31.5.05
30.5.05
minha hás-de ser doce hás-de ser
roxa hás-de ser
boneca roxa vais ver
sorriso de pano cru
deitada quieta
na noite completa
que eu sou como tu
boneca rasgada
no peito sem nada
nós dois a dançar
tão verdes as tranças
choro de crianças
boneca a gritar
boneca minha vais ver
com olhos de quem não V
deitada em segredo
na noite com medo
da dor que eu te D
do laço de seda
do abraço vereda
nós dois a sangrar
tão tristes as danças
negras alianças
boneca a fechar
boneca doce vais ver
mãos frias de quem não quer
deitada comigo
ficas de castigo
pelo que te fizer
boneca tão calma
no corpo sem alma
vamo-nos morrer
tão fundos os cortes
trocadas as sortes
boneca a valer
[credit photo: kelly davidson para
The Dresden Dolls - Brechtian Punk Cabaret]
29.5.05
coin operated boy
sitting on the shelf he is just a toy
but i turn him on and he comes to life
automatic joy
that is why i want a coin operated boy
made of plastic and elastic
he is rugged and long-lasting
who could ever ever ask for more
love without complications galore
many shapes and weights to choose from
i will never leave my bedroom
i will never cry at night again
wrap my arms around him and pretend....
coin operated boy
all the other real ones that i destroy
cannot hold a candle to my new boy and i'll
never let him go and i'll never be alone
not with my coin operated boy......
this bridge was written to make you feel smittener
with my sad picture of girl getting bitterer
can you extract me from my plastic fantasy
i didnt think so but im still convinceable
will you persist even after i bet you
a billion dollars that i'll never love you
will you persist even after i kiss you
goodbye for the last time
will you keep on trying to prove it?
i'm dying to lose it...
i want it
i want you
i want a coin operated boy.
and if i had a star to wish on
for my life i cant imagine
any flesh and blood could be his match
i can even take him in the bath
coin operated boy
he may not be real experienced with girls
but i know he feels like a boy should feel
isnt that the point that is why i want a
coin operated boy
with his pretty coin operated voice
saying that he loves me that hes thinking of me
straight and to the point
that is why i want
a coin operated boy.
The Dresden Dolls.
(para quem goste de cuscar estas coisas: seguimento de um post de 21 de Abril. O mundo é estranho. Três pessoas que não podem estar combinadas - não sou assim TÃO paranoico - vieram perguntar-me se sou gay. Fui reler. Terá sido por gostar de diospiros?)
1. Tenho horror àqueles bonecos italianos, arlequins ou lá como se chamam. Os pretos e brancos com lágrimas. Preferia dormir num quarto assombrado a dormir junto daquilo.
2. Só houve até agora uma coisa que não consegui comer: angulas. E era um jantar de cerimónia. Angulas são uma espécie de minhocas que se apanham nos rios do Norte e da Galiza (não sei se para as bandas do sul também as há), e que se vendem a peso de ouro. Ficas a olhar para um prato com minhocas brancas fininhas COM OLHOS.
3. Não consigo rezar numa igreja moderna. É como rezar num cinema. Gosto de capelas de aldeia, ou de grandes igrejas antigas, escuras e vazias, nas cidades. Penso que Deus não gosta de muita luz, nem de muitas cores.
4. Descendo de ciganos andaluzes, fidalgos galegos, camponeses do Minho e do Douro, marinheiros do Porto, índios da Amazónia e talvez judeus da Beira-Alta. Escolhi a Galiza celta como pátria adoptiva, porque é a mais irreal das terras do mundo. Mas em Paris, por duas vezes, fui abordado por homens tão escuros como eu: "frère, es-tu arabe?" ("irmão, és árabe?"). E sim, devo ser.
5. Sempre soube que o oposto de uma grande verdade não é um grande erro, mas uma outra grande verdade. Mais tarde encontrei esta frase (e esqueci-me de quem a fez). Mas isto é sempre um obstáculo à comunicação. Vivo no meio de pessoas que julgam que todos os outros devem estar errados, ou de pessoas que acham que ninguém pode estar errado.
6. Como a Clara (minha terapeuta) me ajudou a descobrir, no fundo de mim há um medo informe, como uma aranha que aguarda. Não sei ainda quem é esse eu aracnídeo. Uma noite enfrentá-la-ei.
7. Acho estranha a preocupação com "sermos nós próprios". Como se pudéssemos ser outra coisa.
8. Não sei porque é que as pessoas acham que sorrir é parecido com rir. É como dizer que amor é parecido com sexo.
9. Descobri, com grande surpresa, que deixei de odiar pepinos. Como julgava que ainda os odiava, não os comia há anos. Que desperdício. Que grande lição.
10. O Fernando Pessoa impossibilitou a poesia em Portugal. Quando tudo está dito, escrever mais só pode ser um narcisismo oco. Restam as pequenas histórias, as frases soltas.
11. Este ano quero atravessar a Espanha, devagar. Sentir o barro, as árvores, a lua em Aragão e os rios na Catalunha, os sinos das igrejas em Castela e o silêncio mágico da Galiza. Este ano quero dormir.
12. Gosto de saber coisas inúteis. Não tenho jeito para a mecânica. Só compreendo uma paisagem quando sei a sua história. Só compreendo uma pessoa quando invento a sua história. Gostava de ler já as últimas páginas da minha.
13. Gostava de ficar, quando morrer, num daqueles cemitérios ingleses feitos de relva e de cruzes e de estátuas de anjos. Possivelmente espera-me outra coisa. E gostava de ter, em vez de um elogio feito por um padre apressado, uma música que fosse igual ao que eu afinal tiver sido.
14. Sinto-me bem com botas, com sandálias, descalço. Os sapatos incomodam-me sempre.
15. Sei exactamente quem é a única pessoa que me permite um amor inteiro. Que importa onde está ela, onde eu estou.
16. Nunca se deve pôr açúcar no leite. Mesmo estando com gripe.
17. Rosas.
24.5.05
Pensei, ao acordar, o que se passa com esta ribeira, o que se passa comigo - e o que faz tantos visitantes passar também. Tenho tido, até agora, a sorte de ter na ribeira um sítio tranquilo, de ser nela o lugar quieto que queria dar às coisas todas que sou. Tem havido pessoas, e tem havido palavras ("faz hoje um ano, deste-me a primeira rosa brava", disse-me ontem a Evil Angel, e lembro-me tão bem de a dar embora me não lembrasse do dia...); tem havido às vezes silêncios, que são aqui tão difíceis de escrever; tem havido, principalmente, o olhar com que a nós nos vamos fazendo, porque olhando é como se tocássemos mais fundo. E ai de nós se não houver um rosto que nos encontre.
Em tudo isto a ribeira é uma coisa que as coisas me vão mostrando, mais do que uma coisa que eu ande a mostrar. Talvez seja por isso que nada tem forma acabada, talvez por isso as vozes e os corpos se adivinhem. Ribeira dos contrários, ribeira de antes de nascer. Pensei, ao acordar, que as águas correm da foz à nascente, e é assim que deve ser mesmo.
Terá alguém reparado? Se o que isto é tivesse um subtítulo, devia ser "elogio da hipocrisia", e hipocrisia é agora uma palavra feia que se reserva para papas e bispos e beatas velhas. O mundo, dizem, devia ser uma sinceridade feliz, e tanta gente anuncia "sei quem sou, sou isto e aquilo, e os que não gostam têm muito para onde andar". Pois. Sou hipócrita, e não sou feliz nem sou sincero. Não sei muito bem o que sou, donde venho, que forma hão-de ter as coisas que ando fazendo. Não gosto muito de mim. As coisas em que acredito (as coisas em que o meu corpo acredita) não são sempre as coisas verdadeiras. E por isso, por isso mesmo, não gosto de me ver libertado cedo demais. Tantos dos meus gestos são gestos em falso, e não é por isso que não existe a dança pura. Tantas palavras que digo são enganos, e não é por isso não há o canto verdadeiro. Tantos sentimentos são cobardias e hesitações e medos e fugas, e não deixa de haver por isso um deus que nos dá forma.
Ribeira dos contrários, sim. Elogio da hipocrisia. Não gosto sempre do que sou. Gosto daquilo que podia ser, se fosse verdade.
Quase sempre é assim o mundo, e por isso andamos sempre quase tristes, quase a quebrar. Contaram-nos tudo ao contrário, não demos ouvidos a coisas que nos disseram? Tão fáceis. E queríamos que fossem anjos a carregar-nos, e para isso asas grandes, rosto a sorrir. Mas não foi assim, pois não, não foi assim que as coisas nos foram. E agora o anjo ferido só me tem a mim para o levar, e ao rapazito grave só restam as minhas mãos para emparelhar as suas. Coitado do anjo ferido, do céu tão baixo, das flores tão simples que o anjo branco já não sabe ver. Coitado de mim se parar agora.
Quase sempre é o mundo assim, e quase sempre andamos nele como se não houvesse quem carregar e não tivéssemos visto nada. Como se as asas não fossem tintas de sangue ou manchadas de lama ou sujas de pó, como se os anjos se não ferissem e nós fôssemos feitos para andar nas nuvens. E por isso quando o medo me tenta ou a felicidade me tenta, canto baixinho os passos cansados dos meninos feios, as mãos confiantes dos anjos frágeis. Não sei chorar e não gosto de rir, sabes? Mas talvez seja bom andar sério enquanto na terra os anjos tremerem.
[pintura: anjo ferido, de Hugo Simberg.
Pintado em 1903. No Museu de arte finlandesa de Helsinquia]
22.5.05
Porque ficas sempre a sorrir, disse ela, como se o que eu digo tenha piada? Eu estava a falar de coisas sérias, tristes. Nem sequer estás a escutar. Ele tentava ouvir, havia música e barulho de copos e gargalhadas ao fundo, e olhava-lhe os lábios para a ler, os olhos de pássaro ferido ou águia real. Sorrir? Não é verdade, tentou dizer, o que me disseste não tem piada nenhuma. Estou a sorrir porque estás aqui, tão bonita. Estou a sorrir porque não sei. Mas as palavras ficaram presas, como quase sempre acontecia. O sorriso deve ter-se apagado um bocadinho. E ela já estava a dar a resposta firme (porque é que nisto és igual à Catarina? Também ela se enervava comigo, devo ser eu que sou igual): És mesmo assim, é a tua cara, não é? A minha cara, pensou ele, pois. Às vezes gostava de ser mais bonito. Mas ela já se estava a levantar, e ele já estava a pensar noutra coisa, não há palavras para te contar. E o que me contaste dói mais que as coisas minhas que doem. Não há-de ser sempre assim, não desistas. O que me contaste não pode ser a última história.
Tempestades, não é, e quando a chuva cai sem prevenir descobrimos às vezes que alguém ao lado chegou com um abrigo tão frágil, estou aqui. E a chuva desenha os contornos do corpo como nem o fogo sabe fazer, lembras-te da estátua da Vitória Alada, a roupa fina encharcadas que faz a pedra pulsar. Tempestades. Porque serei só eu a pensar assim?
E agora vou eu falar, como sempre que é tarde demais. Sabes, bebi tanto ontem, fez-me tão bem embora a cabeça ainda doa e os olhos estejam inchados. Estou tranquilo, embora nada tenha mudado, isto não está a funcionar tinha eu dito aqui da outra vez e isto era eu e a vida e os dias e até a Ribeira que parecia um riacho seco. E ainda nada funciona, só escrever já está comigo, beber é sempre a oração escutada.
Não há palavras para te contar. As pessoas têm palavras para as cores e para os traços, e eu podia dizer que o teu corpo é delgado e as tuas mãos são tão brancas. Mas isso era como falar de uma música e dizer "o oboé foi construído em Berlim, a harpa está à esquerda, entendes de que música estou a falar?" E tu não entenderias, e terias razão. Mas diz-me as palavras iguais ao Inverno de Vivaldi, à voz da Callas ou da Nina Simone ou da Diamanda Gálas, às guitarras a arder, a isto que faz o sangue correr. Diz-me as palavras imediatas. Não há, pois não, porque elas são pontes compridas como as que me disseram que há em Budapeste. São pontes entre as coisas, não as coisas e o canto frágil das coisas. As palavras são tão curtas.
E sabes, é por isso que eu estava a sorrir, vês como eu sou estúpido? Não quer dizer que não estivesse a chover (chover é a palavra que tenho para as lágrimas que não choram). Não quer dizer que não estivesse a pensar, e não, não tenho solução para tudo como uma vez disseste, não tenho solução para nada mesmo. Nem sequer para mim, e as minhas coisas são tão poucas ao lado do teu caminho a acabar. Escuto-te. Está aqui o abrigo que tenho, e tu sabes que é mais uma capa rasgada, a chuva e o vento iam rir-se de nós, arrancá-la das mãos e embrulhá-la à nossa volta até que deixássemos de ver. Eu sei. E por isso estou aqui e não faço gesto nenhum, palavra nenhuma. E de repente o vento deixou de me fazer medo. Quem corre na tempestade segue sempre o caminho mais certo. Só nos perdemos ao sol.
Não, não tenho como te ajudar. Disseste-me que trato mal dos meus gatos, e deve ser verdade. Não tenho esperança de ganhar um dia (já reparaste que se diz ganhar a vida para falar de dinheiro, que coisa tão feia. Ganhar a vida nunca serão os teus caminhos). Sabes, quando me vires sorrir não penses que estás a ver um homem contente, os homens contentes são tão sérios. O sorriso parvo que estranhaste era feito só de sentir. É como já não estar a olhar para a água, mas ter caminhado para a água, ter descido até ao leito mais fundo, água gelada, água negra. Não há palavras para te contar, nunca reparaste que sou quase cego. Eu posso dançar com a música mas não posso explicar a música senão aprendendo comigo os passos e os gestos da dança. E sim, as palavras com que me contaste as coisas misturam-se com a distância que os teus olhos têm sempre, com as tuas mãos tão quietas, com o teu desenho delgado. Misturam-se com lembranças e com cheiros e com farrapos de noite e o licor ardente que bebi e ao fundo a Siouxsie a cantar. E ergues-te na minha noite como uma pessoa inteira, e deixo de acreditar que a alma é uma coisa que brevemente se reveste de um corpo como se se abrigasse numa capa rasgada. Tempestades, sim. Tempestades no mar. Sorrir é a forma que tem a minha dança. E mesmo os mortos podem dançar.
[pintura: tempestade, de Pierre-Auguste Cot.
Pintado cerca de 1880. Está no Metropolitan, de New York]
16.5.05
15.5.05
13.5.05
Talvez pudesses ter sido outra coisa qualquer, mancha fria na paisagem, voz indiferente ao meio-dia, não sei: talvez pudesse eu ter sido qualquer coisa. Mas és o porto de chegada, não fui eu que te inventei. Que pena.
E agora baixei as velas, já não sou feito de alto-mar.
Porto de chegada sim, e para trás a viagem e a descrença: como se as coisas não estivessem mais aqui. Não sei o que aconteceu, não tinha mapas que me trouxessem os teus olhos, não sei que ventos grandes me arrastaram. Já nem me lembro onde nasci.
Farol apagado ao longe, mas chegar não tem de ser estar abrigado, chegar não é mais nada que chegar. E sabes, também não trouxe comigo bandeiras de aportar, nem passaportes nem rosas. Nem aprendi a falar a língua do teu país, as trevas. Há-de haver perfumes e sombras e fogos e sangue a vibrar, canções vazias braços finos, mas não tenho de andar nas tuas vielas e nas tuas casas de sal, não tenho de provar o vinho ardente. Não sei desembarcar. Mas és o porto de chegada, e descansam ao leme agora as minhas mãos tão frias. Sim. Eu venho desse mar.
Não digas nada agora, não? Deixa que a noite embale a madeira apodrecida, os mastros. Não digas que há mais mar. Sim, somos filhos da noite maior, porto de chegada tão perto, tão longe o barco de dentro. Mas não me interessam as ilhas de ouro que talvez haja além de ti, não me interessa seguir as asas insaciáveis do albatroz, a tempestade a girar. Não me interessa nada mais.
Porto de chegada, e não tenho que saber das terras altas que és. A chama que me fizeste ser há-de-se fazer lenda dos marinheiros novos. Eu fico aqui. Para sempre.
[pintura: Turner, Slave ship]
12.5.05
1. Duzentos professores do ensino secundário, que "tiveram de pedir dispensa" nas respectivas escolas, reuniram-se ontem em Lisboa para um encontro sobre "dicas para ser melhor professor". "Estamos na Era de Aquário", disse a responsável pelo encontro, que versou sobre feng shui nas salas de aula. Conclusões? Os alunos devem ter "um mínimo de conforto".
A mesma senhora organizadora, que qualifica o Aquário como "um momento de abertura mental", e refere que "os professores estão abertos a tudo", constata também que, se os encontros forem sobre "coisas muito intelectuais, aparecem meia-dúzia".
2. "Portugal está entre os últimos (de sessenta economias 'desenvolvidas' do mundo) numa série de critérios educativos: no ensino da ciência; na adequação do ensino a uma economia competitiva; na literacia económica; no interesse dos jovens em ciência; na adequação do ensino universitário."
Jornal Público de hoje.
10.5.05
Obrigado, barão Thyssen-Bornemisza. Deixaste-me ver (saberás disso, no sítio onde estás agora?) um Caspar David Friedrich, e foi o primeiro que vi (ah, e o "navio de pesca entre dois rochedos", mas este amanhecer já me tinha calado demais) e não sei se estou guardado para ver outros. Obrigado, rei e rainha de Espanha. Obrigado aos outros (aos outros todos) que de um modo e de outro me levaram aqui.
Aqui não se vê bem. Não se percebe a luz irreal que a lua espalha, nem que as árvores se debruçam sobre as caminhantes como se falassem baixinho, nem que nos vultos adivinhamos as três idades da mulher (Klimt...) e sim, a tripla deusa lunar. Não se percebe que não há caminho, ou que o caminho é sempre caminho de amanhecer de Páscoa, mesmo para os que não sabem de ressuscitar. Não se vê bem, não se percebe. E é isso que tem a arte maior, fazer-nos sentir a falta de tanta coisa deslumbrada, fazer-nos saber que o que vemos é apenas o princípio da beleza que é o princípio da verdade. E que a verdade nos olha como se andasse à nossa procura desde o instante da fundação do mundo.
E por isso, como em tantas outras pinturas de Friedrich, as silhuetas humanas estão voltadas de costas, para não nos distrairmos nas imperfeições dos rostos. Para sabermos que os passos andados são sempre já passos andados por mais alguém, mesmo no fim da noite tão fria. Para sentirmos que também estamos de costas para os outros todos, porque é assim que estamos sempre e também é por isso que ninguém adivinha que choramos. São as costas que carregam a Cruz. E já percebes porque é que as três mulheres não estão no meio do caminho. Não estão ali para atrapalhar, e assim o invisível tem mais espaço para se alargar. E podemos sempre desviar os olhos.
É tão estranho. É raro chorar junto das pessoas, é raro chorar por causa delas. Mas as lágrimas estiveram comigo em Madrid junto deste quadro, como há tantos anos tinham estado em Paris, diante do corpo frágil da Camille Claudel esculpida por Rodin. (Um dia hei-de falar da imperfeição e da lua e do fim das coisas inacabadas, mas este não é o lugar apropriado, agora não).
E quero dizer outra coisa: nunca gostei de ti enquanto vivias connosco, velho barão Bornemisza. Eras demasiado rico. Mostravas-te demais. Sempre te vi como um traidor à nobreza onde nasceste, na tua felicidade barulhenta feita de iates e festas e risos falsos de uma Espanha atordoada. Um aristocrata não ri muito alto, sabes? Um aristocrata partilha com os vampiros o segredo de se não mostrar. E o teu pai, o homem mais rico da Alemanha durante a Guerra, de quem se dizia que manteve as fábricas a funcionar com trabalho escravo de prisioneiros e foi acolhido pelos ianques no fim porque o Império tem razões que não se contam nos livros de História? Não gostei de ti, não. Mas não é isso o que mais importa. Também tu andavas pelos caminhos do amanhecer de Páscoa, e talvez andasses sozinho no meio do teu oiro inútil. E de ti ficou para nós (para mim) a indescritível beleza da arte que recolheste. Ficou este Caspar David. Ficou este bocadinho que deixo aqui. Descansa em paz, barão, e que a tua alma possa hoje saber das noites de Maio. Uma noite hei-de ser eu a encontrar o caminho amanhecido da Páscoa.
[pintura: Amanhecer de Páscoa, de Caspar David Friedrich.
Colecção Thyssen-Bornemisza: Madrid]
8.5.05
Terra do fogo, cidade vermelha, Madrid. Dois dias e duas noites para respirar e sentir e escutar uma cidade como tão poucas vezes tenho podido fazer. Muito pouco vi, tanto soube. São assim todas as paixões.
Há coisas estranhas numa cidade que não é antiga, numa cidade longe do mar? Deve haver. Não é a pedra, mas a celebração da pedra, não é a vida mas o canto pleno da vida. Coisas contentes. E comovi-me a ver pela primeira vez a pintura do meu Caspar David, e ainda por cima era o Amanhecer de Páscoa e não sabia qual ia encontrar. O tempo estava contra mim, atravessei sem olhar salas e salas de pintura como se estivesse a correr a máquina do tempo (parei duas vezes só, um Cristo assombroso e uma paisagem romântica feita de rochas e de água e de uma lua impossível mas não fixei o nome de quem soube fazer cantar assim a tinta e o sangue) e de repente estava ali um quadro pouco maior que um caderno que iluminava a sala e me deixou quieto como se tivesse chegado ao fim.
Trouxe comigo a frase que estava na capa vermelha de um livro usado: "La realidad es lo que te queda cuando ya no crees en nadie", a realidade é o que te fica quando já não acreditas em nada. Trouxe comigo o negro que havia no fim da noite que procurei (Dark Hole). Trouxe árvores com flores, e anjos no cimo de torres douradas, e a Iglesia de la Real Hermandad de San Antonio de los Alemanes, e o sabor do gelado de violeta que era da cor dos olhos da rapariga que me deu um café na Plaza Dos de Mayo, e grafittis e caixas de cartão vazias na Calle de San Esteban (quatro da manhã e não me apetecia voltar). Trouxe tudo o que levei, e as coisas trazidas deixaram-me mais leve. É bom ter visto Madrid. É bom ter visto seja o que for.
7.5.05
Em Madrid, desde ontem. Contente por estar aqui (e o pc escreveu restar aqui, pois...), mas falhei o Prado e o Thyssen e acordei só agora e talvez amanhä possa ver os meus quadros do Caspar David Friedrich, também gostava de ir ao Rastro. Em Madrid desde ontem, e Madrid tem os sabores que sempre pensei que havia de ter.
Eu näo devia estar aqui. Há tanta noite em Madrid.
Eu quero voltar. Madrid faz parte de mim.
Como será viver täo longe do mar?! Mas eu näo vejo o mar há meses, e era preciso.
(...). Pois. Mas sou teimoso demais para isso. Tu sabes, näo é?
Os abismos foram feitos para que pudéssemos voar. Näo, as nossas asas näo sabem de céus. E Madrid é cidade de fogo e de terra (Lisboa água, Barcelona há-de ser ar, mas näo a vi nunca. Gaudi era impensável aqui).
Reparei que se bebe mais vinho, menos cerveja. Reparei na Plaza de Cibeles, täo bonita. Reparei numa rapariga que passou por mim quando saí do hotel para deixar a cidade entrar em mim, täo bonita. E sim, vestia de negro e de veludo e tinha os cabelos täo lisos. Reparei que há coisas mais soltas aqui do que em Lisboa. Sonhei tanto durante a noite, eu tinha um quarto com livros empilhados e as prateleiras derrubavam-se e eu soube que era o fantasma da minha irmä morta, "the younger sister". E chamei-a como näo sabia que se podiam chamar os fantasmas, sonho estranho. Mas näo havia tempo a perder. Madrid é o contrário das glicínias.
5.5.05
Não tive nunca um cavalinho, e um cavalinho foi a primeira coisa que me lembro de não ter tido. Não, não é bem isso: nunca tive um cavalinho, e lembro-me de o não ter tido porque, a certa altura, houve um cavalinho feito de palavras, um cavalinho inquieto dentro de mim. Toda a minha vida foi assim, e talvez seja assim a vida de todos os outros. Não encontramos aquilo que não deixamos ir embora, não temos aquilo que anda sempre cá dentro. E depois há as coisas que não damos por ela.
Eram versos pequeninos, mas era eu como eles quando me deixaram ficar com um livro que talvez fosse de língua portuguesa e talvez tivesse sido da mana crescida. "Cavalinho, cavalinho / que baloiça e nunca tomba: / ao montar meu cavalinho / voo mais do que uma pomba...". Perguntei ao avô o que era "tomba", mas não me lembro do que respondeu. Agora desconfio que para o avô "tomba" talvez já não fosse uma palavra fácil, não sei se os velhos sabem entristecer. Mas se fosse só isso talvez não tivesse tido importância, e se não tivesse importância não seria verdade nunca ter tido um cavalinho. Passados tantos anos, agora que estou tão grande como a mana crescida, posso fazer-me grande e dizer "bom, também nunca tiveste uma hiena, nunca tiveste uma couve-flor, tantas coisas nunca tiveste". E é verdade que couves-flores e hienas talvez as haja no mundo, e deus queira que sejam felizes assim. Mas quando eu era pequenito não teria percebido se me dissessem "não tens uma couve-flor, que pena". Porque é que deixaram ler o livro que tinha os primeiros versos tristes? Porque é que um cavalinho pode doer, o cavalinho-de-dentro e o cavalinho-que-não?
É que os versos ("cavalinho, cavalinho / de madeira mal pintada... / ao montar meu cavalinho / as nuvens são minha estrada")acabavam, e acabavam de uma maneira que nada no mundo devia ter para acabar: "cavalinho, cavalinho, / já chegam meus pés ao chão; / que saudades, cavalinho... / que saudades, meu irmão..."
Talvez tenha aprendido aqui que crescer ia ser afinal uma coisa estranha, talvez por isso nunca tenha querido andar com os pés no chão. Agora as coisas que me lembro também já foram perdendo a tinta. Teria esquecido tudo isto se me tivessem dado um cavalinho? Não sei, e a mana crescida e o avô já não me explicam as coisas que não sei o que querem dizer. Mas às vezes digo baixinho estes versos, e penso que gostava de ser um cavalinho. Teria sido eu a nunca ser tido, teria sido eu a andar dentro de alguém. Mana crescida, saudade.
Por volta dos trinta anos descobri à minha custa - e da pior forma - que podem ser os nossos "defeitos" a manter-nos vivos, enquanto as "qualidades" nos traem.
2.5.05
Tenho de pensar, disse eu, e esta noite um sonho pensou comigo, fez-me acordar às quatro da manhã em sobressalto e talvez um dia o conte, ou conte o que ele me quis dizer quando o descobrir.
Trago comigo coisas mortas como se fosse uma casa assombrada. Pedaços de tristeza que fui colhendo sem dar por ela em tantos sítios, tantas mãos. E talvez por isso me sinta vazio, no livro de que falei antes diz-se que mais do que medo do fantasma temos medo da solidão impensável que o fantasma arrasta consigo. Mas só agora começo a entender o que são estes outros que me habitam desde criança. Não, afinal talvez não esteja a enlouquecer.
Um ano de Ribeira e um ano de passar em alguns blogs ensinaram-me coisas que nunca julguei aprender. Foi preciso encontrar um sítio/pessoa que sabe a uma escuridão abraçada. Foi preciso encontrar outro que tem a forma do musgo e do sal que nos deixam na boca as lágrimas beijadas. E outro que só vi ganhar forma quando li as palavras simples, "boneca roxa". De repente sei tudo o que era preciso saber e não sei de nenhuma palavra que o diga. Foi aqui, neste lugar em que os sítios se misturam como perfumes de Outubro, que aprendi a ver o que eram as coisas com que via alguns outros. E sim, agora sei porque é que um dia fiz uma viagem de comboio perto de uma rapariga que era feita de outono e de folhas rasgadas de outono, porque é que uma noite fiquei a ver dançar uma rapariga que era um traço de lápis e era uma chama tão estreita e era as tranças ruivas de uma boneca que há muitos anos não está no quarto dela. Porque é que foi preciso que uma mulher que conhecia há um ano pusesse ao pescoço uma pedrinha azul para entender os traços das suas mãos, e porque é que os traços dela ainda desenham o meu coração, tantos anos. Porque é que chorei na Missão Impossível e no Demolidor e não chorei no Cinema Paradiso nem no Green Mile.
Ah, e durante anos confundi tudo isto com o amor. E é verdade que o amor está aqui presente. E confundia-me que tocar fosse antes de mais uma forma de ler coisas apagadas, como fazem aqueles que querem decifrar inscrições esquecidas em túmulos de pedra. Tantas coisas para pensar, tantos outros em mim.
Ainda não sei bem o que sou. Mas descobri que não sou tudo o que trago cá dentro. Passei estes dias assombrado por uma morte que pressenti, assombrado por umas mãos que têm a forma de um grito. São formas de conhecer, formas de amar. E que fazem inúteis as palavras e que fazem desnecessários os gestos. Sim, todos os outros são abismos. Mesmo os outros todos de mim.
1.5.05
Uma tarde, no gabinete onde uma amiga trabalha, comecei a sentir um desconforto impreciso que não tinha nascido da conversa, nem do silêncio. Devagarinho, o desconforto começou a tomar a forma de uma solidão azul. E soube que tudo vinha do mapa na parede atrás da mesa dela, uma reprodução grande de um daqueles mapas-mundo antigos. Perguntei-lhe como conseguia ela trabalhar assim, "esse é um mapa gelado", disse-lhe. O desconforto fez-se ameaça como se alguma coisa tivesse acordado.
É bom ter amigos eruditos. Ela explicou-me que sofria de "..." (não fixei a palavra, e ainda me não deu para a procurar), um fenómeno conhecido da psicologia, uma mistura neuro-sensorial. Haveria pessoas a achar que o cor-de-rosa é salgado, ou que o toque da pedra cheira a maçã. Eu achava que os mapas eram gelados, porque para mim esse seria o sabor do cinzento. Não há cura conhecida.
Não lhe expliquei que "gelado" não era um sabor mas um arrepio, e que não era só do cinzento que estava a falar. Mas sim, as coisas misturam-se em mim de uma maneira estranha. Isso ajuda-me a escrever, mas faz com que o que quero realmente dizer fique escondido no turbilhão das palavras. Para ser claro e rigoroso (e consigo sê-lo) preciso de muito mais tempo do que o que tenho para a Ribeira; o que faço aqui são quase sempre esboços feitos à pressa, coisas que tenho de fazer sair. Mais tarde leio-as e tento entendê-las.
Falo disto porque ontem, no livro que ando a ler (tenho de falar dele) encontrei uma coisa que me assustou. É uma história de fantasmas, do melhor que vi. E é dito que algumas das pessoas mais sensitivas experimentam exactamente essa mistura de sensações ("mistura" não é a palavra adequada): "é como se vertigem fosse limão desfeito em tristeza".
Ora, eu não sou "sensitivo" no sentido da vidência ou da propensão para coisas "extrasensoriais", embora tenha já sido encontrado por fantasmas e assistido a "coincidências" bem estranhas. Mas, com algumas pessoas e com alguns objectos ou sítios, é-me impossível não entrar numa empatia imediata fortíssima. Olho para alguém e apanho um choque de sensações que não podem ser descritas senão da maneira que uso para escrever aqui. E são sempre coisas tristes (uma vez, há muito tempo já, escrevi aqui "gosto das pessoas que têm algo quebrado por dentro", e só agora consigo explicar um bocadinho o que queria dizer com isso).
Se isto for verdade, a minha "tristeza" ou "melancolia" não é uma "depressão" no sentido vulgar (sempre pensei que não): mas vem-me de encontrar coisas, e pessoas, com quem entro nessa estranha forma de empatia que ganha imediatamente todas as cores e todos os sabores da tristeza. As coisas alegres, a alegria dos outros, aprecio-as objectivamente, mas não neutralizam nem compensam isto que entra em mim e de que esta Ribeira é feita.
Tenho de pensar mais nisto. Por hoje não tenho mais tempo.
Estou de regresso, tantas coisas. Nestes dias não estive cá. Não, não fui de férias, não fui viajar. Mas nestes dias (reparaste?) não era eu que por cá andava. Foram dias estranhos, talvez nove, talvez dez. Andei dez dias calado, e as coisas que o Goldmundo assinou devem ter-se escrito sozinhas, como frases de baton nos espelhos dos maus filmes de terror. Às vezes, são as coisas que nos escrevem a nós.
Ontem e anteontem foram os dias mais estranhos. É verdade que estava cansado. Mas sentia-me sempre como quando não somos capazes de ficar acordados, não somos capazes de nos erguer da mesa escura do álcool. Dava por mim a enfiar o passe de transporte no multibanco, e o cartão do multibanco na ranhura do metro; ontem, ao fim da tarde, pensei que não conseguia atravessar a pé uma rotunda: não conseguia perceber onde era a passadeira, de que lado vinham os carros, como se chegava ao prédio tão alto mesmo do outro lado. Deixei as chaves em casa e fiquei fechado cá fora, saí de cafés sem pagar, esqueci-me de me desviar de um senhor cego que vinha ao meu encontro, tão absorvido que fiquei com a sua bengala branca. Aconteceu-me acordar a tremer, e tive sonhos difíceis que já não recordo bem. E hoje acordei como se me preparasse para regressar.
Tenho tantas coisas para dizer. E algumas eram coisas em resposta aos que me deixaram aqui as suas coisas. Mas os viajantes já sabem que na Ribeira nem sempre há alguém para os saudar.
Leio os últimos posts como se tivesse chegado agora. Leio-os como se fossem fantasmas de uma casa velha. E acho que é isso mesmo que são.
P.S. Um comentário especial para os que me falaram no "esta noite envelheci" de há uns dias atrás: eu não envelheço quando por mim o tempo passa, e sabe Deus que já passou tanto. Envelheço quando sobre mim passa a morte, com as suas asas abertas.