30.3.06

αναβασε



(anabase: cavalgada guerreira que parte do mar e progride até às terras da montanha) Anabase: o poema maior de Saint-John Perse (o poeta que assinava assim foi no mundo o diplomata francês Marie-Alexis de Saint-Leger Leger). A caminhada para o interior, para um interior elevado. Saibam os meus passos ser como estes.

As armas da manhã são belas e o mar. Entregue aos nossos cavalos a terra sem amêndoas
vale-nos este céu incorruptível. E não é nomeado o sol, mas o seu poder está entre nós
e o mar na manhã como uma conjectura do espírito.

Poder, cantavas nas nossas estradas nocturnas! Nos idos puros da manhã que sabemos dos sonhos, nossa precedência?

[...]

Saint-John Perse, Anabase


As armas da manhã são belas e o mar. Olho à minha volta como se lembrasse os navios queimados, como se quisesse a estrada longe. Mas já não sei de ontem nenhum. Queres saber o que descobri? Não há caminho que não seja a contradição das águas. E então faço os meus cavalos voltar costas ao mar de que nasci. E não lamentarei os irmãos mortos na praia.

Gostava tanto de escrever em francês agora. Mas quero que me entendas. O medo, não é? Claro. Foi sempre a mesma coisa, a mesma história. E o meu erro foi aguardar que o medo se fosse embora, como quando em criança nos escondemos do papão. Fechar os olhos só serve para adensar a treva. Um dia, pensava eu, um dia estarei tranquilo. Um dia o medo desfar-se-á como se desfaz o nevoeiro do Douro. E então poderei andar pelos caminhos da terra, até lá dá-me a mão para que não tenha que gritar. Para que me não perca em tantas coisas. Até lá sou só isto que sou calado.

Descobri que há contradições em mim antes de entender que há contradições no mundo. Sim. Mas não me venhas falar da alegria e da felicidade. Só me interessa andar. Deixa a felicidade aos deuses inebriados. É tão estranho. Coisas que não sei fazer, que não sei dizer, que não sei ver. Coisas que me tocam como se tivesse de haver outra coisa qualquer. E não me podias ensinar a tirar a máscara. Não me podias ensinar a subir ao dorso dos cavalos bravos. Nem a não olhar para trás quando estala a chama dos barcos queimados. Mas haverá sinais secretos na encruzilhada dos caminhos do vento. E as minhas mãos hão-de ler a marca das pedras.

Guerreiro relutante. É tão fácil dormir na areia.

No entanto, quero saber a verdade sobre todas as coisas.

Lobo, e outras coisas

Por falar em lobo, comecei a ler hoje "Orlando", de Virginia Woolf (tradução de Cecília Meireles, uma edição talvez dos anos 60 0u 70 da Livros do Brasil). Nunca li nada dela.

Ando com a ideia de rearrumar os meus livros: os escritos por homens para um lado, os escritos por mulheres para outro. São diferentes como a água do vinho.

E do lado das mulheres, alguns escritores (homens) femininos: Pessoa, Hermann Hesse, Saint-Exupery, Clifford Simak, Ray Bradbury...

Já agora, e a despropósito, as outras coisas que ando a ler intervaladamente e à mistura:

Falsos Deuses, de Arno Gruen (excelente: um psicanalista explica porque é que precisamos de fortes crenças e infalíveis chefes que nos façam esquecer a pequenez que nos sentimos)

O imaginário da Magia. Feiticeiros, Saludadores e nigromantes no século XVI, de Francisco Bethencourt (um dos poucos estudos académicos portugueses sobre o antigo mundo da bruxaria, a partir dos arquivos da Inquisição)

Marx e Engels, I volume da Correspondência (1835-1848) (os anos da juventude; fascinante o Engels, estranhíssimo o Marx)

The Case has Altered, de Martha Grimes (policial; mais para ir treinando o inglês, uma ou outra página de vez em quando a menos que me entusiasme)

A Arte e a Morte, de Antonin Artaud, tradução portuguesa editada pela Hiena (obrigado, Fata Morgana)

O Mar de Gelo, o último livro de Ana Teresa Pereira (quando estou virado para dentro)

Gostava de viver num mundo em que não houvesse livros.

Diagnóstico

Depressão muito forte. Diagnóstico clínico, esta tarde.

Já sabia disso há uns dez dias, a experiência de 2004 ajuda a reconhecer coisas. Suponho que desta vez seja mais forte. OK, lobo. Avança.

28.3.06

Terceiro ano, o medo.


Quem dorme à noite comigo
é meu segredo é meu segredo
mas se insistirem lhes digo

O medo dorme comigo
mas só o medo mas só o medo

Amália Rodrigues



Recordação 1. Tenho... que idade tem uma criança que ainda se senta num penico pequenino de plástico (o meu era azul)? São quase horas de jantar. Daqui a pouco chega um tabuleiro, trazido pela [... esqueci-me do nome] com a sua eterna camisola cor de laranja sob o avental branco (janto sempre na sala, que está aquecida; fico a ouvir vozes dos grandes e da mana na sala de jantar, toques ao longe de louça e metal). Estou sentado no penico azul, com um livro com uma história (era um tigre ou um urso, tenho a certeza). Eu sei o que o livro diz. Sei todas as palavras dele. De cor, claro, ainda não sei ler. Mas sei que as palavras estão lá, e que a história é feita delas. A Mãezinha entra na sala com uma mulher vestida de negro. Tenho medo da Mãezinha quando não está sozinha. Nunca está sozinha. Tenho medo do negro, não gosto da mulher, tem óculos. Está aqui, disse a Mãezinha, e disse mais coisas. O negro baixou-se até mim, tirou-me o livro do tigre ou do urso. Ah, temos aqui... [não me lembro do que disse a mulher dos óculos. Quis contar a história mas mentiu. Eu sei o que o livro diz. E sei que vens tomar conta de mim a partir de amanhã. E há qualquer coisa de errado em teres-me conhecido nesta posição]. Ele gosta muito de histórias, disse a Mãezinha sem olhar para mim.

(Tem cuidado, disse o Lobo)

Recordação 2. A mesma mulher. Dona Amélia. Não sei quanto tempo passou. Dias, semanas. Continua a vestir de preto. Ri-se tão alto. O Paizinho também, mas é diferente, ela não está contente quando ri. Já mexeu nos meus livros de histórias. Está a coser um lençol branco, ou uma das grandes toalhas da Avó. Está parada a olhar para mim. Porque tens uns olhos tão grandes, avozinha? Esse é o livro grande que tem uma figura de que gosto (vermelho) e uma de que tenho medo (preta). Olho para a Dona Amélia. No chão tem um cesto de vime igual ao do capuchinho vermelho do livro grande. Agulhas e linhas lá dentro. É o cesto do capuchinho. Eu sei as palavras todas. Mesmo as do fim, que quase não me dizem. A mana já disse que o fim faz medo. A primeira folha não. A Dona Amélia começa a gritar. Eu estou no chão, ou sentado no sofá de riscas. O meu Menino querido qualquer coisa qualquer coisa (Porque tens uma boca tão grande, avozinha?), e abro a boca para gritar também. Mas os braços de negro seguram o lençol toalha armadilha e o branco desce para mim, estou preso. Sinto o branco a entrar-me na boca, a tapar os olhos, os braços não mexem. Sinto os braços do negro. Apertam muito. Cheguei às folhas do fim. [Devo ter gritado porque alguém veio ver. Mais tarde a Dona Amélia foi-se embora]

(Avisei-te, disse o Lobo)

Às vezes penso que é só um problema de memória, de falta de tempo para encontrar a memória: terá havido um momento em que o medo me foi feito, como se fosse um filho. Às vezes penso que sempre fui assim: a distância foi-me negada, como se fosse um erro.

E as duas coisas que disse agora são verdadeiras (porque é verdade que as penso) e estão erradas (porque não podem estar outra coisa). E este paradoxo bloqueia-me antes de qualquer nível consciente.

(Fez-me bem dançar com as palavras. Ainda há bocado quis começar a escrever isto directamente e não consegui)

Pista A: consigo lembrar-me de medos de criança, de medos de rapazinho (que corpo tão peludo tens, avozinha...), de medos de crescido. Mas... quem não consegue? (porque é que ninguém diz as palavras todas?). Lembro-me de me afogar numa piscina, e de me afogar no mar. De saber que ia entregar um exame todo errado. De saber que ia morrer no segundo seguinte, ao volante de um carro, ou no lugar ao lado do volante. De saber que tinha perdido um emprego. Mas... não basta, pois não? Lembro-me de coisas. Lembro-me de que ia deixar os meus pais decepcionados. A minha mulher decepcionada. Os meus filhos decepcionados. Deus decepcionado. Todo o raio de todo o mundo. (Resposta errada, e sabes disso. Toda a gente passa por isso. Tu é que não prestas. Beco sem saída. Volta a tentar)

(Vou-te comer, disse o Lobo)

Pista B: há qualquer coisa como a distância certa entre nós e os outros. Aquilo que não existe num elevador, e sentimos logo que nada está bem. Bom, eu sinto sempre o deserto ou o elevador. Sempre foi assim. Todos demasiado longe (mãezinha) ou todos demasiado perto (paizinho). Todas as relações são invasivas. Falta-me o ar, como quando a outra doida me embrulhou no lençol. Estou demasiado exposto (penico azul). Siga com a psicanálise barata. Para que gostem de mim tenho de ser sossegado (ao longe, as louças e o metal). Tenho de ser infantil. A criança dos sonhos de qualquer crescido. Mas as outras crianças? Nunca entrei na roda. Há um poder estranho em algumas crianças que comandam a roda. Os que comandam a cantiga podem fazer-me mal (tu, vem para o meio). Poder. That's it. A evitar a todo o custo. Olha para a roda e sorri. Adultos pensam em [sexo]. Poder invasivo. Tocar gritar homem mulher. Lençol branco ribeira azul (Patético. Freud em versão tigres e ursinhos. Apenas um vulgar cobarde. Vais dançar até ao fim colado ao chão.)

(Come-me, disse o Lobo)

Ao longo do caminho avança a rapariga de outono... Só me não fará mal o que for igual a mim. Far-me-ei como tu se for preciso. Ah, quanto veneno nas palavras simples. Quantas luzes na ribeira negra. (Más notícias. Há uma queda de água ali adiante. The End. A menos, claro, que saibas nadar. Bela altura para o triplo salto.)

(Olhos nos olhos, disse o Caçador.
É isso, respondeu o Lobo)

25.3.06

Ribeira negra, dois anos

Quando vou ao teatro (tão raro) choro sempre no momento em que, acabada a peça, os actores dão as mãos e agradecem à audiência, ou agradecem ao mundo que a audiência encena sem saber. Quando ando no teatro do mundo imagino que haja um dia em que a peça possa acabar.

Faz dois anos a Ribeira Negra, e se souberem um bocadinho de mim sabem porque é que um blog pode ser uma coisa que sou, e não uma coisa que tenho. Faz dois anos que eu sou assim.

E hoje olho para trás, como se olhasse um rio tranquilo. Não, a peça ainda não acabou, no teatro do mundo ainda o pano não caiu. Este ainda não é, creio eu, o último post. A Ribeira ainda não sabe da Foz onde as coisas todas se alargam, da nascente onde as coisas todas se consomem. Ainda é esta coisa incompleta. Mas gostava de vos agradecer, aos vivos e aos mortos, aos anjos e aos homens, aos bons e aos maus.

Por aqui passaram o meu Caspar David Friedrich e os seus homens de negro, sempre de costas como se não valesse a pena sabermos deles. Passou a Danaide de Rodin, ombros vencidos tão frágeis. Passaram filósofos e reis, poetas e músicas, meninas de outono e criaturas sonhadas pelos pesadelos das crianças. Passaram palavras e silêncios, gestos e olhares, rosas mortas e buganvílias em flor. Passaram coisas que talvez sejam as sombras dos anjos, a voz terrível dos anjos. Anjos do princípio do mundo, anjos perdidos, anjos quietos que se confundem com as pedras e as asas dos pássaros. Tanta coisa passou, tanta coisa passei eu para as saber dizer ou as saber escutar. Tantas coisas.

Obrigado.

Alguns de vocês estão aqui desde o princípio.

O Mefistófeles do Tapor, que deixou o primeiro comentário, e os incontáveis Tapores que deram voz ao Argentino ("em noite de jogo e de complacência...)

O Lorde of Erewhon, Klatuu Niktos aka Monseigneur, que me trouxe uma noite o que ainda acho serem as mais belas palavras que a Ribeira já ouviu, o "nocturno Andaluz", e de quem recordo, como mais antigo comentário, ainda no blog antigo da gotika, o "este goldmundo não deve ser uma criança". Pois não. Pois sou.

O Musgo, de quem não posso dizer muito mais.

Alguns de vocês estão aqui, e estão aqui mesmo quando por aqui passam calados. São a Ribeira também, são também - saibam-no ou não - esta coisa que eu sou feita de histórias caladas. Alguns, tantos, todos, e a ribeira pequena nunca teve de crescer para vos abrigar. Mistério de ser.

Cruzei-me com tantos ("como navios que se saudam, no alto mar da vida"). Ãprendi tantas coisas. Vi pessoas de que não conheço o rosto ou as mãos ou o modo como os ombros sustentam a fragilidade da vida, vi pessoas que estiveram comigo como se estivéssemos já no lugar em que o corpo se deixou ficar. Vi coisas que passam caladas e de que a maior parte dos homens não suspeita sequer.

Amigos. Amigos de que não tenho telefone nem a morada nem a recordação das gargalhadas e dos dias. Porque ao entrar aqui fui eu que vos fiz, fui eu que vos dei um rosto e um nome, fui eu que dei à ribeira tudo aquilo que traziam convosco. Sim, a ribeira sou eu deste lado de um computador, são palavras deixadas, são coisas que não sabem ser a Verdade. Mas a Verdade apareceu sempre, mesmo quando nenhum de nós a chamava, mesmo quando eu me queria esconder dos seus olhos. Obrigado.

Obrigado Confessionário e Padre Zé e Caminante e Vitor Mácula e Conceição, obrigado aos meus amigos católicos que ouviram a minha dúvida, a minha pergunta, a minha negação tão mais que três vezes.

Obrigado Erewhon, Ardath Lilith, Elaine de Astolat, Venus Diablo, obrigado aos meus amigos que sabem de coisas que são a Noite maior.

Aquilária.

Fata Morgana.

Ebola.

Evil Angel.

Coisas que disseram que fizeram em mim outras coisas.

Actores no palco da Ribeira, alto mar da vida, estranhos passos. ("as tuas palavras cantam", disseste uma vez, e cantam apenas quando sei deixar que elas digam ao que vêm). Sophia Rui.

Misturámos todos, misturei eu, coisas pequenas e grandes, luzes e sombras. Arcos de pedra e folhas de madressilva. E que os meus olhos nunca mais se saibam fechar.

Eu-mesma.

Ainda não sei quem sou, ainda não sei o que fazem no mundo as coisas que tento fazer. Ao negro serei fiel, para que possa recusar a treva. E o meu amor é feito de silêncio e de distância. E o meu amor anda comigo como se o mundo fosse ainda o primeiro dia.

Zazie. Ninagasol. Moriana.

Os vivos e os mortos, os bons e os maus. Todo o mundo, todo eu. Quase. Este quase que eu sou.

Avançam os actores de mãos dadas, avança a ribeira pelo labirinto dos mundos. A vida chama, em indizível chama. A vida é sempre um anjo a calar. E a noite saberá o abraço que o fogo e o gelo ocultamente dão, desde o dia da fundação das coisas. Coisas caladas, coisas que não sei contar, convosco conto para que um dia eu seja.

Screvo meu livro à beira-mágoa, escrevo sim, escravo que ainda sou. Demos as mãos (Lídia). Les uns et les autres, os outros todos que sou. O canto.

Corpo. Alma. Da minha janela vejo o inconsciente Douro (d'ouro). Da minha casa nunca soube sair. Tantas coisas ficaram por dizer. E um dia veremos face a face. Os deuses só nos olharão quando nós proprios tivermos um rosto.

Somos a dança, e a blasfémia da dança, e o sacrifício puríssimo da dança. Tudo. Tremendamente tudo, abismo de babel coisas de nada. Somos todos isto que somos. E isto que nos falta, que é tudo.

Ribeira negra dois anos.

Devo ao encontro improvável de dois góticos e um imperador esta coisa que lês, feita de coisas quietas.

Gotika. Tanto.

23.3.06

Ribeira negra, na véspera de ser dois anos




Para a Gotika, que é o princípio


Vinte mundos a arder: estranho fardo
depositou o abismo em meu regaço.
Inteiro nos meus olhos todo o aço,
nas minhas mãos de neve a rosa, e o cardo.

Não há outro hoje que este que em mim faço,
porque eu não abandono e nunca tardo.
No silêncio das águas guardo e aguardo.

Ao longe, o dia escorre o seu cansaço.

Fez-se barca o meu trono antigo e forte.
Fez-se caixão a barca (e não há morte
que esta que dou ao mundo, e ao corpo, e à luz).

Panos bordados de oiro e pedraria,
ribeira negra de núpcias (e é tão fria
a mão do anjo que a barca conduz).

[pintura: The Lady of Shallot, de
John Williams Waterhouse]

22.3.06

"Lamentação pelo Cristo Morto", meditação primeira em tempo de Páscoa maior

Só para dizer que é preciso ver ESTE texto do Tapornumporco.
Já não há tempo para o que não seja desmedido.

18.3.06

Porque será que as pessoas escrevem a inconcebível palavra "estória"?
Clubs come and go

Quebrei há dias uma das minhas regras de ouro, a de não ver blogs de "figuras públicas". Não resisti à tentação do "Espectro". Li o último texto, que tinha a graça que o seu autor geralmente tem. Hoje voltei lá, e descobri que acabou.



Yes, clubs come and go.

16.3.06

E pronto

Gostava de ser uma daquelas pessoas simples que têm fé e pronto. Ou que não a têm e pronto na mesma.

O que quero dizer com isto é que nem sequer percebo o que é isso de fé. Que Deus existe parece-me uma coisa que logicamente se conclui a partir da constatação simples de existência da Treva.

Que não haja, apenas, Treva: eis o que será milagre se não houver Deus, e o que é simples de entender se o houver. E agora, escolher a hipótese mais simples, como recomendava não sei que filósofo.

Que esse Deus existente seja o Deus católico (sim, porque não o Júpiter ou o Zeus ou um deus de que ninguém ouviu falar?) é uma coisa que não deriva do que disse antes. É em parte uma opção estética (acho-o bonito), em parte a verificação da espantosa subsistência da Igreja apesar dos esforços dos católicos em derrubá-la.

Mas preferia ter qualquer coisa e pronto. Até porque... (como dizer isto?) os meus amigos católicos dizem-me coisas que nunca experimentei sobre a "presença" de deus neles. Aparentemente ela seria variável, e isso nunca entendi. Nunca senti "uma força", "uma consolação", "uma companhia".

Eu sempre me senti sozinho. E por isso penso às vezes que (ai que isto não está dito nos Livros) Deus gosta das ovelhas negras. Das que não ficam a balir (balir?) à porta de uma porta fechada, com medo dos lobos de fora. E sim, já encontrei alguns lobos, e sim, são mais fortes do que eu, e sim a noite é muito grande.

Não sou dos que têm qualquer coisa e pronto, não. Mas sei que um dia vou morrer e pronto. E a maior parte dos prontinhos detesta pensar nisso.

12.3.06

A vida em chama, em indizível chama... (II)




O nova-iorquino Andres Serrano pegou num crucifixo, mergulhou-o numa caixa de vidro cheia de sangue e urina e saliva e esperma (não sei se lhe juntou lágrimas também) e tirou-lhe esta fotografia que aqui está. Pissing Christ. Pouco tempo antes tinha feito sangue escorrer numa prancha negra, de uma forma que deu forma à fotografia que antes aqui eu trouxe: Crucifixion. E fez ainda outras coisas com as mesmas coisas.

Não sei bem o que queria ele dizer-nos, talvez que nada no mundo pode ficar longe dos homens, que não há nenhum deus intocado e limpo. E disse tudo o que se pode dizer. Nada no mundo está longe dos homens, e sim os homens são o sangue e a urina e a saliva e o esperma, e são nisso a vida e a morte enroladas, e com eles as mãos que rasgam as feridas e secam as lágrimas, os olhos que se fecham para a noite ou se abrem à última luz. Não há nenhum deus intocado e limpo. Não há nada senão as coisas que nos fazem a nós, a vida e a morte de que somos feitos. No coração do mundo tem assento a Cruz, as entranhas da carne gritam o esplendor da verdade. E todas as coisas são connosco a caixa de vidro de Andres Serrano.

Fizemos tanta coisa os homens, fiz tanta coisa eu desde que me puseram aqui. Fizemos templos e guerras e músicas, cortámos árvores e acendemos fogueiras, dançámos e inventámos a escrita e os arcos de pedra e a mousse de manga. Eu fiz amigos e contas de dividir, uma vez plantei uma árvore que já não existe, e adormeci num comboio, e li as memórias do Marquês de Fronteira e sentei-me de madrugada na Plaza Dos de Mayo a beber cerveja com uma rapariga de cabelos ruivos. Quisemos os homens, e quis eu, coisas grandes que foram afinal coisas pequenas, coisas puras que foram afinal as sobras do mundo. E sempre as guerras e os poemas e o chão de Madrid e a dança das pedras mortas guardam a forma do rosto divino que na noite primordial se contemplou. Não há luz verdadeira que não seja uma luz rasgada. E não há deus que não seja o deus das coisas entregues.

Mistério do ser, mistério de mim. Sou coisa que não cabe no mundo, mergulhada no mundo como mergulhado está o Cristo do santo blasfemo. Sou um corpo que é ponto perdido na imensidão de estrelas, mas as estrelas são só grãos finos de areia na imensidão da minha alma tão grande. Sim, sou esta coisa estranha que é mistura de sangue e de memórias de Maio, de urina e de certeza, de esperma e de amor. Na contradição de que sou feito, ainda bem que o meu Deus é o Deus em que se consomem os contrários. Às vezes sou as escórias mortas, as entranhas mortas. Às vezes sou isto que sou. Mas ao longe a vida em chama, à minha volta a vida em chama, no fundo de mim a vida, a vida toda em chama indizível.

10.3.06

A vida em chama, em indizível chama...

Para o Vítor Mácula.
Para o Klatuu Niktos.
Para a Leonor S..



Lembro-me de ser tão novo, e de dizer à minha mãe que Deus se alegrou na noite em que Beethoven escreveu a Quinta. Lembro-me de um dos meus grandes amigos (passou-se isto bem mais tarde) me dizer "não queiras ser o tipo inútil que escreveu coisas bonitas". Lembro-me mal de uns versos de Ezra Pound em que dizia (de uma forma dolorosamente perfeita) deus, se não formos capazes de ser mais que isto toma esta lama que somos e molda outra vez todas as coisas, para que a terra se faça coisa que finalmente seja.

E a minha mãe dizia que provavelmente Deus teve pena nessa noite, pena desse Beethoven surdo que procurava a beleza onde ela não pode andar. Que quis erguer o fundamento dos mundos como se fosse ele coisa dos homens, que essa noite a podia ter passado junto de um pobre ou de um preso, que podia tê-la passado em oração e aí sim Deus daria por isso e lhe daria - por isso - essa coisa estranha que se chama salvação. E o meu amigo dizia-me que mais bonitas que quaisquer palavras seria sempre em mim o manter-me onde Deus queria que eu ficasse, e ele sabia que Deus queria umas coisas e não queria outras e falávamos de um casamento que talvez o não fosse. (Não separe o homem o que Deus uniu). E sempre as coisas me disseram coisas que eu não sabia se eles queriam ver. E chamavam-me sempre, no silêncio da chama maior.

Passou tanto tempo, e ainda não sei onde quer Deus que me fique, não sei que anjo tremeu na noite alemã de Ludwig van. Não sei de que lado estava a verdade na batalha de Azincourt, se alguma obra não é só abismo de babel, tempo perdido. Passou tempo e passaram por mim pobres e presos, anjos de um e do outro lado. Passaram coisas e palavras e homens e bichos. Até eu por mim passei, como se não soubesse com quem falava. E a minha mãe dizia coisas que tenho pena de já não saber.

Todo o tempo é perdição do mundo ou perdição de nós.

Às vezes encontro coisas.

Ainda tenho uma pedrinha que me trouxeram da Noruega, uma outra que me trouxeram da Tailândia, uma em forma de coração negro que o mar de Tavira me emprestou. Ainda tenho o voo de um pombo na manhã cinzenta de Outubro, mão dada ao meu pai junto à Igreja da Trindade no Porto e eu tinha seis anos e não sabia que ia ser operado. Ainda tenho o ramo frágil das buganvílias. Ainda me trago, como se fosse uma coisa que não sei onde possa deixar. Às vezes ouço a Quinta de Beethoven ou essa oração estranha que se chama Dead can Dance. Às vezes escrevo coisas e às vezes, como agora, as dores são mais fortes e quase não posso andar. A vida chama, sim, e é sempre a chama indizível. Por isso não somos mais que um corpo nessa câmara ardente a que chamamos alma. E por isso, às vezes, as coisas que se fazem em nós são sim um anjo a tremer.

E tens razão, meu caro, não nascemos ainda e já adormecidos andamos. Por mim só tenho medo de morrer antes de acordar.

A vida chama, em indizível chama, e não há mais nada nos mundos que o mar de gelo e o mistério dos barcos impossíveis. E os mastros, a cruz dos mastros. Somos uma coisa que não sabemos, herdeiros todos do mundo de antes do princípio. Não há mais nada que Voz e Avós. Não há mais nada. E a noite intacta das coisas pequenas, o grito frágil de Ludwig van como se a noite alemã fosse a noite imensa do albatroz.

Dead can Dance, sim. Aos vivos apenas é dado cantar. Somos talvez as sereias de um impossível deus marinheiro. A vida chama...

[fotografia: Crucifixion, de Andres Serrano]

5.3.06

Para a Leonor S.


na noite escura escreve o seu poema alado,
interminavelmente escreve, ensimesmada;
e não levanta os olhos, presos ao passado,
do seu caderno negro de escrita assombrada.

na noite escura as velas no quarto fechado
recortam sombras de asas de uma forma errada;
mas ela escreve sempre o poema inacabado
e um monstro cego ensina-lhe a escrever do nada.

sangra em silêncio e invoca a noite escura e enorme
e escreve alheia aos vultos que em incertos passos
da noite imensa acorrem ao poema informe.

adensa-se-lhe o rosto em fomes e cansaços:
mas não levanta os olhos, e sangra, e não dorme,
até que o estranho arcanjo durma nos seus braços.

[fotografia de katia chausheva]

4.3.06

A serpente canta

Leiam este conto da minha Madrinha, da Gotika. Se ele vos não disser nada, tentem descobrir qual é o VOSSO problema.

Sim, um dos mistérios do mundo é que às vezes a Serpente canta.

P.S. Vítor Mácula, caríssimo, para ti a recomendação vai a dobrar. Les beaux esprits têm destas coisas :)

3.3.06

Notas

1. As únicas pessoas interessantes do mundo são os vencidos. Ou antes, aqueles a quem chamamos "vencidos". Os que não são capazes de seguir as regras, de tactear o mundo como se fossem formigas com antenas, de navegar no alto mar. Não são interessantes por serem "vencidos", por serem um desvio à regra e ao padrão. São interessantes pela revolta que nelas habita. Geralmente, não há nada mais entediante que uma pessoa bem-sucedida.

2. Claro que há, no meio de nós, autênticos peritos na arte de parecer vencido. Geralmente falam muito. São uma categoria especial de chantagistas, uma espécie de canibais da alma. A sua arma mais forte é o sofrimento. Carregam ao colo as suas fraquezas como aqueles mendigos que exibem criancinhas drogadas. E muita gente lhes dá esmola.

3. E há pessoas que têm algo como uma brecha irreparável nos seus mecanismos de defesa. Como se o seu mundo interior fosse uma cave alagada, uma casa em ruínas, um quarto onde já não há luz. É assombrosa geralmente a sua coragem, é arrepiante quase sempre o seu fracasso. Vivem entre o mundo dos outros e uma coisa sem nome que é só deles como se vivessem sempre no momento do crepúsculo.

4. Algumas, muito poucas, são capazes de usar uma espécie de normalidade aparente como se fosse um guarda-chuva. Passam despercebidos no meio dos vencedores. Cumprem regras básicas e deixam parte de si fechada à chave, às vezes por muito tempo.

5. Em tudo isto há um mistério muito grande.

1.3.06

Aladino

- Sim, disse o Génio, três desejos. Podes ser rico, posso levar-te a Tumbuctu ou a Samarcanda, podes ser califa ou vizir ou um homem sábio. Três desejos.

- Bem, disse o Aladino, não sei se quero ir a Samarcanda e de certeza que não gostava de ser um homem sábio. Podes dar-me uma taça de morangos com natas?

E o Génio fez aparecer uma taça de morangos com natas.

- Que bom, disse o Aladino, com colher e tudo. De repente fiquei com medo de ter de gastar o segundo desejo a pedir uma colher. Não era preciso ser de prata, sabes?

- És um homem estranho, respondeu o Génio. Da última vez que me pediram morangos foi mais difícil, porque ainda não havia morangos no mundo. Tens mais dois desejos.

E o Génio fez uma vénia (uma génia, pensou o Aladino, que gostava de brincar com as palavras).

- Podes dar-me uma capa? Está um bocadinho fria a noite, e queria dar um passeio. Negra, sabes, com uma fivela prateada. Sempre quis ter uma assim.

O Génio fez aparecer uma capa mais negra que a própria noite, com uma fivela onde se podia ver um dragão que ao mesmo tempo era uma flor e ao mesmo tempo era uma canção de Inverno.

- Linda! Disse o Aladino, baixinho. Obrigado, Génio. Com isto não volto a ter frio.

- Dois desejos, respondeu o Génio, inclinando-se de novo. Muito fáceis até agora. Pensa bem no terceiro, é o último desejo que te posso conceder.

- Faz com que todos digam a verdade esta noite, disse o Aladino como se não tivesse a certeza. Todos e eu também, só esta noite. Mesmo que seja uma verdade terrível.

- Nunca me tinham pedido o fim do mundo, respondeu o Génio, e também falou como se hesitasse.

Março

Neste preciso momento faz Março lá fora como faz Novembro em mim.