que se fez sentido.

Há coisas quase-a-sentir, por isso às vezes sentimos que alguma coisa nos falta. Olhamos o mundo com olhos de mar, ondas do mar de Vigo que guardam o gesto aguardado. Mas à terra-longe da amada não chega a onda breve que somos. Não chega sentir, enquanto o sentido nos não for consentido. Por isso os deuses se fazem ao mar, por isso amar nos faz a nós.

(Afrodite nascida das ondas, diziam os gregos, Vénus amor feita de mar. O mar-amar está sempre entre, todo o gesto é um deus a entrar)

Às vezes penso no mistério das palavras. "Mar" em inglês fala de "ver" (the sea, to see), em português fala de amar (la mar, o mar? o mar foi sempre masculino na Galiza que também somos, feminino no resto das terras de Espanha...) E aprendo assim que não há ver que se não faça o amor mais inteiro. Atiramo-nos no mundo para aprender a ser a amada, para escutar o amigo. E deus sabe o que virá se nos encontrarmos, se uma noite nos responder o mar de Vigo. O mar levado, tão leve.

Podia falar-te do voo da garça.

[pintura: Ivan Aivazovsky, Entre as ondas. 1898]

As coisas são, como se me doessem.
Os gestos são, como se me rasgassem.
Tu incompletas o mundo.

15.9.05

Detesto dias de quase trovoada.

11.9.05

Um dia hei-de partilhar um rebuçado de limão.

Detesto chorar em público. Ontem, de repente, lendo a "chuva crioula" de José Mauro de Vasconcelos, a morte de Margô mulher-dama e o vestido sol-ouro com que a vestiram no fim. Hoje no restaurante, com a televisão a mostrar duas raparigas a ler, em New York, a lista dos mortos de Setembro: "nosso querido irmão Antonio Jorge Alvarez...". Dois homens olharam-me como se não compreendessem.

Dissolve-se o que vou sendo. A tristeza faz-me não ser eu. No boundaries. Não caminho pelo mundo: alastro-me, água negra perdida em campos que não têm flor.

Não há morte no mundo que não seja morte de mim.

10.9.05

Chanson de la plus haute tour

Oisive jeunesse
A tout asservie,
Par délicatesse
J'ai perdu ma vie.
Ah ! Que le temps vienne
Où les coeurs s'éprennent.

Arthur RIMBAUD, Derniers vers
(composto em 1872)

Gostar de alguém foi sempre em mim porta aberta para o silêncio. Raras vezes falei; mais raros foram, ainda, os gestos feitos. Como se não tivesse o direito de ter, como se não soubesse entrar na beleza que ia encontrando. O mundo dava-me razão: por mais de uma vez foi como se chegasse um dia depois, un jour trop tard. Eu ando tão devagar. E um dia depois será sempre tarde demais.

Gostar de alguém foi sempre em mim janela a bater ao vento. Aprendi, conversando com amigos e lendo os livros que me abraçaram, que os tempos de amor podem ser um tempo de força e de alma; mas em mim gostar foi quase sempre o romper de diques grandes, sentir demais até que o vento se fosse embora. Ah, e proteger a amada do vento norte tão frio.

Gostar de alguém foi sempre em mim conversa tida sozinho. Nunca soube gritar. Encontrar alguém foi saber desde sempre o fim da história, e com isso não chegar a começá-la sequer. Não poderia dar-te a minha sombra.

Sim. Gostar de alguém foi sempre em mim canção da torre mais alta. Só uma deusa menina me poderia ferir. Só a flecha de Diana-a-taciturna. Mas os homens não sabem já de deusas que os amem.

Ah... que le temps vienne où les coeurs s'éprennent!

6.9.05

Estrela-de-cores

I.



Nasceu a Ribeira como dissonância, e dessa sina nunca a soube eu libertar. Devagarinho escrevo aqui, quase calado vou gritando. Notas à margem de notas, folha pequena tão dobrada. Volto sempre ao lugar das coisas que já disse atrás. Volto sempre a escrever pedaços da mesma história. Como se tudo, a vida toda, fosse em mim caleidoscópio a girar, como se não fosse eu senão coisa a ver de longe e coisa de os outros descobrirem coisas novas nas coisas tantas que fazem. Brincadeirinha dos vidros, travessurinha das cores, na minha mão vos seguro mas sois vós que me andais fazendo. E às vezes o circo é triste, dissonância.

Ribeira. Como dissonância nasceu, dissonante é tudo o que cá dentro roda. A minha estrela-de-cores não tem espelhos que a façam. O meu canudo de cartão tem frestas por onde foge o sol. Não sei pôr a vida toda lá dentro, não sabe a vida pôr-me a mim todo lá fora. Brinco com palavras soltas porque tudo o resto me anda preso. E fogo-preso é o nome do meu estranho amor.

II.

Tudo em mim são certezas, mesmo a certeza de duvidar de mim. Nunca tentei tentar, talvez com medo de acabar tentado. As cores, sei-as de cor. Mesmo as da estrela-de-cores que sou, que nunca guiou mago nenhum.

Entre mim e o mundo há mais palavras do que as que alguma vez podia contar. E começando a contá-las acabo por ter uma história contada, e essas são as que menos contam. Olho para o meu gato e é a palavra gatinho que pula para o meu colo tão frio. Olho para uma mulher e ela transforma-se numa frase como se uma deusa tivesse ciúmes da beleza de existir. A dor é em mim um narrador: "estou cansado, pensou ele baixinho. quase como se não pensasse nada".

III.


Fiz tantas estrelas-de-cores que não sei já qual é o verdadeiro vidrinho, quais são as imagens dele tão puras. Já pensei em partir espelhos, mas tenho medo que o mundo parta também e me deixe aqui. Tenho medo de desmorrer.

Não há uma palavra que queira dizer rasgar, e que queira dizer doçura. Não há palavra para indescrever, nem cor que seja o silêncio delas. Ribeira. Quando te calas és igual a mim. Tudo o que tenho é amor chovido. Sou um vidrinho verde que um dia quis ser verdade.

3.9.05

Anita & Anoite

I.

Quando eu acordava do tamanho dela via do meu quarto a árvore grande das folhas de outono. Plátano, ensinou-me o avô. Quando eu andava do tamanho dela, quando em mim só havia este ser a Anita que ainda hoje comigo está. O mundo dançava baixinho, como se o vento e a chuva fossem meninos a brincar e os meninos todos se portassem bem. E por isso fiquei sempre a gostar do outono.



Depois não sei se cresci, se me foi crescendo a distância que ia de mim aos crescidos. Não sei se mudei se emudeci. Não dei pelo vento a passar. E quando Anoite me abraçou tive medo de andar perdido. Não havia coelhinhos para me iluminar.



Andei por lugares que não cabem nas histórias da Anita, vi coisas que nem Anoite sabe dizer. Dividi-me de mim, entre uma Anita assustada e uma Anoite a calar.

II

Tenho agora outro quarto, e da janela do quarto também vejo um plátano grande, mas não é a mesma coisa. O meu avô já não está. Não sei qual é a próxima história, não sei se vou ter o vento para brincar.

Envelheço, e às vezes fico triste quando vejo uma menina com ar muito sério, um rapazito a portar-se bem. Às vezes fico triste quando cai no caminho uma chuva pequena. Quando Anita e Anoite se buscam, cada uma sem saber que a outra vive tão perto.

Talvez um dia possa voltar ao mundo que dançava baixinho. Talvez um dia possa ser. Envelheço, e Anoite já não se cala, Anita pode sossegar. Talvez haja uma alegria diferente da alegria de não crescer. Talvez Anoite traga de volta o meu avô tão sábio. Talvez um dia eu seja duas pessoas inteiras, e a história possa ser só uma.



Ah, e deve ser divertido usar um laçarote azul. Tenho quase a certeza que a Anita vai ser feliz.

1.9.05

Outono



Caminhamos para a morte de onde viemos… ontem escreveram-me isto num e-mail, e as palavras voltaram-me ao ver devagarinho na internet a morte azulada de New Orleans.

Eu sei que as coisas serão refeitas. As paredes podem ser pintadas, as janelas envidraçadas, as ruas limpas como se nada tivesse acontecido. Mas se olharem com atenção verão que nada vai voltar a ser o que era. As coisas estão submersas e o que faz dos homens humanos começa a afundar-se também. "It's hard to believe this is New Orleans", diz alguém. Ao retirar doentes de um hospital, alguém disparou contra os carros médicos. "Fats Domino reported missing". Há crianças a gritar. Caminhamos sim, e o mapa que nos deram não está completo.

As árvores e as cidades não deviam morrer, isso devia ser deixado para os velhos e os pássaros, almas frágeis. É difícil acreditar, sim. É difícil acreditar que talvez não sejamos salvos. Acreditar que aquele ali podia ser eu. Que às vezes até morrem as coisas mortas.

Descansa em paz no céu das cidades puras, minha irmã New Orleans. Os homens farão uma cidade semelhante a ti, e uma placa há-de contar a tua história. E na noite que se aproxima pede aos teus fantasmas que chorem baixinho. Não vão os homens acordar.

Setembro

Cheguei a Setembro, como se chegasse a casa.