31.5.06

O universo é um lugar patusco.

28.5.06

Holistic remedy



This is the world that man made.
These are the ills that plagued
the world that man made.
This is the doctor prescribing the pills
that treated the ills that plagued
the world that man made.
This is the banker with tellers and tills
that backed the plants and labs and mills
that manufactured all the pills the doctor
gave to treat the ills that plagued
the world that man made.
This is the general with trumpets and trills
who made the war that saved the bank that
backed the plants who manufactured all the pills
the doctor gave to treat the ills that plagued
the world that man made.
Here is the mother with all forlorn
whose one and only child was born
to die in the war the general made to save
the bank that backed the plants that made
the pills the doctor gave to treat the ills
that plagued the world that man made.

This is the angel who blew his horn
to comfort the mother all forlorn
and fired the general and closed the banks
and shut the mills and scattered the pills,
retired the doctor and cured the ills
and ended the world that man made.

ARLEN WILSON (1988)

27.5.06

Dancing with myself: vigésimo sétimo mês, ribeira

§ 1. A ribeira entrou no vigésimo sétimo mês, 3 x 3 x 3. Tanto. E tanto que me mudou, tão devagar. O segredo da vida está na água a correr.

§ 2. Este lugar fez-se sem querer o primeiro lugar tranquilo, Robinson Crusoe de mim. Nunca foi um diário, nunca foi um lugar de histórias. Fiz-me companhia, acordei um a um os que em mim andavam adormecidos. E tantos que eu era.

§ 3. Ainda não sou capaz de tanta coisa. Mas já consigo não ser, e isso é ser tanto.

§ 4. O meu sonho de hoje: outra vez um teatro antigo, as colunas enormes e as varandas douradas dos camarotes. No sótão vive uma mulher morta (vi-lhe os ossos do pulso tão brancos no lugar das mãos) que me quer matar. Não me perdoa ter começado a dançar. Fujo. E até a minha fuga se faz dança, e ecoa nas paredes velhas o grito da sua raiva inútil. Devagarinho a minha sombra se faz a sombra do caçador. Avança, mulher morta dos ossos capa estéril. A tua morte morre aqui.

§ 5. O meu totem foi sempre o lobo. No fundo dos meus olhos consegue alguém reconhecer a fome?

§ 6. Uma vez há muito tempo a gotika chamou-me a atenção para a minha obsessão com a pureza. Sim. Demorou-me muito a abraçar as terras sujas de dentro.

§ 7. Sol negro. E todo um mundo se revela, rasgadamente intacto.

§ 8. Uma das coisas que me assustava quando em criança encontrava outras crianças era o de elas andarem sempre a brigar, mas serem incapazes da verdadeira violência. Tigrinhos de unhas rombas, a quem a dor punha a chorar. E fiz-me cordeiro para as proteger.

§ 9. Construí-me a partir do olhar com que me fui olhando. O que mais custou foi, no fim, dar-me os meus olhos.

§ 10. Quando as pedras se fazem lume, que clarão.

§ 11. Geneticamente venho do ar dançarino da Galiza, da terra solar da Andaluzia, do fogo líquido do Douro, da água imensa e vegetal da Amazónia. Marinheiros, ciganos, camponeses e escravos. Mas ainda não sei quem fui antes de nascer. Talvez uma das formas do nada.

§ 12. Não aprendi a dança dos pássaros, mas a das árvores.

25.5.06

Táxi

(rádio ligado, demasiado alto)

o homem - ... sempre vamos mandar a GNR para Timor.

goldmundo - ah.

o homem - gajos não se entendem.

goldmundo - ... pois. Uma coisa má, a guerra.

o homem - como os iraquianos. Rezam lá ao Alá deles e gostam de se matar. Nós preferimos comer e beber.

goldmundo - ...

o homem - e gajas. Eles não devem ter gajas.

goldmundo - ...

o homem - não há nada que valha a vida e a liberdade. Eu já passei uma história. A minha mulher. Ia-lhe dar um tiro, a ela e a ele.

goldmundo - ...

o homem - há cinco anos, agora tenho cinquenta, foi aos quarenta e cinco. Ela andava metida com outro. Foi o vizinho que me disse, há um gajo que vai lá a casa. Fui buscar a pistola, então não eram dois tiros? Está mal feito um homem não poder tirar satisfação.

goldmundo - ...

o homem - ela também estava gorda, um pote, e eu tinha um arranjinho, entende

goldmundo - ... ah, sim sim. entendo. pois.

o homem - então fui buscar a pistola e eram dois tiros naqueles porcos. Mas depois pensei vou-me meter em problemas.

goldmundo - ...

o homem - é que o gajo tinha uma filha menor e eu tenho duas propriedades, tá a ver?

goldmundo - ah

o homem - ainda tinha de vender o que me custou a ganhar para sustentar a filha do cabrão.

goldmundo - ah

o homem - então um amigo disse-me Carlos não sejas tanso. Rapa-lhe tudo e dá-lhe o divórcio.

goldmundo - ah

o homem - e chamei-a e disse-lhe olha e um olho negro e ficamos por aqui. Refiz a minha vida graças a deus, e tenho uma boa mulher com um bom emprego, traz dinheiro para casa. Inda pensei casar com a outra. Está a ver?

goldmundo - a outra.

o homem - a gaja com que eu, está a ver. Mas não é gaja para casar. Em casa quer-se uma coisa certinha.

goldmundo - ah

o homem - o que é preciso é ter direito à vida e à liberdade. Faço o que quero. Mas depois há os cabrões, e agora os iraquianos. Era uma bomba que os rebentasse a todos

goldmundo - ah

23.5.06

A chuva, e os grandes olhos da chuva



Acho que já aqui falei uma vez do Demolidor: Daredevil, o filme. Aqui, na fotografia, a Jennifer Garner como a guardei para mim, misturada com coisas que para dentro de mim sempre andam. Elektra, sim, fui ao Google procurar imagens e encontrei uma mulher belíssima. Mas para essa não sei bem olhar, ou não sei o que faça com o que os meus olhos lhe fazem.

Uma história de super-heróis, o único a chorar devo eu ter sido na sala do cinema cheio. Havia um herói cego, os bons e os maus. Havia as coisas todas dos filmes todos de heróis, coisas tão fortes. Havia depois a Elektra, tão igual a ele menos nos olhos. Encontraram-se iguais, combateram-se iguais, enamoraram-se iguais. E quando em noite de luzes e arranha-céus a chuva chegou como se fosse o negro a chegar, trouxe-a o herói cego a um terraço lento e sem ela entender esperou o milagre inteiro: porque quando o mundo vibra na presença da chuva consegue ele ver por um momento breve. Ver. Sentir como se tivesse voltado a ver tudo, ver como se tudo sempre fizesse sentido. E ela vê também, e é como se fosse a primeira vez que se vê inteiramente vista. E depois a chuva vai embora, fica-dentro o negro a chorar.

Uma história de heróis, sim. E os heróis não me interessam nada. Já não me lembro dos bons nem dos maus. Mas isto guardei ou isto guardou-me, e reencontro-me na fundação do mundo. A chuva e os olhos e a mão que quase toca a verdade, ingratidão do tempo. No fim do mundo há-de haver uma ponte entre as mãos em que o mundo se faz areia a escorrer e os olhos que fazem da chuva o rosto eterno de Elektra. Há-de haver uma história que não precise de heróis.

A chuva, e os olhos grandes da chuva.

Paraíso

Sempre me assustou a imagem do Paraíso. E quanto mais insistiam os livrinhos que lia ou as pessoas que me falavam na "felicidade eterna", no "êxtase" e na "absoluta não-sei-quê" mais me sentia desconfortável. Não gosto de coisas em grandes doses.

Há um conto do Clifford Simak, que é um dos meus escritores preferidos. Um homem está velho, numa América de interior profundo e pequenas cidades. Teve um grande amigo, com quem bebeu e viajou e tocou saxofone e conheceu raparigas frágeis. Mas está velho e o amigo deixou-o, ou deixou-o ele num daqueles cemitérios tão verdes. Uma noite está em casa, sozinho como sempre na sua cadeira de baloiço e sono. Uma dor no peito, uma estranha tontura. E nesse momento o barulho tão familiar e tão esquecido do Ford-T com que o amigo tantas vezes o viera buscar à noite, "és tu!", "sou eu, entra!". E depois uma viagem pela noite, um carro um amigo uma garrafa um saxofone, agora mesmo passámos New Orleans e já ali está Chicago e olha as praias da Florida e além deve ser o Alabama. Uma viagem por uma noite sem fim, como sem fim deviam ser todas as noites de andar. Um momento bom com os relógios todos parados, todos deixados para trás. E um saxofone talvez.

Lembrei-me disto ao atravessar o Bairro como só o podemos fazer nas noites de Domingo ou de Segunda, ruas tranquilas porta aberta ao longe talvez ali uma cerveja antes de dormir. Talvez ao virar da esquina chegue a New Orleans, talvez aquela rapariga tenha qualquer coisa para me dizer. Talvez sem dar por ela me tenham trazido a um Paraíso de andar. No céu há uma luz vaga que deve ser a Lua.

20.5.06

A linha simples dos ombros

De vez em quando olho à volta como se estivesse num sonho mau. Pessoas. Pessoas com olhos ou braços ou cabelo ou gestos ou risos, tão diferentes de mim - tão inultrapassavelmente diferentes de mim - tão iguais umas às outras. Sou eu que não vejo? Sou eu que não sou? Pessoas, pois.

Estava num café com muita gente, e todos eram, ao que parecia, homens ou mulheres. Hum. Aquele ali tem barba preta e disse agora mesmo "quaresma" e "sportinguista". Parece um homem. Aquele ao lado é mais magro e não tem barriga, tem uma pele mais lisa e uns olhos pequenos tão atentos ao que não interessa e disse agora mesmo "bué da fixe". Parece uma mulher. Branco, preto, homem, mulher, que se passa aqui?

Tento pensar, "eu sou um homem". Como este e aquele e aquele outro ao fundo. Olha, "nós". E ali e mais ao fundo, "elas". Que tenho eu que ver com esses "nós"? Porque é que estou deste lado do muro? Quem há aqui sequer remotamente semelhante a mim? Quem, sequer remotamente, me completa?

Sinto uma enorme afinidade com a mesa de mármore, que apenas "está". À volta, os homens e as mulheres olham-se longamente e riem. Que partilham eles que os faz tão reciprocamente próximos, tão simplesmente assim?

Na mesa ao lado uma rapariga magra desenha, caneta preta papel branco. Tem o cabelo cortado muito curto, o nariz e a boca de um adolescente e os olhos de uma dureza que lembra revólveres habituados a disparar. Faz-me lembrar a rapariga do "Boys don't cry". Os dedos e o gesto dos joelhos contam-me uma história desconexa, que não bate certo com o modo como pega na garrafa de cerveja (a terceira cerveja) . Aposto que sabe cuspir e assobiar e que um dia caiu de uma árvore. Umas nike brancas muito sujas, uma t-shirt lilás: sim, poderia tocar aqueles ombros tão simples. Tenho a certeza de que não sabe pôr em palavras o dentro, talvez por isso desenhe tão bem (desenhou um corpo sem braços). Tenho a certeza de que já se enganou a abraçar, e talvez não tenha dado por isso. Tão igual a mim, embora eu traga as minhas botas pretas e não tenha o sabor das framboesas e do pó.

Olho à volta, mesa a mesa. O rapaz das barbas dá um murro amigável (um murro amigável?) no braço de outro rapaz de barbas. Homens. Duas raparigas levantam-se e cada uma delas olha para a outra como se se confortasse. A mais alta sabe que é mais alta. Mulheres. Branco preto (cerveja preta bebo eu, e um cigarro maço preto também. O preto protege não sei bem de quê). Na mesa do lado há uns joelhos iguais a mim, uns ombros iguais a mim.

Há corpos que por acaso arrastam consigo um espírito. Há corpos opacos homem mulher. É por isso que desenhas assim, é por isso que escrevo eu? Há espíritos que não sabem bem porque é que lhes calhou um corpo. A linha simples dos ombros.

16.5.06

(uma nota também, aos tais passantes... uma nota que no fundo no fundo é por si só um post)

Há muito tempo que me não escrevo aqui. Escrevo as coisas que penso ou as coisas que me acontecem, mas não aquelas que sou ou as que me andam fazendo. Por muitas razões, por aquilo que em nós todos há que não sabe de razão nenhuma. Tenho uma história que ainda não sei contar.

De uma brincadeira sobre quadras e santos populares a Aquilária fez uma dança como talvez só ela aqui pudesse fazer. Palavra puxa palavra, não é? O fora puxa por dentro. O meu avô das quadras, que gostava de palavras e gostava de me pôr a pensar, pediu-me uma vez para reparar na frase "mudo a falar". E é engraçado reparar nas coisas.

Por essas e por outras fica agora, aqui, uma última (?) volta na dança que me rodou. Diria as coisas de outra maneira, se as soubesse dizer. Mas é muito bom podê-las, pelo menos, sentir.


Rosa de prata a brilhar,
rosa de prata embrulhada,
ensina-me a navegar
que eu tenho de ir de jornada

que eu tenho de me ir ao mar
velado de barco à vela
para abrir de par em par
um coração à janela...

Levo um coração aberto
nele um espinho a sangrar
ai, rosa, que andar desperto
me faz ter medo de andar!

Faz-me ter medo das mágoas
que tenho p'ra atravessar,
já vestem de luto as águas
por que eu não saiba passar.

Mas se fores a rosa inteira,
rosa brava de dançar,
hás-de ensinar-me a maneira
de o meu barco se embarcar

e hás-de ser rosa-dos-ventos
para o caminho indicar
que faz de dois pensamentos
um coração a dobrar

e se me fores rosa rubra,
feita de amor e saudade,
hás-de deixar que eu descubra
que naveguei de verdade

e que encontrei o lugar
onde os olhos que me olharam
se deitam a descansar
nos meus olhos, que os guardaram.

Rosa de prata a brilhar,
rosa de prata embrulhada,
ensina-me a navegar
que não me resta mais nada...
Gothique d'autrefois (ii)

Il n'y a pas d'amour heureux

Rien n'est jamais acquis à l'homme
Ni sa force ni sa faiblesse ni son coeur
Et quand il croit ouvrir ses bras son ombre est celle d'une croix
Et quand il croit serrer son bonheur il le broie
Sa vie est un étrange et douloureux divorce
Il n'y a pas d'amour heureux

Sa vie elle ressemble à ces soldats sans armes
Qu'on avait habillés pour un autre destin
A quoi peut leur servir de se lever matin
Eux qu'on retrouve au soir désœuvrés incertains
Dites ces mots ma vie et retenez vos larmes
Il n'y a pas d'amour heureux

Mon bel amour mon cher amour ma déchirure
Je te porte dans moi comme un oiseau blessé
Et ceux-là sans savoir nous regardent passer
Répétant après moi les mots que j'ai tressés
Et qui pour tes grands yeux tout aussitôt moururent
Il n'y a pas d'amour heureux

Le temps d'apprendre à vivre, il est déjà trop tard
Que pleurent dans la nuit nos coeurs à l'unisson
Ce qu'il faut de malheur pour la moindre chanson
Ce qu'il faut de regrets pour payer un frisson
Ce qu'il faut de sanglots pour un air de guitare
Il n'y a pas d'amour heureux

Il n'y a pas d'amour qui ne soit douleur
Il n'y a pas d'amour dont on ne soit meurtri
Il n'y a pas d'amour dont on ne soit flétri
Et pas plus que de toi l'amour de la patrie
Il n'y a pas d'amour qui ne vive de pleurs
Il n'y a pas d'amour heureux

Mais c'est notre amour à tous les deux

[Louis Aragon, 1946, cantado depois por Georges Brassens]

10.5.06

...

Quando eu era um miudo de seis ou sete anos, o meu avô, que de vez em quando escrevia uns versos, ensinou-me duas quadras para eu aprender o que era uma quadra. Nunca mais as esqueci.

Uma era assim:

Se as coisas que a gente sente
cá dentro, tivessem voz,
muita gente, toda a gente
teria pena de nós.

E a outra:

Saudade, tenho saudade
do tempo em que não sabia
que essa palavra saudade
infelizmente existia.

Tenho a ideia de ele me ter dito que uma delas fora escrita por ele em muito novo. Náo me lembro qual, ou talvez nunca mo tenha dito.

8.5.06

Há vidas que são apenas a lenta construção de um túmulo.
Há dias em que sou como aquelas superficies de água em que ressaltam as pedras atiradas. Nada entra. Nem luz nem pessoas nem palavras nem gestos. O mundo está lá fora, eu estou cá dentro, nada no meio. Não era inteiramente desconfortável se pudesse dormir. Nessas alturas tenho consciência de uma coisa que nos outros dias não está presente em mim: o modo como [censurado] corpo.

Sonhei hoje com uma rapariga que tinha feito um poema extraordinário. Li-o no sonho (estava gravado numa parede) mas só me lembro de que em cada palavra estava uma verdade inteira, uma acusação (a quem?) inteira. Alguém tinha feito uma música para esse poema, e eu sabia-a.

A rapariga morrera há muitos anos. E agora (morta, e por isso falava tão devagar) era a minha namorada.

5.5.06

Polonaise

Primeiro fez-me lembrar a Catarina: o mesmo cabelo preto liso com uma franja que parecia dizer eu queria ter sido assim, os mesmos olhos verde-cinzentos, o mesmo sorriso tão duro. Fez-me lembrar tanta coisa, e pensei que talvez ela ouvisse também Joy Division e Bauhaus e talvez vivesse numa casa branca tão despida ("a tua casa é um cenário", dissera eu no último dia, "eu sou um cenário", disse ela. Catarina, e tinha razão). Andava como se dançasse, tão magra.

Lá em baixo Lisboa, atrás o convento da Graça como se o tempo não fosse importante. Eu tinha levado um livro, ela escrevia num papel cinzento coisas que talvez fossem uma lista de compras e talvez fossem o diário de amanhã. Reparei nos sapatos de fivela, no vestido preto pele branca, numa flor incongruente ao pescoço, uma flor de madrepérola que tinha de ter uma história, que talvez fosse a chave de toda a história dela. Reparei na ausência do azul, não sei porquê. Lisboa lá em baixo sim, tão perto a rapariga a escrever. Quase bastava estender a mão, mas podia eu dizer "conta-me a história dessa flor de madrepérola, dessa franja negra mãos brancas", podia eu dizer "talvez pudesses deixar-me entrar"? À minha volta os pássaros.

Um papel cinzento voou, ou talvez um deus brincalhão o tenha arrancado para que as palavras chegassem, não sei. Talvez não seja importante. Apanhei-o, olhei como se não quisesse saber, frases numa língua estranha, pequenos traços. E mais estranho foi ter eu falado, tão raro. Não senti a mão dela quando entreguei o papel, preso nos olhos cinzentos. Cinzento é cor de negro a voar.

Katejina.

Não sei nada da Polónia, disse eu, lembro-me de Chopin e de reis chamados Kasimir, lembro-me dos príncipes Poniatowski, de uma rainha de França, da Virgem Negra que o Papa Velho venerava. Lembro-me de Lech Walesa, do general Jaruzelski, devias ter quatro anos então, eu era um pouco mais crescido. Não sei nada de Portugal, disse ela. Não gosto de estar aqui.

Falámos, ou qualquer coisa parecida. Falou ela, falou como se me obedecesse, Katejina vais-me contar os teus ombros vais-me contar os rios da Polónia, sim, claro que sei capital Warsow, outra cidade? Cracow, pois. Sim, já sabia que conhecias Joy Division, mas eu quero saber muito mais, entendes? Não entendes, não, mas agora não tenho tempo a perder, preciso de saber a tua forma por dentro. Às vezes eu sou assim, depressa.

Tinha vinte e nove anos, há vinte e um que vive para dançar. Contemporary Dance, you know? But I do like Tschaikovsky, so pure. E agora em Portugal na noite, não sou streapper, disse ela, não. Mas sim, tenho de falar com homens para além de dançar, estive em Celorico da Beira e talvez tenha de ir para o Algarve. Os portugueses acham todos que nós nem frigoríficos temos, tenho tanto orgulho na Polónia. Mas é raro chorar, só nos filmes e não gosto do Leonardo DiCaprio, não gostei de Paris. As mulheres portuguesas combinam as cores de uma maneira tão diferente.

Ando há dias a ouvir uma música da Polónia, disse eu. O Requiem de Preisner. Zbigniew Preisner, disse ela. Nunca pensei que em Portugal me falassem dele, conheces Garbarek? Krzysztof Kieslowski? O polaco é uma língua difícil, nunca aprenderia a dizer o teu nome. Quando trabalho sou a Kate. Como sabias que eu era de Escorpião? Estou a falar-te do meu namorado pintor, não sei se devia. Há muito tempo que não dizia estas coisas.

Falámos sim, ou falou ela, ou falaram as coisas que por dentro dela invoquei. Agora já sei a história da flor de madrepérola, embora ma não tivesse contado toda. Sei a razão dos braços tão magros. Sei coisas sobre o nevoeiro de Cracóvia, sobre a música intraduzível. Às vezes eu sou assim. Lá em baixo Lisboa, pois, lá em baixo uma vida a andar. Às vezes alimento-me de ver, vampiro cego. Agora sei a história, agora sei o sangue de Katejina.

Contemporary dances, polonaise.

Não consigo compreender as minhas ideias políticas.

3.5.06

Gothique d'autrefois

Avec le temps

Avec le temps, va, tout s'en va
On oublie le visage et l'on oublie la voix
Le coeur quand ça bat plus, c'est pas la peine d'aller
Chercher plus loin, faut laisser faire et c'est très bien

Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
L'autre qu'on adorait, qu'on cherchait sous la pluie
L'autre qu'on devinait au détour d'un regard
Entre les mots, entre les lignes et sous le fard
D'un serment maquillé qui s'en va faire sa nuit
Avec le temps tout s'évanouit
Avec le temps...

Avec le temps, va, tout s'en va
Mêm' les plus chouett's souv'nirs ça t'a un' de ces gueules
A la Gal'rie j'Farfouille dans les rayons d'la mort
Le samedi soir quand la tendresse s'en va tout' seule
Avec le temps... Avec le temps, va, tout s'en va
L'autre à qui l'on croyait, pour un rhume, pour un rien
L'autre à qui l'on donnait du vent et des bijoux
Pour qui l'on eût vendu son âme pour quelques sous
Devant quoi l'on s'trainait comme trainent les chiens
Avec le temps, va, tout va bien

Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
On oublie les passions et l'on oublie les voix
Qui vous disaient tout bas les mots des pauvres gens
Ne rentre pas trop tard, surtout ne prend pas froid
Avec le temps... Avec le temps, va, tout s'en va
Et l'on se sent blanchi comme un cheval fourbu
Et l'on se sent glacé dans un lit de hasard
Et l'on se sent tout seul peut-être mais peinard
Et l'on se sent floué par les années perdues
Alors vraiment

Avec le temps on n'aime plus.

[de Leo Ferré]

2.5.06

Olha

Gostei muito de ler nos jornais de ontem que um dos dirigentes da Intersindical declarou que a sua organização encomendou um estudo técnico para tentar compreender a actual situação dos trabalhadores portugueses. "Vamos fazer um estudo em vez de escrever um documento", era a ideia geral. Fantástico. A Intersindical, que sempre soube tudo e teve resposta para tudo, vem dizer "não sei". E eu lembro-me do que escreveu há dias a Gotika:

"... vou dizer mais uma coisa que aprendi sobre o país nestes últimos meses. Pode parecer incrível (...) mas confesso que só percebi agora.É proibido dizer "não sei". É preciso saber sempre tudo sobre tudo e quando não se sabe inventa-se. Não importa a atrocidade que se diz desde que se diga. E se parecer bem e soar bem, melhor (...)"

E o estudo não deve ser muito difícil. Perguntem aos trabalhadores. Eles sabem.

1.5.06

Fiz agora um pequeno teste "psicologico": sou 90% "feminino" e 10% "masculino", seja lá o que for que isso quer dizer.