28.1.05

Abóboras

Abóboras, pois. Ainda o Público, e ainda a falta de pachorra. A mesma secção de ontem, e provavelmente a mesma luminária jornalística. Mas desta vez a serpente é subtil. A notícia é - já não tenho comigo o texto - sobre um qualquer senador de um recôndito estado Americano (será o Arkansas?) que está a fazer campanha contra o "vício". Nada de novo: taxas à entrada dos bordéis, insinuações de censura, restrições à exibição de filmes "pornográficos". O menino (bem, eu acho que é uma menina) que dá a notícia termina dizendo "claro, diversas associações já fizeram sentir que tudo isto é uma ameaça à liberdade de expressão".

Abóboras. Quem se incomoda com o "velho marado" (roubei esta expressão ao Dervixe) do meu post anterior ao ponto de sugerir que ele seja "refreado" na "divulgação" das suas ideias fazia bem em não pôr aqui um ar indignadinho. A verdade é que custa muito a liberdade. E isso lembra-se de, há muitos anos, encontrar eu um amigo jornalista que vinha de entrevistar um chefe de Estado estrangeiro. E contava-me que ele dissera "liberdade sim, mas como nós a entendemos". Está-se mesmo a ver quem é? Não está não. TODO O PODER USA ESTAS PALAVRAS.

Sem tirar nem pôr

Presumo que todos os que passem aqui sejam, também, leitores da Gotika. Se não são, deviam ser. Se são, talvez tenham visto o post de hoje. "Pecados: a versão moderna". Não vou fazer link. O blog está todo ele aí, do lado direito. E vale a pena carregar na teclazinha. A verdade, sem tirar nem pôr.

26.1.05

Beringelas, aí vou eu

Diz o Público de hoje, numa página de fofocas em que costuma pôr fotos de garotas despidas, que um tal Eliyahu, rabi em Israel, declarou que uma mulher trajada de vermelho "corre o risco" de ser considerada prostituta. Acrescenta o jornalista (?) que isto escreveu umas coisas vagas sobre uma "feroz campanha" que pretende que os juízes passem a trajar togas pretas. E depois (o jornalista, não o barbudo rabino) despeja esta pérola do "pensamento" fascista:

"Face a tamanho radicalismo estão já em marcha algumas campanhas, lideradas sobretudo por mulheres, para que os fanáticos dos costumes sejam, de algum modo, refreados nas comparações que entendem divulgar."

Beringelas, sim. E guitarras como as que ouço agora, música andaluza ou cigana. Casas brancas. E entristece-me que o mundo valha a pena.

24.1.05

A única coisa...

... que está em jogo nas próximas eleições é a de avaliar o número (globalmente crescente) de cidadãos que, ao actual sistema de livre-corrupção, preferem uma forma moderna de fascismo. Esses disporão do PP e do BE para se pronunciar. Eu, por mim, vou tentar ir nesse dia a Sevilha. Tenho saudades das magníficas beringelas recheadas que lá comi a última vez.

22.1.05

American Beauty



Lembro-me de ver este filme na mesma semana florida em que vi o Magnólia, e de ficar perplexo pelo facto de quase toda a gente com que falei o achar uma obra-prima. Não gosto de becos sem saída, mesmo perfumados a rosas, e o sorriso luminoso - o luminoso que só o preto e branco pode dar - com que acaba o Magnólia e principia a redenção vale mais para mim do que a genialidade deste sonho feito de rosas vermelhas, silêncios baços e um saco de plástico que se julga pássaro enfim livre.

O que eu não sabia - aprendi-o agora mesmo, no autocarro em que voltei da Feira da Ladra, folheando mais um livro de meio euro sobre a história do poder do petróleo e do poder das sombras do mundo - foi que American Beauty é o nome de uma variedade de rosa, daquelas que são criadas para concursos e para milionários frívolos, que deu pretexto a um discurso de Rockefeller (na altura, o homem mais rico do mundo, o mais poderoso dos nossos senhores-barões) dirigido aos estudantes de Harvard. Deixo-o aqui, sem mais comentários, para todos os que, como eu, viram o milagre das rosas ao contrário que este filme inquietante nos mostra:

"A rosa American Beauty só pode atingir o grau de beleza e de perfume que nos encanta se lhe sacrificarmos os outros botões que a rodeiam. No meu mundo dos negócios acontece o mesmo, não devido a uma tendência maléfica mas simplesmente ao jogo de uma lei da natureza e de uma lei de Deus".

20.1.05

Espaço dos Leitores

Exm.º Senhor:

De entre a vastíssima e desigual produção do saudoso vate de Guardanapos (cuja obra, talvez injustamente, foi comparada à do imortal Aurelio Jorge Taborda), poucos textos lograram ser tão comentados e (esperamos demonstrá-lo) tão incompreendidos como aquele que mereceu da pena do austero director da Anáfora Paulistana o raro e apressado epíteto de "delicioso".

Como é do conhecimento geral, aceitaram generosamente os tribunais competentes que lhes confiássemos a simples, embora tardia, tarefa (mas fiat justitia et pereat mundus, para quem não preferir a mais rigorosa formulação adoptada como divisa pelo subtil arquiduque Fernando de Áustria, fiat justitia et ruat celum, quando, em 1507, despontavam no horizonte da História os infelizes sucessos de Bürgerlicht) de dissociar em definitivo o nosso nome da semanticamente duvidosa expressão "denominação obscena do impostor" que, desde os estudos pioneiros de Hortensia Becerra de Becerra (da breve incumbência da arguição da sua tese de doutoramento relativa à data da morte da avó materna de Dante nos encarregámos, muito depois, com notável imparcialidade), foi apontada apressadamente como a principal indiciadora do carácter autobiográfico do inacabado devaneio nocturno de Goldmundo Ribas a que agora vimos fazer a (ousamos esperá-lo) definitiva referência.

Não somos, destarte - encerrados que se podem considerar os lamentáveis incidentes a que a precoce senilidade e a tão bem conhecida impulsividade gaúcha do malogrado discípulo de Uriarte Moncloa ambicionaram dar azo nas veneráveis páginas da Gazette Trimestrielle des Poids, des Mesures et de la Tauromachie Paleozoique de La Loire-et-Seine (IIIéme serie, vol. CCLXXI, tome 2, janvier, pages 446 et passim) - movidos senão pelo desejo de contribuir, na escassa medida dos nossos talentos, para o esclarecimento do contexto psico-sociológico em que deve (em que reclama) ser analisada a obra menor (no sentido Hohfeldiano do termo) de Diego Goldmundo Ribas de Incarnación Eusebio.

Dado o exíguo espaço a que nos vemos remetidos, e para que se não diga, com Welzel, que o rigor não consente (ainda que momentaneamente) ser dispensado pela justa indignação na ingrata lavra do campo pedregoso da verdade, tomamos a liberdade de prosseguir em tempo oportuno a demonstração de que o Tapor é apenas o produto da mente poética de Ribas, e de que a melancólica cidade do Mondego nunca foi - nunca podia ter sido - inquietada pela presença turva do Cappo di Tutti Capi, como Goldmundo Ribas sugeriu e a infeliz Licenciada Hortensia Becerra de Becerra quis acreditar. Cada um faz, Exm.º Senhor, o Pêndulo de Foucault que pode.

Atentamente,

Aloïsio Montoya
titular substituto da cátedra de Introdução à Compreensão da Abstracção da Razão
Facultad de Ciencias Metempsicoticas
Universidad Libre de Guadalajara
(San Silvestre de Chupitos)

Tapor

Devo ao nome improvável de Aloïsio Montoya (com quem polemizei amargamente em Paris no rescaldo da segundo colóquio Sternberg sobre os desaparecidos manuscritos warburguianos) a última zanga com a inquieta Isabel Torrijo, e o primeiro encontro com a minha obsessão pelos espelhos quebrados de Coimbra. Cismava o sábio de Siracusa (tive nas mãos a edição veneziana da sua Hepteromachia Philoctaica, na obscura loja de Sesimbra a que me atraíra um vistoso e inútil catálogo de José Cebola) que huius in adventum iam nunc et Caspia regna responsis horrent divum, e no entanto nunca vislumbrei tão nitidamente o horror do familiar conceito de biblioteca como naquela tarde em que, procurando sonolentamente na net não sei que versos esquecidos do gongórico Canotillo - talvez o sublime soneto Se tu, magra Heritrópia, sempre foste - encontrei a denominação obscena do impostor repetidamente associada a um blog coimbrão que se murmurava ser mantido por muitos para ser, apenas, as faces incompletas do Único.

Desviei-me por um instante - nunca o lamentarei o suficiente - da doce música do autor da Cariátide Justíssima para contemplar a ligação que o acaso permitira ao plagiador de von Sttautfeld para com a desconhecida sigla TAPOR. Recordo-me, como num sonho, de percorrer textos impossíveis assinados por Dervixe (julguei reconhecer o estilo do meu amigo Luciano de Freitas) e comentários de Mangas que apenas pareceriam espontâneos a quem não conhecesse profundamente as catorze regras que sustentam o I Ching. Recuei perante o gnóstico cinismo de Manolete. Assombrei-me junto às imagens barrocas de Mefistófeles. Lembrei-me então de que, na terceira conjunção dos mistérios órficos, TAPOR era o nome secreto do deus estilhaçado, pronunciado apenas pela boca da mais jovem das sacerdotisas. (.......................)

Em Nova Delhi, num Setembro feito de nevoeiro e de remorsos, quis vislumbrar a esguia silhueta de Automotora. Garantiram-me nesse ano, em Buenos Aires, que o neto de Pedro Hernandez fora desafiado por Grunfo no coração do Barrio Limpio, depois de uma noite ineteira de jogo e de complacência. A própria Isabel Torrijo (....................)

A simplicidade é a marca maior do labirinto, o inacabado a marca das mãos unicamente humanas. Com as mesmas letras de TAPOR tu dizes TRAPO e TROPA, e com isso o infeliz Humberto Segovia morreu acreditando que encontrara Coimbra, quando afinal só cruzara a insidiosa Toledo. A palavra PARTO evocava desagradáveis reminiscências a Leopoldo Fugavilla, e o chileno desistiu da busca a um passo do que poderia ter sido a nossa glória e a sua maldição. Coube-me a mim, humilde funcionário da Segunda Repartición de Pesos y Medidas da Provincia de Guardanapos, adivinhar a verdade escondida na PORTA férrea. Nos trinta anos seguintes continuei a carimbar os sobrescritos e a copiar diligentemente os relatórios quotidianos de Laura Tyniosa. Pesa-me agora, que vou morrer, não partilhar o segredo dos espelhos. Compreendi o TAPOR, e quem sabe tu poderás (...............)

18.1.05

As coisas que eu sou (II): The Quick and the Dead



Dez anos passaram sobre este fime, e ao fim de dez anos ainda me custa pôr o nome que em Portugal recebeu, Rápida e Mortal. Para que se perceba, Russell Crowe, Sharon Stone, Gene Hackman, Leonardo DiCaprio, e que grande grande filme, mais um que fez em mim as coisas que sou.

Um western que está para os westerns clássicos como a versão do "Gimme Gimme Gimme" dos Beseech está para a canção origal dos ABBA, se alguém sabe de quem estou a falar. Tal como me aconteceu com o The Village no último Outono, não sei contar a sua história. Ao contrário do The Village, não sei de muitas imagens para mostrar.

Era uma vez uma cidade chamada Redemption, uma cidade onde só se ia para matar e de onde só se saía morrendo. Uma cidade onde os homens vestiam de negro e de prata, as mulheres eram ruivas e usavam vestidos às flores, e as balas e o vento assobiavam a mesma canção rápida, a mesma canção mortal. Era uma vez uma cidade que tinha um Senhor. E era uma vez um forasteiro.



Rápida e mortal, sim, rápidos e mortais eram ali todos os homens, e as balas e os beijos eram sempre como a última bala e eram sempre como o primeiro beijo. Mas não é disso que se trata, pois não? Se não o perceberes não entendes porque é que os pistoleiros vestiam casacos compridos de cabedal e cabelos soltos como as asas do corvo, porque é que o crucifixo do padre foi igual aos seus olhos de cinza, porque é que o Senhor se chamava Herodes, Herod.



"E virá do céu para julgar os vivos e os mortos", dizem os católicos no seu Credo, "to judge the quick and the dead" se quisermos falar em inglês. Os vivos e os mortos, sim, porque para os outros there is no Redemption out there.



Era uma vez o Oeste, uma cidade chamada Redemption. E nunca a Sharon foi tão bonita, nunca a morte soube dançar assim.

16.1.05

Pergunta

Aqui há anos, os tribunais americanos discutiram se deviam aceitar, ou não, um pedido apresentado em nome de um grupo de tribos nativas ("índios") para impedir governo federal de legislar a expropriação e a construção em terras de antigos cemitérios. Tratava-se, para as antigas crenças, de terras sagradas.

Abstraindo das questões legais: devemos nós preocupar-nos com o "respeito" pelas crenças dos Apaches e dos Sioux, dos Navajos e dos Hopis, dos Cheyennes e dos Comanches? Devemos apoiar as cadeias de hotéis que queriam construir resorts em cima de pó de túmulos?

Gostava de saber a vossa opinião.

13.1.05

alegria, quarto mistério: mistério de ser comum (apresentação)



Um quadro começado por um homem chamado Francia, cerca de 1515, e terminado por um outro homem chamado Passerotti, muitos anos depois, talve em 1570. Um quadro que fala do mais estranho dos mistérios da alegria, o único que não é evidente mesmo para quem só sabe da alegria da terra. Mas que é afinal tão simples, o mistério de ser simples, o mistério de ser comum.

A história que esta história conta é a de que os judeus, quando nasceu o menino Cristo, pensavam que era preciso fazer uma "purificação" no templo depois de cada nascimento. Não sei bem porquê. Não sei se achavam que o sexo era sujo, e que a mulher, claro, era a que mais se sujava. E então a mãe ia purificar-se, o filho ia circuncidar-se, e talvez acontecessem outras coisas. Bem, vamos supor que a história que ando aqui a contar para que possa meditar é uma história de verdade. O menino é Deus-infinito feito homem. A mãe é virgem, antes e depois do parto. Eu li um texto de um padre, no Público de há duas semanas, que dizia, "bom, mas os evangelhos não querem aqui dar uma lição de biologia". Pois não. Querem dar uma lição "à" biologia. Mas não é disso que se trata agora. Trata-se de que esta mulher e esta criança não precisavam de ser purificados. Eles são a Pureza feita carne e sangue e ossos e lágrimas. Um e outro, um no outro. Mistério da alegria? Ainda não.

A Mãe foi ao Templo, e não precisava. A Mãe e o Filho cumpriram as regras, e as regras não eram feitas para eles. A Mãe e o Filho, ela mais mulher do que Eva e ele mais homem do que Adão, fizeram o que eu e tu devíamos ter feito se ali tivéssemos estado. É mais estranho que pagar impostos quando se pode não pagar. Cumprir a regra, e cumprindo-a demonstrar o absurdo dela. Ser igual a todos, e no ser igual trazer a alegria da diferença inteira. Ser comum, e ser único por isso mesmo. Mistério da alegria sim.

Deixem-me lembrar outra história que é quase igual a esta. Havia a mulher adúltera, havia a regra de a apedrejar até à morte. Havia os homens zelosos, cumpridores, que seguiam as regras todas e que por isso a iam matar. E a maioria estava de acordo, claro. E o menino, que entretanto tinha crescido e anunciava os mistérios da Luz, mistérios maiores antes do mistério único do SOfrimento, o menino foi chamado a ser juiz. A mulher deve ter dito "Diz-lhes que esta regra é má; Acaba com a regra que me vai acabar a mim. Grita." Jesus, diz o evangelho, escrevia na areia palavras (que ninguém leu). E disse, "sim, a regra. Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra, força". As pedras cairam uma a uma (terão sido elas a apagar na areia as palavras únicas? não sabemos). Os homens zelosos passaram a maior vergonha. Parece que os mais velhos foram os primeiros a recuar (como eu os compreendo, como eu ando a envelhecer). A mulher foi embora, "ninguém afinal te condenou, e também eu não te condeno. Mas repara, não voltes a pecar". E ela bem sabia qual era afinal o pecado dela.

Pois. Não sei se isto faz sentido. Mas isso mesmo é um mistério para meditar. Há tantas coisas aqui, há tantas coisas neste quadro, o velho a mulher de vermelho o cão. Mistério da alegria, termos olhos para ver, mãos para apresentar o que de melhor anda connosco.

Shattered pieces of my soul



(Comentários, coisas soltas, coisas que não couberam em sítio nenhum).

O que ontem escrevi não era o que queria ter escrito. Não estava em noite calma, em noite de mim. E daqui a bocadito talvez responda às respostas que tive. Mas antes está a minha gatinha. Magoou-se ontem. Caiu de uma janela, terceiro andar pedra em baixo. Sete vidas, não é? Cinco lhe sobram, que uma já deve ter gasto ao nascer, noite de Santo António dos peixes e Santo António dos gatinhos mortos patas brancas, noite de não esquecer. Gosto tanto dela. Ontem chorava e os olhos eram os olhos da mãe-a-sofrer de quando ela nasceu. Não sei se vemos coisas que estão cá dentro. Não sei o que seja a alma dos animais, de que falavam as bíblias antes de os padres terem vergonha de não ser modernos. Mas nos olhos de um gatinho pode estar todo o sofrimento, toda a esperança, todo o significado dos mundos. Porque não temos nós olhos que o vejam? Amanhã vai ela ser operada. A minha casa ficou mais escura. O que ontem escrevi, escrevi chegando do veterinário, do raio-X, do raio.

Os meus amigos-tantos do Tapor falaram do Delacroix, e lembrei-me do único quadro dele de que realmente gosto. É este que aqui está, "a orfã do cemitério". Parece a Nastassja Kinski, parece outra rapariga qualquer. Parece uma fragilidade que traz em si tanta força. Não consigo dizer se está com medo, se vem a correr, se estava a ler ou a rezar e um barulho qualquer a sobressaltou. Não sei se está a olhar para Deus ou para o Diabo. Talvez tenha medo dos fantasmas do cemitério. Talvez seja ela um deles. Acho que nem reparou que fiquei parado.

E ontem também descobri que há um botão em que faço "clic" e que me leva para o "next blog". Confirmei há pouco que não me leva duas vezes para o mesmo sítio - um dia hei-de falar do Chesterton, e de uma coisa que ele disse sobre isto e os poetas - Ontem o sítio chamava-se "Shattered pieces of my soul": Anna, americana "in the middle of nowhere" (calculo que seja o Minnesota), e o que li fez-me ficar zangado. 16 anos, "love Jesus, love candies, I'm happy oh so happy". Quem quiser saber quem são os terríveis cristãos fundamentalistas que reelegeram Bush ali tem um blog inteirinho. E que pena, não há declarações de ódio nem frases que signifiquem grandes coisas reprimidas. Há um falar da igreja onde está todos os dias, há uma ida a um concerto com os amigos e o chegar tarde a casa, e o google disse-me o que já sabia, a banda é "inspired by God" e o site até não parece mau. Tirando o cor-de-rosa do blog (oh so american) fica quase tudo o que vejo à minha volta menos a raiva menos a tristeza. E por isso (ai de mim) zangado fiquei.

Zangado fiquei, ou fiquei triste, e descarreguei nos ovos (dois) que não tinham culpa nenhuma eu sei.

Hoje, mais uma vez, acordei a tremer. Se um dia eu me converter talvez o medo fique quieto. "O Senhor é o meu pastor, nada me falta", Salmo 23 e aqui também tinha uma história a contar.

Mas ainda não me converti.

Na sexta-feira não vou poder falar com a Clara-terapeuta. E tinha uma coisa para lhe dizer, tão importante.

Um dia, há alguns anos, estive num sítio diferente de todos os sítios. Não sei se um dia falarei dele aqui. Não fica em Portugal. É um sítio onde acontece uma coisa estranha, um sítio onde o céu desce à terra de vez em quando e onde eu encontrei os santos vivos. Tive muita sorte em poder lá ir, três dias. Um profeta olhou-me e disse-me coisas que não podia saber de mim. Um santo olhou-me e calou-se. O vento passou por mim a caminho de uma capela pequena e senti o que é a alegria como se sentisse uma brisa pequena. E houve uma noite em que ouvi os santos a rezar, tinha havido dias antes um terramoto grande e interpelavam o Coração que nos guarda. Ele, o santo, falou. Falou baixinho. Falou do sofrimento do mundo. Falou do grito das coisas, dos homens, dos anjos. E da sua garganta (terá dado por ela?) saiu o grito mais assombroso que já escutei. Era noite, noite escura capela humilde. Havia velas e havia uma cruz alçada. E subiu até à cruz o sacrifício inteiro por que todo o mundo espera sem saber. Levado nas asas do grito, um grito rouco, fundo, como só um santo ou uma fera podiam gritar. Homens, porque queremos ser isto que somos, se não foi para isto que fomos feitos? (Kearinn, percebes porque é que as coisas separadas magoam? Porque fomos separados desde a fundação do mundo. Podes pensar na espada do arcanjo, podes inventar outras histórias. Toda a alma é um Avalon a perder-se em bruma.)

Eu vi e ouvi estas coisas, e vi outras coisas assombrosas. Vi o Bem e o Mal. Andei por tantos lados, sim. Ouvi do seio de uma multidão de três mil pessoas sair o canto a que se chama "cantar em línguas", e as línguas são, dizem, o canto dos anjos, e dos homens sei eu que não é ele feito. Ouvi histórias de apavorar. Dormi em casas assombradas, e vi as coisas que as assombram. Vi coisas no espelho que não deviam lá andar. Vi rostos tão puros como o da órfã do Delacroix. Vi a minha filha quase a morrer. Toquei toda a beleza, toda a perfeição que um corpo pode dar, toda a tristeza que um corpo pode receber. Vi, ouvi, toquei, senti. E o meu coração continua feito de pedra. "oh tu que dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos" (S. Paulo). Pois, porque me não ergo eu, a quem foi dado ver todas estas coisas?

Gostava de ter tempo.

11.1.05

Magritte



Pois. Talvez o Magritte saiba ajudar-me a dizer isto, a deixar palavras tão frágeis pousadas como o ovo esguio da pedra, talvez. Ou talvez devesse ter escolhido outra coisa, ainda olhei imagens de anjos e um corpo nu de mulher que era quase de certeza Rodin, só ele deixa as estátuas chorar baixinho mas o Magritte tão fácil, e estive quase a pôr aquele beijo das caras veladas, sabes? E se calhar isto ia melhor sem imagens, a Clara diz-me tantas vezes "você fala por símbolos", e eu penso-lhe (digo-lhe?) que os símbolos falam por mim, que eu só calado me continuo.

Talvez.

Nem sequer sei de que quero falar, se é que quero, se é que sei. É a maldita coisa dupla (D-U-P-L-A), Gémeos ascendente digo eu, como se fossem dois olhos, duas mãos, duas palavras. Dois mundos. Ai as sereias e os centauros e os sociais-democratas, como os invejo, poder ser uma coisa e outra e a negação de cada uma (e a soma inteira de cada uma) ao mesmo tempo e afinal ser uma coisa só, eles mesmos... Eu sou uma criança tal como um velho a recorda, um avô tal como uma criança o imagina. A mistura perfeita de azeite e água, partes iguais, partido (partida). Eu-outro ("moi, c'est un autre", e em inglês alguém saberá dizer isto, sentir isto?). Eu-ouro. Eu-ou. Nunca sou o que escreve, mas o que se desenha ao escrever (talvez afinal devesse ter posto aqui aquelas mãos recíprocas do Escher, talvez). Cala-te.

Difícil explicar isto à Clara, dizer à Clara as coisas que às claras não faço, e se um dia sonhar claras em castelo estarei curado segundo Freud. Claramente, não é? Mente sim, todos mentimos, até o outro-que-sou.

O ovo esguio da pedra, não era? Pois, o ovo da impossibilidade metafísica se isto afinal fosse um Dali, mas eu queria falar Daqui, entendes? Daqui onde não há Salvador salvo a dor (pudor) ao redor. O ovo esguio da pedra, altos muros, mais altas as asas da águia e saberá ela que o ovo aguarda (que o ovo a guarda)? A vida está sempre fora de nós, é isto que queres dizer, Magritte? Então porque não dizes, não é, não deve ser, deve ser antes que todo o ovo frágil tem junto de si a imutabilidade da montanha que pariu o rato que há-de roer o ovo do rei da rússia.

O ovo da serpente, quem é que te disse que o ovo era da águia, a águia assiste impotente e o ovo vai estalar céu tão azul como sempre (ele era belga).

Não, não é hoje que ele vai falar de mim e eu dele. Não é hoje a sereia nem o centauro. Sim, quando eu sou a pedra é pela vida que anseio, palpitação da casca frágil, equilíbrio dos muros. E quando sou o ovo não sei de que monstro (imagino-o verde, lento, húmido...), queria só a beleza intemporal das asas-falésias, dos penhascos-garras, do olho de água ninho dos deuses claros. Sei. Sou as coisas todas que o Pessoa disse (e sou-as mal ditas, soas maldita) e se o Pessoa as disse daquela maneira porque é que não escreveu "soluções na página 34", afinal estava a brincar acorda. Come chocolates, pequeno, come o ovo de chocolate do Magritte meu grito, grato, meu. Eu. Eu outra vez, eu. Essa coisa que somos.

Não, não é hoje que vou falar.

9.1.05

Uma só coisa



Força ao progresso em nome do homem!
amaldiçoo e detesto o pseudoprogresso,
queimam-me a garganta os termos técnicos,
dei-lhes alma e voz:

maldito, porque uma mulher no futuro
perguntará, mastigando pílulas sintéticas:
"Em Voznesenskij, terceiro volume,
o ciclotrão que animal é?"
De repente, respondo: "Os seus ossos enferrujados acabaram,
como uma sucata de carro velho, já deixaram de meter medo."
Os técnicos e as potências
estão sujeitos à morte e ao esquecimento.

Uma só coisa dura sobre a Terra
como raio de estrela extinta que brilha ainda:
há muito tempo, chamavam-lhe alma.

A. Voznesenskij (1983)

6.1.05

alegria, terceiro mistério: mistério do nascimento



Hoje é Dia de Reis, e costumamos pensar que se recorda nele a história antiga de três reis que vieram dar prendas a um menino. Mas a história nunca foi essa, não: foi sempre a de três homens que vieram receber a grande prenda prometida, a prenda da presença inteira e do nascimento no coração. Olhem bem para aqui (ícone ortodoxo, e infelizmente não pude saber mais) e vejam quem é que está a oferecer, de quem são os olhos abertos que recebem. Todos nós, mesmo se formos reis e mesmo se formos magos, sabemos hoje que alguém nos olha maior que nós, sabemos que o que acaba de nascer é afinal o que existiu desde a fundação do mundo.

Sim, mistério da alegria maior. Tema para meditar neste dia de bolo-rei e frio. Mistério do nascimento e da vida, mistério de oferecer.

Schreck

Almocei num restaurante ligado à televisão do império, a CNN. Lá, como cá, os jornalistas andam entusiasmados com a "generosidade" dos governos do mundo diante das multidões devastadas do Índico. Subliminarmente passa a ideia de que a Nova Ordem Mundial se distingue pelas virtudes cristãs da caridade. E eu também fiquei impressionado. Se li bem o jornal de hoje, os donativos oficiais já correspondem a cinco vezes (vou repetir, cinco vezes) as receitas de bilheteira do Schreck 2 (que eu não sei bem o que seja). Lembro aos distraídos que falamos do dinheiro dos nossos impostos. Do nosso dinheiro. Ai meninos esbanjadores, isso deve ser o custo de uma data de minas anti-pessoais, não? De qualquer modo, de parabéns parece estar a Austrália (vinte, trinta milhões de pessoas?): à frente, destacada, na lista dos países.

5.1.05

Gotika



Eu não quero ser um fantasma. Mas na impossibilidade de ser outra coisa, pois estamos no mundo virtual e todos não passamos senão de fantasmas, não posso impedir que me idealizem e me ponham no pedestal, mas posso e devo impedir-me de participar na alucinação colectiva.

Gosto de ser útil. Gosto de saber que estou a partilhar literatura, arte, música e cinema com as pessoas que me lêem. Gostei quando alguém me disse "obrigada por me dares a conhecer as Vampire Chronicles".

Gosto quando alguém me diz que as minhas palavras são um refresco numa tarde quente no escritório. Gosto de saber que dou prazer às pessoas que me lêem.

Mas sem perder a noção do distanciamento. Eu não existo. Sou um fantasma. Os meus próprios amigos não me conhecem e estão comigo há anos. É preciso ter isso sempre presente.

Ademais, este é um blog secreto.

(Gotika, no seu blog, no seu melhor, terça feira madrugada alta.
Pintura de Mark Rothko)

Agora falo eu, Goldmundo. Palavra puxa palavra, não é? Mas as palavras da Gotika, quando ela anda para aí virada, puxam-me coisas que parecem estas cores bravas, estas coisas de impenetrar que o Rothko andou a pintar toda a vida. Como se fosse luz empurrada, tempo a cair, céu de inferno. E quase sempre não digo nada, quase sempre mudo de assunto para não ficar mudo apenas.

Correm os rios devagar, vemos tão bem o indistinto. Não sabia que havia mais alguém assim. Gosto tanto do Rothko e sabes, Gotika, gosto tanto de te ler. Não sei se esta pintura é só uma pintura, não sei se o teu blog é só um blog secreto, não sei tantas coisas. Não sei o que são as pessoas quando não são em mim só o que nelas pintei. Não sei se alguém me vê cores, se me vê só nas cores do pedestal/espelho que trouxe de casa. E daí, talvez todos saibam as coisas certas, porque não?

Não sei se seria capaz de te conhecer, mesmo que te conhecesse há muitos anos. Penso que não. No que escreves vejo às vezes coisas de mim que nunca tinham tido voz. E coisas ao contrário. Talvez sejas igual a coisas minhas. Dramático, digo eu, porque nem a mim me sei conhecer e se fores o que eu sou então já percebo porque é que às vezes me arrepias. Talvez não sejamos suficientemente diferentes para nos entendermos, suficientemente estrangeiros para encontrar uma língua comum que nos diga. Talvez sejas a história que eu queria contar, talvez a tua história seja a única de que eu posso adivinhar o fim. Porque desse fim é só o meu princípio feito.

E aqueles que pensarem que é da Gotika que estou a falar nunca saberão nada de mim, nada dela. "O mundo que me rodeia é apenas um pormenor no meu narcisismo".

Não, não perguntes por quem os sinos dobram. Podes descobrir que se esqueceram mesmo de ti.

4.1.05

alegria, segundo mistério: mistério da visitação




Pensei em não escrever hoje, não meditar hoje. Como disse há bocadinho estou muito triste. Mas talvez por isso mesmo seja altura de voltar aos mistérios da alegria.

Para quem não saiba a história ou já a tenha esquecido, depois de a rapariga que lá em baixo tinha os cabelos tão doirados ter recebido a proposta do anjo muita coisa aconteceu. Grávida do Mistério, casou com o seu noivo calado. E soube um dia que a sua prima Isabel, prima tão velha sem filhos e sem histórias que saibamos, esperava dar o primeiro filho à sua velhice e à velhice céptica do seu marido. E a rapariga pôs-se a caminho grávida sempre, pôs-se a caminho para o que fosse preciso como a caminho ia ficar sempre (tê-lo-ia já compreendido então?), enquanto algum de nós precisar do silêncio dela, da gravidez dela.

Mistério? Vejam esta pintura, escola francesa séc. XVII, não sabemos o nome que tinham as mãos que assim a fizeram. Mistérios da alegria, mas aqui ninguém parece estar muito contente, pois não? Todos têm um ar tão sério, e vejam como a rapariga envelheceu, já não é feita de flores brancas coisas azuis, começa a vestir-se de noite e começa a levar à cabeça os lenços brancos que um dia se encherão do sangue do Filho. Mistério sim. Mistério da alegria maior. E misteriosas foram as palavras de Isabel que a pintura nos não deixa ver, as palavras de receber quem nos visita "bendita és, mãe do meu senhor, bendito é o filho que trazes em ti, por causa dele senti o meu filho a alegrar-se". Nunca mais ninguém disse "obrigado" de maneira tão bonita, pois não? Nem sempre sabemos a que senhores queremos servir.

Encontrar é sempre ir ter ao sítio certo. Ir ao teu encontro é sempre ir ao encontro do Mistério que em ti aguarda, se o que te traga não for só eu mas todas as coisas que me fizeram desde o início. Mesmo que ande cansado como cansado parecem os homens neste quadro, como cansadas são as paredes da casa deste quadro (ai a casa da pedra lavada, tão longe azul...). Mesmo que não tenha nada que valha a pena levar. Ir ao encontro é sempre a maneira de nos encontrarmos. E receber-me-ás da maneira mais bonita.

Duas mulheres dois homens. Não há anjos neste quadro, ou se há preferem ficar invisíveis, como invisíveis são as crianças escondidas nele. E um dia se hão-de mostrar, coisas pequenas, e o filho da rapariga envelhecida há-de ser o Filho e o outro há-de ser João Baptista, "e entre os filhos dos homens nenhum foi maior do que ele". Mas este quadro é feito só para quem sabe encontrar nele as coisas caladas. Por isso é tão raro podermos dizer "Cheguei, não tenhas medo. Agora estou aqui e não vou embora, podes dormir enquanto precisares, enquanto andares cansado. Nem que seja até ao fim do mundo".

Mistérios da alegria, do encontro. E sim, já não preciso de estar tão triste.

3.1.05

Èesky rozhlas Ostrava

Pois também não sei o que é isto, talvez seja checo ou talvez seja lituano, pode ser um nome e é o que agora estou a ouvir na rádio, música triste que parece também ser uma tristeza antiga, como se coisas que vieram ter comigo esta noite me tivessem levado de volta aos anos setenta, aos anos de antes dos meus anos. Também não sei o que é isto dentro de mim.

Eram oito e pouco da noite e passei no Chiado, as coisas estavam bem ia contente. Sabem os dias em que começa a chover e não tínhamos sequer reparado nas nuvens a chegar? Assim foi a tristeza que sobre mim caiu e não sei de onde veio. "Nas nossas ruas ao entardecer / há tal soturnidade há tal melancolia...", seria isto que o Verde sentia, era ele negro como eu fiquei de repente? Não sei.

Como de costume dividi-me entre uma coisa que enegrecia e uma coisa que enregelava. Gostava muito de saber explicar. Ouvi uma música que me deixou pior, passou por mim uma rapariga com uma saia negra comprida que me deixou mais calado. Ouvi rir, e não me fez bem. Tomei um café e folheei o jornal, queria responder ao Prado Coelho mas não tive forças para pensar. Andei devagar e olharam para mim como se os atrapalhasse. Ouvi outras músicas aqui e além, vim trabalhar mais um bocado e amanhã vai ser uma manhã difícil. Queria ter a noite comigo, noite de andar. E agora estou a ouvir uma rádio que talvez seja checa talvez seja de uma terra de que me esqueci. Esqueci-me de tanta coisa.

Renova-me, porque tudo o que há dentro de mim necessita ser mudado por ti. É difícil explicar.

2.1.05

alegria, primeiro mistério: mistério da anunciação



Gosto da leveza desta pintura de Dante Gabriel Rosseti, gosto do fogo e do azul, da pedra cor da roupa tão lavada. Fica tudo tão simples assim, porque simples, tão simples, é afinal o primeiro e o maior dos mistérios da alegria, aquele que fez cada um dos outros acontecer. Aqui o mistério não é o anjo, sabes? Não é, também, a virgem que neste quadro (tão bonito) é uma rapariga que tem mãos de tocar, rosto para ser beijada como sabem ter as outras raparigas todas. O mistério não é sequer a coisa escandalosa, que o Criador se tenha querido fazer de barro e terra, coisa em que não queremos acreditar. Mistério, aqui, é ter havido uma pergunta, e a pergunta ter tido resposta. Mistério é ter aqui havido aceitar.

Ela estava preparada, embora não o soubesse. "Posta em sossego", como o Camões disse da linda Inês, tão linda. E por isso a chegada do anjo não a perturbou mais que a chegada do sol das manhãs, do luar das noites claras. Nem a perturbaram as coisas difíceis que ele disse e lhe pediu, e só perguntou "como é que isso vai ser, não conheço homem, diz". E nesse momento olhou-o nos olhos, e nunca um anjo viu uns olhos tão grandes. A primeira Nossa Senhora, Nossa Senhora do Sim.

"De todos os seus olhos a criatura vê o Aberto", disse Rainer Maria Rilke, e continuou "Mas os nossos olhos estão sempre como que virados para dentro, como armadilhas que cercam a sua liberdade" (não disse com estas palavras, mas se quiseres procura a Oitava Elegia de Duíno e lê devagarinho os versos maiores que já foram escritos). Virados para dentro, sim, mas repara agora bem no olhar que Dante Gabriel o pintor deu à mulher, no olhar que Gabriel-o-Anjo fez que se pousasse no olhar dele. Mistério da alegria, mistério de olhar.

Passamos o dia 25 de Março como se fosse um dia qualquer, olhos virados. Mas eu queria que pelo menos esse dia, o dia em que se recorda esta história (o dia, também, em que a Ribeira começou) fosse em nós que nos lemos o dia de olhar com olhos grandes os olhos pequenos do mundo todo. Mesmo não acreditando que esta história de anjos seja verdade, que esta história de mulheres seja verdade, que possa haver no mundo flores assim tão brancas coisas tão azuis. Olhar como se já tivesses aceitado, aceitar como se já tivesses olhado a história toda.

(E isso, sabes, posso eu dizer-te que não é verdade nunca, nem foi verdade nesta história que só o Mistério sabe ser verdadeira. Vai nascer uma criança, murmurou o anjo, e disse talvez outras coisas. Mas não lhe disse és tão bonita e vais chorar tanto, não lhe disse assim como o vais embalar nos teus braços daqui a pouco assim vais embalar o seu corpo morto daqui a tantos anos, e o Miguel Ângelo vai fazer de ti a estátua mais bonita do mundo, a Pietà. Não lhe disse vais ser sempre tão calada, quatro livros hão-de contar a tua história e neles só vão saber os homens sete frases ditas por ti. Não lhe disse vais ser feliz, o que nós queremos que todos nos digam.)

Alegria é uma palavra escondida. Em português tem, para mim, ainda por cima o defeito de ser parecida com aletria, doce de que eu não gosto muito. Gosto mais de "joie", de "joy", fazem lembrar jóias vermelhas, tesouros doirados de piratas. Mas alegria é em todas as línguas uma palavra escondida, menos talvez na língua dos anjos que a saboreou desde o princípio do mundo, guardada para este momento a dois. Escondida debaixo da palavra "prazer", da palavra "desejo", da palavra "ter". Uma palavra pequena, e por isso é nos pequenitos que vemos a alegria inteira, a alegria de ser aquilo e estar ali, e estarmos ali nós inteiros com eles. Não tem nada a ver com gargalhadas. É uma palavra branquinha, feita para pousar em madeira igual à da cama deste quadro, para se debruçar de janelas largas iguais às deste quadro. E é por ser escondida e branquinha que é uma palavra importante. E é palavra de aceitar.

É possível aceitar o que nos vem do mundo, o que nos chega de fora. E aí a nossa história encontra esta história, as nossas coisas ficam como a pedra lavada. Mistério, sim. O mistério que faz nascer as coisas todas como se fossem as coisas em nós uma criança.

Tenho coisas para dizer. Mas estou desde quinta feira sem net, e de manhã não me apetece falar. Se a manhã for de sol, muito menos. Começa Janeiro, e Janeiro (o Capricórnio) tem sido desde há muitos anos o mês mau.