30.4.05
Se eu soubesse
se eu soubesse atar-me à vida
como se ata
quem se mata por amor
avidamente
à vida a mente me atava
nem me matava
nem me matavas de dor
Perdemo-nos, disse ele. Mentem tanto as palavras, não é? Noite fechada, mas são os dias que fecham e é a noite que sabe rasgar. Faltam tantas palavras, não é? Sozinho quer dizer um, mas fomo-nos perdendo até chegar ao zero tão largo. Faltam e mentem, deixa. Não vamos faltar ao encontro marcado (vês? são os desencontros que ficam marcados no fim). Vou contigo agora que tudo está tão dentro, perdemo-nos e só podemos abrir-nos a nós. Vem aqui. Toma. Liberta-me.
Ata-me, disse ela.
[pintura: Ata-me 1, de
Elisabeth Cortella (2000)]
28.4.05
"Oh tocadora de harpa, se eu pudesse
beijar teu gesto sem beijar as tuas mãos..."
Fernando Pessoa
Sim. Se eu pudesse, não é? Mas não posso, não quero, já não. Sabes, quebraram-se as harpas de mim, e ainda bem. Não mais o som distante, não mais o gesto puro da tocadora de harpa. Olha-me bem, já que para isto até aqui me trouxeste. Para isto fecharam-se as portas, rasgámos a luz. Para isto atravessámos o grito, perdemo-nos. Calou-se a harpa, pode a noite enfim cantar a sua vitória. Hoje eu sou eu, olha-me bem: só sou inteiro nas trevas habitadas, espírito dos mundos. Sou feito da fome, da sede. E a água transformada em vinho, o vinho transformado em sangue. Mistério da vida, que é só a morte a abraçar. Sim. Não veremos as mãos. Não é preciso.
Abraça-me.
[pintura: madonna, de Münch]
26.4.05
Estou aqui, sabes? Estou sempre aqui. Não vou embora, não te vou tocar. Não chores. Não fiques assim. Não te obrigo a falar. Não quero sequer que abras os olhos, e de qualquer maneira fechei as janelas e as portas, não há luz. Sossega. Eu estou aqui. Não, não te vou levar para lado nenhum. Tu sabes que não há lado nenhum, até foste tu que mo ensinaste quando perguntei para onde ias, donde eras. E não vou falar também, já não quero saber porquê. Sim, coisas a dizer. Talvez tivesse também, sim. Mas não agora, não agora, não enquanto soubermos tantas músicas, enquanto pudermos beber, enquanto puder ler as linhas quase apagadas das tuas mãos. Não é preciso, não é realmente preciso. Deixa-te ficar. E se quiseres diz-me tudo, tudo. Conta-me baixinho, como nas histórias de adormecer. Deixa-me ser eu desta vez a história de acordar. As coisas são coisas. As coisas fizeram-te assim, negro tão baço. És tão bonita. E eu também não tenho para onde ir, acho que as saídas estão cortadas. Lá fora as coisas devem estar a arder, os mundos ardem. Não sei quanto tempo temos, porquê? Não interessa nada, sossega agora. Dorme. Dorme tranquila como se fosses a própria noite a dormir. Eu estou aqui, fico quieto. Eu não te quero abraçar. Eu não quero a tua vida. Quero ir buscar os meus olhos ao fundo da tua história. Quero rasgar o resto da luz.
Escuta-me.
[pintura: Retrato de Emma Hobson,
de John Constable (cerca de 1806)]
25.4.05
24.4.05
23.4.05
É só quando a morte ronda que o amor se abre à totalidade das coisas, e por isso nunca entendi o amor pelo que apenas vai estando vivo. Nunca procurei a felicidade, nunca a quis dar. Talvez por isso tenha sempre sido olhado com estranheza pelas pessoas contentes, pelas pessoas diurnas. Talvez por isso tenha andado tão sozinho. Mas quis só - não a encontrei - partilhar a quietude que anuncia a chegada simples do amor, e a chegada tranquila da morte. Idealmente, a chegada de ambos, enlaçados como os amantes eternos que na verdade são. Por isso calar, em mim, tantas vezes não foi mais do que deixar morrer a chama que os dias teimaram em alimentar. Por isso amo aquele que aprendeu, de uma vez por todas, que a vida é insuportável.
Mas hoje vai chegar o tempo do oiro final.
[pintura de Waterhouse. Pré-Rafaelita, claro]
22.4.05
Um dia a noite falará inteira pelas minhas mãos, como na primeira noite.
Um dia hei-de olhar as árvores e as ruínas sem me recordar do teu rosto, porque ao meu alcance há-de estar o teu rosto.
Um dia hei-de-me calar, sabendo que não haverá nada que não tenha sido dito, e nada que não tenha sido escutado.
Um dia hei-de empunhar a espada, e da minha alma há-de ela fazer a baínha mais segura. E hei-de entender a sua canção doce, o canto triunfante da espada que não anseia a batalha, mas que não teme a batalha.
Um dia hei-de-me lembrar do que te disse quando pela primeira vez baixaste os olhos.
Um dia hei-de retomar o meu lugar junto dos domadores de cavalos.
21.4.05
1. Não gosto da Paula Rego, e acho a Casa da Música muito feia.
2. Estou contente com a eleição de Bento XVI.
3. Acho o Imperador Americano um patarata (e pronto, cometi um crime informático).
4. Gosto de Wagner, e não me impressiona que o Woody Allen tenha dito que quando o ouve lhe apetece invadir a Polónia.
5. Não faço ideia como se chama o treinador do Sporting ou o guarda-redes do Benfica.
6. Não tenho nada contra a homosexualidade.
7. Acho a IVG um pecado grave, e acho fundamental que seja despenalizada.
8. Não vou ler as putas tristes do Garcia Marquez, nem o Harry Potter, nem o Da Vinci.
9. Acho que Nossa Senhora apareceu em Fátima, sim.
10. Sei ler um horóscopo.
11. Nunca na minha vida me passou pela cabeça votar no PSD ou no PS.
12. Gosto muito dos Habsburgos, os antigos imperadores da Áustria. Gosto de D. Sebastião.
13. Se pudesse, ponderava seriamente a hipótese de me fazer frade cartuxo: voto de silêncio e reclusão para o resto da vida. Mas sim, o sexo ia fazer-me muita falta.
14. Sou um católico que vive há anos em pecado mortal. Não preciso do Padre Duarte da Cunha para me recordar que não posso comungar. Tenho imensa pena, imensa pena.
15. Acho as músicas da Diamanda Gálas e as dos Dead Can Dance arrepiantes de bonitas.
16. Acho o movimento gótico a única tentativa de viver nobremente que surgiu nos últimos trinta anos.
17. Realmente não consigo entender o jazz.
18. Por duas vezes vi um fantasma, talvez três. Mas duas de certeza.
19. Estou enamorado, e isso não me faz nem um bocadinho feliz.
20. Não teria nenhum escrúpulo moral em matar um homem. Medo talvez.
21. Não sei tomar conta de mim. Aparentemente os meus gatos não se importam muito de viver comigo.
22. Choro em quase todos os filmes que vou ver. Chorei no Missão Impossível-2.
23. Exceptuando viagens, já tive todas as experiências que queria ter na vida, menos uma: acordar uma manhã ao lado de alguém, feliz e tranquilo (já acordei feliz, e já acordei tranquilo; mas nunca ambos).
24. Não gosto de chocolate branco. Mas gosto de diospiros e de morangos.
25. Quando me sinto mal do fígado, como ovos e fico bem.
26. Sei que daqui a uns anos serei alcoólico, a não ser que mude muitas coisas em mim.
27. Tenho medo de mudar muitas coisas em mim.
28. Gostava de ser mulher. Tanto quanto consigo perceber, se o fosse seria lésbica.
29. Tenho esta Ribeira, e nunca sei o que fazer com ela.
30. Espero que os meus filhos não sigam o meu exemplo, não sejam como eu e me perdoem não lhes dizer inteiramente o que sou.
31. Gostava de ter uma filha chamada Vitória.
19.4.05
(À Venus Diablo, por tudo e por nada)
Não nos conhecemos? Nunca nos vimos? Mas aqui vão-se formando, devagarinho, laços entre pessoas que por isso não deixam de ser pessoas. Tâo diferentes, tão incertas. Nenhum blog é uma ilha, disse eu num dia em que estava tão triste. E é verdade. As coisas passam de mão em mão. Há falar e escutar, e as coisas que se dizem emergem uns tempos mais tarde, ditas de outra forma, sentidas por mais alguém. Encontramo-nos em casa uns dos outros. Partilhamos o mundo todo, sem ter que dividir coisa nenhuma. Estamos sós, e não estamos sozinhos. Reparem. Somos palavras escritas num écran. Somos isto que somos, e não sabemos explicar que somos. Somos a memória-link que se faz e desfaz ao ritmo dos dias grandes. Somos - sim, aqui somos por instantes the charming coven. . E haverá sempre alguém para trazer uma dança aos nossos passos parados.
[pintura: as quatro dançarinas, de Degas]
15.4.05
Señora de los Gitanos. Segredos do Mar Vermelho, sim (ah, que os mais novos já não sabem o que estas palavras querem dizer...).
Conheci há muitos anos, no Porto, o Fernando. Hijo y nieto de gitanos, talvez bisneto do chefe dos Maias de Espanha (ainda os haverá? estarão agora em bairros da Câmara e em grupos de rap adolescente?) de quem o meu avô fora amigo em adolescente, e que viera de Sevilha ou de Granada para Espinho com os seus animais e o seu clã, depois de uma história cega de navalhas e de morte a cavalo. Mas quem eu conheci foi o Fernando. Tinha ele nessa altura vinte anos, o cabelo preso em rabo de cavalo e uma cicatriz na face esquerda, dois revólveres e duas namoradas; ganhava cem contos em cada dia de traficar, que gastava alegremente ao volante de um inconcebível Ford verde alface. Durante um tempo bebemos, quase em silêncio: éramos conhecidos de conhecidos de conhecidos.
Mas na noite em que bebemos até madrugada (foi uma das primeiras noites em que vesti de negro e usei um anel de prata) percorremos juntos sítios onde se fabricavam os pós de enriquecer, e depois ouvi-o tocar na guitarra, perdido de bêbedo e com uma voz que fazia lembrar a Lua, o Señora de los Gitanos como nunca o tinha ouvido ser cantado.
Não nos encontráramos por acaso, o negro não era acaso. E eu tinha medo, sim. Algum tempo antes, com os seus amigos polícias (com os seus amigos polícias...) o Fernando tinha violado uma rapariga junto das encostas do Douro em noche de sangre y de luna, e a essa rapariga eu tinha jurado que voltaria a acordar...
Que mais posso dizer? A ela tinha-a eu conhecido quando os seus olhos eram brilhantes, e demorara-me a olhá-la mesmo quando ela me disse "sabes, este é o meu namorado...mas gosto muito de ti". Que eu saiba, a Señora de los Gitanos nunca mais foi tocada por aquelas cordas, depois da noite tão comprida. Sim, às vezes eu sei de onde me vem o medo. Ásperos caminhos. Segredos do Mar Vermelho.
(Conhecem a canção da Laurie Anderson?
"It was August, Summer of '82
You had that rusty old car
And me I had nothing better to do
...
If I could open my mouth now
there's so much I would say
Like I can never be honest
Like I'm it for the thrill
Like I never loved anyone
And I never will")
"Porquê" é quase sempre a palavra mais cruel. Talvez devêssemos ser, para nós e para os outros, como as imagens, como as músicas: não coisas a compreender, mas mistérios a aceitar.
(mas às vezes penso que sinto assim porque sei que, quanto mais for compreendido, menos provável será poder ser amado)
[foto: Edmund Leveckis]
13.4.05
12.4.05
11.4.05
(Não, não há coincidências. Acabei de pôr aqui esta imagem para começar a escrever e o rádio respondeu-me com The Misson UK: Butterfly on a wheel. Seja. Aqui fica a letra. Afinal, era disto que eu ia falar.
Every angel has the wish that she's never been kissed
A broken dream haunting in your sleep
And hiding in your smile a secret you must keep,
love cuts you deep
Love breaks the wings of a butterfly on a wheel
Love breaks the wings of a butterfly on a wheel
There's no scarlet in you, lay your veil down for me
As sure as god made wine, you can't wrap your arms around a memory
Take warmth from me, cold autumn wind cut sharp as a knife
And in the dark for me, you're the candle flame that flickers to life
Love breaks the wings of a butterfly on a wheel
Love breaks the wings of a butterfly on a wheel
Wise man say all is fair in love and war
There's no right or wrong in the design of love
And I could only watch as the wind crushed your wings
Broken and torn, crushed like a flower under the snow
And like the flower in spring
Love will rise again to heal your wings
Love heals the wings of a butterfly on a wheel
Love will heal the wings of a butterfly on a wheel)
E agora, como de costume, devia falar eu, Goldmundo; mas, pensando bem, por hoje já tudo ficou dito.
10.4.05
Tenho vindo a falar de ver, e tenho vindo a falar do amor. Por isso é que a Ribeira foi sempre um pedacinho da minha história, e sempre um pedacinho da mesma história. Não sei se sei ver; porque não sei de ninguém que me veja, e só nos vemos no olhar de um outro. Não sei se sei gostar; porque não sei se alguém gostaria do que trago escondido sob as máscaras e o pó de tantos dias inúteis. Mesmo que não pareça, nunca falei de mais nada; e mesmo que não pareça, nunca cheguei a dizer coisa nenhuma.
Mas agora vou directo ao assunto. Afinal já estou crescido, não é? E só as crianças gostam de jogos de roda.
Tenho andado a fazer terapia há uns meses, e nunca fui muito além de dizer o que sempre soube: o amor não existia no mundo em que me nasceram. Mas isso é uma história vulgar. Não tive de rivalizar com um Pai, demasiado poderoso para ser desafiado, demasiado ausente pare ser temido. Não tive de me libertar de uma Mãe, demasiado nocturna para ser amada por uma criança, demasiado calada para ter consciência da força terrível que a sua fraqueza tinha. Não tive uma rua para brincar nem colegas de escola que me magoassem, nunca caí de cima de uma árvore nem apanhei com o cinto nem fui fechado num quarto escuro (isto é mentira: fui fechado num quarto escuro pela D. Amélia, que era uma espécie de Dama-de-Companhia ou Governanta ou Bruxa Má... sim, nasci na upperclass, não tenho culpa. E a D. Amélia uma vez amarrou-me dentro de um lençol como se eu fosse uma múmia e deve ter sido a única vez que gritei. Tinha três anos.)
Ora, mas estes são os princípios da vida, não é? E os princípios da vida não são iguais ao princípio das histórias. Vamos ao que interessa.
Quis ser uma menina, e nunca dei por ela até ser tarde demais. Não era para ser como a Mãe, ou a Avó, ou a Cozinheira Velha ou a Bruxa Má. Nem sequer era para ser como a Mana, de quem o Pai dizia "pareces um homem, nem arranjas um namorado". Era talvez para ser a Cinderela, o Capuchinho, a menina que adormece na cama dos Ursinhos, a Dorothy de Oz ou para não ser ninguém. Nem sabia ao certo o que era uma menina, sabia apenas que as histórias que eu lia gostavam delas. E eu queria que pelo menos uma história gostasse de mim.
Ao crescer tive de ir fingindo que me sentia bem em ser um rapazito. Disso já falei. Só não consegui aprender o nome dos jogadores de futebol. Mas aprendi a dizer palavrões, a distinguir um Austin de um Mercedes, a olhar de lado para as raparigas, a beber cerveja, a fazer outras coisas inúteis. Não sei se na adolescência (catorze, quinze anos) algum deles descobriu que eu era um impostor. Penso que soube sempre ser suficientemente inteligente para isso.
Quando comecei a crescer, comecei também a encontrar o mundo estranho da homosexualidade masculina. Não tive nenhuma atracção por ninguém. Eu desprezava-os (como podia ser de outra maneira?). Mas fui, como hoje se diz, "assediado". Esses homens (porque eram homens "feitos") confirmaram-me na minha ideia de que não queria crescer para me tornar um deles. Talvez o divórcio do meu pai, que aconteceu por essa altura, tivesse contribuído para uma imagem deplorável que ainda agora conservo. Não gosto dos homens. "Demasiado sexo", dizia ontem a Gotika. "Demasiado vazio", acrescento eu; e bem sei que o vazio anda também dentro de mim.
Depois foi acontecendo uma coisa estranha: as raparigas que comecei a encontrar não se consideravam iguais a mim, mas (e isso era terrível) opostas a mim. Isto é, tratavam-me como a um rapaz em competição com outros rapazes. Queriam saber a marca da minha mota, se gostava de tennis, qual era a minha discoteca preferida (depois de ter sido um impostor no meio de outras crianças, fui um impostor no meio dos maiores betinhos do Porto, upperclass cada vez mais).
(e aqui finjam que está uma página rasgada: é o meu casamento, e eu não quero falar daquilo que me não diz respeito só a mim).
Lentamente, dividi-me em dois, como às vezes as ribeiras fazem (ascendente Gémeos, tão fácil dividir...). Parte de mim saiu da minha vida de todos os dias, das gravatas que usava, da carreira que ainda ambicionava ter, e como um fantasma que vai tomando forma foi-me levando para as cercanias da noite. Comecei a andar calado. Comecei a ouvir música, eu que não ouvia música desde que aos 17 anos me proibiram de chorar. Comecei a sair de casa, apenas para andar em ruas antigas e olhar a lua e às vezes ir mesmo para junto do mar. Comecei a olhar para mim e vi que uma parte - a maior parte - era apenas um espantalho, e o resto não era mais do que um rapazito zangado e assustado, sim, muito assustado. Devia ter, nessa altura, uns vinte e oito anos.
Entrei naquilo a que os médicos chamam "depressão". Perdi o gosto pela minha vida dos dias, e não tinha nada na noite que me chamasse para fora de mim. Devagarinho, como devagarinho fiz tudo na vida, experimentei todas as coisas que normalmente se experimentam aos dezasseis anos. Mesmo nessas falhei, sou tão desajeitado de mãos que não soube nunca enrolar bem um charro. As paredes começarama desabar à minha volta como aqueles castelos que se desmoronam nos filmes de terror. Deixei de acreditar em Deus. Deixei de acreditar em tudo o que acreditava (e ainda bem). Deixei de ser capaz de sentir o poder, fosse o poder dos outros fosse o meu próprio. Deixei de ser capaz de procurar pessoas e companhia e luzes e coisas para fazer. E não era uma pessoa sozinha, estava casado e tinha filhos pequenos e os tempos da minha casa grande e das governantas e do rapazito que servia o jantar de luvas brancas já era apenas uma recordação em fotografia amareladas. Não havia dinheiro nenhum. As pessoas diziam-me que me fosse tratar, e por tratar queriam dizer tomar comprimidos. Saí de casa.
A única coisa que eu sabia era que tinha de me deixar cair. O que acontecesse quando atingisse o fundo era uma coisa que se veria na altura. Talvez fosse mesmo o fim, talvez não. Talvez pudesse continuar. Cheguei (também já falei nisso aqui, acho) a estar uma noite de chuva numa ponte de ferro a pensar que nada valia a pena, nem mesmo acabar.
Muitas coisas aconteceram depois, senão não estaria aqui hoje. Agora vivo em Lisboa. Os meus filhos já não são tão pequenos. "Então?", dizem normalmente os que me ouvem, "que queres agora e que te falta?". Pois é.
[e mais uma vez Caspar David Friedrich...
agora A árvore no Inverno, 1829]
Às vezes fico calado, e às vezes calo-me no preciso instante em que mais coisas tinha para dizer. O engraçado é que se alguém, nesssa altura, me disser "fala" ou me perguntar "o que foi", fico igualzinho ao meu velho leitor de CD's quando acha que nenhum disco tem lá dentro. A mesma coisa acontece se, quando eu estou a chegar perto de falar, me disserem cedo demais "e porquê?". Também a verdade é que não sei muito bem que coisas seriam essas que havia a dizer. Sei que não são coisas pensadas (as coisas pensadas digo-as bem), e talvez não sejam, sequer, coisas. Seriam a maré alta se houvesse marés em mim. Mas eu, que sempre quis ser o mar, sempre fui só uma ribeira pequena. Ribeira negra, ribeira dos arcanjos, ribeira dos murmúrios. Mas não entendo a língua dos anjos e as ribeiras não sabem ter marés.
Às vezes gosto de alguém. Não é um gostar parecido com gostar de chocolate, ou de viajar até à Índia, ou dos filmes do David Lynch. É um gostar que é parecido com uma maré baixa. É um gostar em que me sinto pequeno, e sem vergonha e medo de ser pequeno. Em que a água de que sou feito (eu, que sou de um signo de fogo e de um signo de ar, mas um dia explicarei isso) fica transparente como aquelas praias inventadas para crianças em que as conchas estão ao alcance do braço e não, o peixe-aranha não anda lá. Às vezes gosto de alguém como se tivesse chegado ao mar.
E às vezes percebo que as pessoas têm medo de que as coisas cheguem ao fim, e preferem por isso não as começar. E têm medo das coisas caladas e por isso fazem tantas perguntas. E gostam, em mim, principalmente daquilo que lhes parece ser semelhante a elas.
Coisas para dizer, pessoas a gostar. Maré alta, maré baixa. Depois não acontece mais nada. Não chego a falar. Não chego a tocar. Talvez as duas coisas não possam acontecer ao mesmo tempo, não é? Talvez não esteja a correr ao encontro de mar nenhum. E isso em si não me faria mal saber. Mal, faz-me sentir ver que as coisas vão embora. Tenho mais pena de uma casa antiga ou de uma árvore derrubada do que um amigo ou amante que perdi. É que nós, humanos, somos viajantes, e as coisas foram feitas para durar como sinais nas encruzilhadas. Mal, faz-me sentir uma pessoa a doer. Uma pessoa a doer não é bem uma pessoa magoada. É uma pessoa que diz (como ontem ouvi) "não tenho nenhum objectivo", ou que diz (como ontem ouvi) "não sei se consigo suportar isto".
Ah, e depois olham para mim e perguntam "que tens, estás tão calado". Não estou, não. Estou a falar tanto que nenhuma palavra consegue sair. Estou a sentir tanta coisa que não sobra espaço para fazer um gesto. Se fosse uma pessoa normal estava a chorar (mas não, porque as pessoas normais não choram). ´
Há pessoas que precisam, acho eu, de tocar e de ser tocadas. Outras há que não precisam de nada ("embora isso signifique não viver", também me disseram ontem). Eu precisava de ser escutado devagarinho. E aí, sim, aí as coisas não iriam embora, o amor seria igual ao que eu sou. Mas é difícil, a ribeira dos murmúrios.
8.4.05
Há dias pedi que me deitassem as cartas. Já há anos que o não fazia, e a minha sempre fora a carta do Eremita. Mas hoje sou o Louco. Houve outras coisas: os abismos tão próximos são, realmente, ameaçadores. Mas não vou ser um Louco Cauteloso. Já saí dos sítios onde me deixei dormir. O Mundo é um sítio feito para dançar. A dança acabará, o Mundo também. Mas hoje, não há outro hoje que este que em mim faço.
6.4.05
"Oh meus irmãos, consagro e edifico em vós uma nobreza nova.". Esta frase é de Nietzsche, o filósofo. É também o que eu queria que a Ribeira soubesse ser, para não ser só uma coisa minha. Ou, como disse o Papa Velho no seu primeiro discurso, "homens, sede homens. Não tenhais medo."
Há uns dias a Ribeira fez um ano. Eu também cresci um bocadinho. Gostei muito de vos conhecer. Gostei muito mais de entrever, em cada um(a), a saudade da beleza pura, que é o imperfeito prenúncio da Verdade.
4.4.05
Na minha casa de criança havia um muro alto de pedra a toda a volta, e a um dos cantos do muro da frente havia um varandim em ferro forjado. Subia-se lá por três pequenos degraus de pedra, passado o banco revestido a azulejo antigo, passada a azálea amarela e as duas japoneiras de flores sangradas. Mais tarde, querendo enganar a vigilância da minha avó inquieta, aprendi a saltar do varandim até à rua morta apetecida: em frente, um plátano acolhedor (serrado numa manhã de Janeiro, sinal da modernização e da queda do meu bairro encantado) deixava-me deslizar devagarinho pelo seu tronco até ao empedrado forte da rua. Os vizinhos, humildes, fingiam que me não viam ("o menino da casa grande...") e faziam bem.
Era velho o meu varandim, e alguém (o meu avô?) plantara junto dele uma glicínia, que se apoiava no tronco espesso de uma árvore morta que talvez tivesse sido uma ameixoeira. A glicínia (as heras que nela se misturavam, as ervas altas que devagar iam comendo as heras) fazia daquilo um sítio sombrio. Os gatos escolhiam-no para dormir pelo fim da tarde. Bicharocos inenarráveis espreitavam das folhagens sumarentas. Todos os Invernos o azulejo do banco rachava mais, quase não se via já a cabeça do anjo. Devagar, muito devagar, o tronco vivo da glicínia enrolava-se nos ferros forjados, abraçava-os, misturava-se neles, fazia-se eles. Uma tarde percebi, com horror, que o varandim já não existia. Apenas pedaços soltos de ferro carcomido, esmagados pelo abraço forte do tronco vivo.
Houve tempos em que julguei (era jovem) que seria capaz de forjar a minha vida pura, e que me rodearia de glicínias e de plátanos fortes e de cabeças de anjos adormecidos como se todo o mundo me aguardasse do outro lado dos muros fáceis. Depois alguma coisa correu mal. Talvez seja apenas o ter envelhecido, e talvez me tenha tornado, não o altivo varandim, mas o tronco feio da ameixoeira decepada. Depois quis adormecer. Senti no meu peito bichos estranhos que antigamente se chamavam pecados. Pedi ao céu que fizesse chover. Os anos passaram, e o menino da casa grande já só é menino quando os olhos se lhe não fecham.
Glicínias. Árvores mortas. Gatos vadios adormecidos na fome de enganar os dias. E ferros, os ferros forjados em que da vida a forjar ficaram só as marcas das prisões que me fiz. Isto que está na foto tenho sido eu. Uma coisa que já foi, uma coisa podre, uma coisa morta. Mas não morri, e vou saltar o muro pela última vez, que desta vez não estarei em casa à hora das Ave-Marias, à hora de jantar e de me portar bem. Vou dar o último salto para a rua abraçada. Talvez tenha que derrubar os restos ferrugentros do varandim e a glicínia e a ameixoeira decepada e acordar os gatos e ferir o anjo azul e olhar para os vizinhos como se eles nunca tivessem existido. Mas saio de vez da minha casa grande. Se calhar não vou para lado nenhum. Do outro lado já o plátano enorme foi transformado em móveis suburbanos ou em lenha moribunda. Mas saltarei na mesma o muro de pedra. Quero ver o que há do outro lado da rua. Quero encontrar os traços da tinta da china. Quero voltar a chorar. Já não há tempo para voltar atrás e ficar sentado no jardim. Hei-de encontrar o perfume doce das glicínias, refazer a forma altiva do ferro forjado nas minhas mãos. Quero ser o vento na folhagem.
2.4.05
Contaram-me (não sei se é verdade) que Lobo Antunes, o escritor, deu uma entrevista. Perguntaram-lhe o que pensava dos travestis. E o escritor (ou o médico?) respondeu: "Sabe? Para chegarem àquela vida, devem ser tão solitários como eu".
Eu disse que voltava aos jardins selvagens. E entretanto, a Kearinn da Via Occulta também falou. Lacrimae Mundi, Tears of the World, alguém se lembra? "solitários são os caminhos do necromante..."
Não sei se o quadro que hoje trouxe fala por si, e então vou eu falar um bocadinho dele. E sim, antes de continuar vão ver o blog da Gotika. "As if by magic, I have been spared...". Assim são as coisas do mundo, feitas de laços tão frágeis. The Black Goddess sings alone. E quem puder compreender que compreenda.
Este quadro é uma pintura de Turner, e Turner foi o maior pintor inglês do romantismo (os primeiros góticos, se quiserem). Ao contrário de tantos outros que pintaram as montanhas, e os castelos, e as igrejas em ruínas de onde poucos anos depois haviam de nascer os vampiros de outras histórias, Turner pintou, principalmente, o mar e os navios do mar. Mais do que isso, foi o primeiro que pintou as cores, em vez de pintar com cores. Fez à pintura o que fizeram às palavras os poetas que se libertaram da rima.
O que vemos aqui é a última viagem do Temerário, que fora o navio-almirante da Armada Inglesa, que derrotara Napoleão na grande batalha de Trafalgar, e que agora vai morrer de morte matada. Reparem bem. É arrastado por um pequeno vapor, visto de frente, e as orgulhosas velas que já foram a vitória e o canto da vitória são agora, só, asas inúteis. Os mastros ganham a forma da cruz despida. E o triunfo parece ser o do fumo negro, tão diferente do esplendor dos canhões que cantaram a morte e a vitória. Ah, mas o vapor será sempre tão pequeno. E por isso, no quadro, o Sol está a ir-se embora também, como se quisesse esconder-se para deixar a Lua chorar. E por isso, em baixo à direita, a mancha negra que não sei o que seja é para mim a morte ajoelhada. Porque (viram o Village?) diante do amor todo o mundo ajoelha em espanto.
Jardins selvagens, disse eu, e era do amor que falava, e é de amor que nós andamos a falar ou à procura no coração. E disse que o amor é o que há em nós de mais semelhante à morte. "Rapa", disse a Kearinn, e a Dama Velada de Tir n'a nOg usa sempre as palavras como punhais. Mas o que é esta morte que aqui trazemos? Porque foi ela que transformou o jardim do paraíso no jardim selvagem onde felizmente vivemos (não estou a delirar: Feliz culpa, disse Santo Agostinho referendo-se ao pecado de Eva, e Agostinho sabia de que falava).
Vivemos hoje num mundo que nos ensinaram ser feito de átomos e de células e de momentos e de coisas soltas. Um mundo estilhaçado, onde não há lugar para o olhar dos deuses que unifica e consagra. O reino da quantidade. E a morte foi posta de lado, o último momento para o qual vale mais não olhar enquanto for possível olhar para as coisas fáceis. Mas isso é porque o Senhor deste Mundo é o senhor da mentira. Toda a vida é um ensaio para a morte que é, não apenas passagem, mas recapitulação e síntese e apoteose e vitória. As by magic, I have been spared. Quando a vida é feita, a morte refaz o fazer que fomos fazendo, e por isso a morte é a per-feita imagem da vida toda. E por isso o amor é antecipação e viagem e encontro. Por isso, também dá tantas vezes vontade de chorar. Porque só aqui há a entrega total ("tira", disse a Kearinn) que é a entrega que a morte nos pede.
Nos jardins selvagens a morte passeia, como o Senhor Deus passeava no jardim do Paraíso. E por isso certamente a havemos de encontrar, olhos nos olhos. E olhos nos olhos é também a única coisa que distingue o amor das coisas fáceis.
Desculpem. Eu dou tantas voltas, não é? Ainda não cheguei nem perto do que vinha dizer. Só às vezes consigo encontrar as palavras. E ninguém me ensinou a pintar ou a tocar piano ou a nadar ou a fazer com que o silêncio me baste. Ninguém me ensinou a crescer. Cheguei já à idade em que é mais fácil olhar em frente do que olhar para trás. E penso que um dia hei-de fazer a viagem triste do Temerário. Gostava mais de ter incendiado a batalha. De ter amado quando podia ainda navegar. De ter acompanhado o canto frágil dos mundos (ontem vi, nuns olhos que choraram, o canto frágil dos mundos condenados. Mas para mim já não haverá a morte ajoelhada).
E não, não trairei os jardins selvagens. Ainda há uma história que eu quero contar.