31.8.04

Eu, Goldmundo (II)

A história de uma espantosa derrota, dizia eu há uns dias, e não sei se disse bem. Hoje teria dito também a história de uma lucidez doentia, mas talvez não dissesse mais, nem dissesse melhor.

Nós somos livres, diziam os sábios antigos, quando não obedecemos aos caprichos de ninguém, nem sequer aos nossos. Quando não somos escravos de ninguém, nem sequer das nossas paixões, dos nossos desejos. Quando vivemos cada dia de acordo com o mundo todo, e com a verdade que é o fundamento todo do mundo. Nós somos livres, diziam eles, não se fizermos o que a nossa vontade nos manda, mas se em cada momento fizermos só aquilo que seja bom fazer.

Aquilo que é bom fazer. Não sei porque cresci assim. Talvez por crescer sozinho, e portanto não ter sempre à minha volta a comparação dos outros, que leva ao desejo de ser como os outros, de ter os outros. Talvez por gostar de ler, e ter lido os livros de aventuras em que o herói não o é por ter músculos e super-poderes (pobres crianças de agora) mas porque faz o que deve ser, em cada momento, feito. Talvez por sentir que não gostavam verdadeiramente de mim, e querer abraçar as coisas que não nos traem, não nos abandonam. Talvez por coisa nenhuma. Mas cresci a querer ser bom, a saber que quando fosse grande seriam boas as coisas que ia fazer.

(Tinha eu oito anos quando soube também que no mundo havia a morte, e que eu era mortal. Foi antes ainda de o meu avô morrer, e foi por causa de um cãozito - um caniche preto - que me mordeu na mão, num restaurante de verão à beira-mar. O avô levou-me a uma farmácia, e o senhor da farmácia - estaria a brincar? - disse com ar muito sério "Bom, se o cão tiver raiva o miúdo morre daqui a meia hora. Mas em princípio não há-de ter". "Que coisa", respondeu o meu avô, "a minha filha só chega na quinta-feira". Sim, nunca se esqueçam de que as crianças não esquecem.)

Falei do caniche preto - cães pretos são os que guardam a porta do inferno, alguém se lembra da história dos cães com os olhos grandes como pratos, grandes como mós de moinho? - porque deve ter sido a primeira coisa que eu senti muito (a primeira vez que eu senti medo) e o que disse sobre os sábios tem esta consequência terrível: se quiseres ser bom, se quiseres não viver como o teu próprio escravo, não ouças o que o teu coração te diz. É estranho, não é? É o contrário de tudo o que nos dizem desde que nascemos. Vai aonde te leva o coração... Mas eu continuo a pensar que não é assim. O que nós sentimos não é muito importante. O que nós queremos não interessa muito. O que nós desejamos é veneno a correr. Tudo está no que realmente fizermos.

E não sei se afinal o caniche preto me envenenou, se as coisas negras afinal já cá andavam. Mas os meus caminhos não foram afinal direitos ("não és feito de linhas direitas", disseram-me uma vez...), e por isso o que fiz não foi mais do que desfazer coisas. Não consegui nunca deixar de querer mandar em mim, e por isso de ser escravo das minhas coisas caladas. Não consegui nunca deixar de achar importantíssimo o que sentia, o que queria ter, o que não tinha. Pus a minha alma à venda por um abraço que nunca chegou.

E agora (principalmente se te lembras da minha Rapariga de Azul, se te lembras que nós vemos o que queremos ver), olha bem para a pintura lá em cima. Olha agora. Vês um homem cansado, vencido. Talvez esteja ainda a chorar. Uma rapariga de cabelos cor do pôr do sol abraça-o e murmura-lhe as palavras de consolação... também viste? Pois. A pintura é de Edward Munch. Que fez aquele famoso "Grito", agora roubado. Chama-se "o beijo do vampiro", foi pintada em 1895. Olha outra vez.)

Não sei como escrever que estou a sorrir e um bocadinho triste. Os caminhos do bem requerem muita coragem. E eu sempre fui um cobarde. Vi sombras e voltei para trás. Senti-me sozinho e larguei da mão a espada que me levava (eu julgava que era eu que a levava a ela). Quis ser feliz à maneira moderna. Ou seja, ser feliz por ter momentos felizes. Olhei para mim, só para mim, como aquele Narciso do Caravaggio que também já aqui deixei, como se eu fosse alguma coisa sem o mundo todo à minha volta. Chamei pelos anjos negros.

Sim, a história de uma derrota e a história de uma doença chamada lucidez. Eu que fui criado para ser um homem fui afinal fraco e cobarde. Mas por qualquer razão estranha não consegui também negar que existissem a fraqueza e a cobardia. Não consigo deixar de ver o bem. Não consigo dizer que tanto faz a cor dos anjos. Não consigo dizer "eu não sou mau, porque o mal não existe".

E pronto. Era isto que eu queria dizer. Queria dizer outra coisa também, que está (consegues entender?) muito ligada a tudo o que em cima ficou. Dizem que Haendel, o compositor, chorou quando ouviu pela primeira vez o "Messias" que é talvez a sua obra-prima. "Não fui eu que fiz isto", disse ele. "Eu não sei fazer uma beleza assim". Eu não sou o Haendel nem fui nunca tocado pelos anjos da beleza. E no entanto esta ribeira tem sido para mim um recanto frágil do mundo, como se não corresse na terra mortal mas no país leve das fadas. E não, não sou eu que a faço assim. O teu olhar tem feito transparentes as águas sombrias. As palavras que me tens deixado fazem a ribeira correr. Sim, eu sou o barqueiro e a ribeira e o redemoinho oculto tão temível. Mas de cada vez que estás comigo aqui a barca não é só a barca do inferno.

30.8.04

Bloody days

Há momentos em que nada em mim se faz de palavras, o que quer dizer que nada em mim há daquilo com que todos os dias me vou fazendo. Tantas coisas há que por dentro de mim querem falar, e hoje não têm palavras que as digam. Agora fazia-me bem saber tocar, talvez um piano ou violino me ajudassem. Ou precisava de ouvir (esta noite não basta ler), ouvir alguém a falar, sentir alguém a falar (e a estar calado) como se pode sentir devagar a chuva a cair numa varanda abrigada.

E no entanto não tenho andado triste, pelo contrário (o calor está a acabar). É como se fosse apenas um espelho ou uma folha em branco. O que me derem ficará cá, mas por mim nada será dado. Uma espécie de Lua Nova, talvez, e não sei se devia ser assim em noite de Lua Cheia como a de hoje.

Deixo aqui, à falta de melhor, o registo de uma coisa que tem vindo a acontecer em minha casa desde quarta-feira. Estou sozinho (com as minhas duas gatinhas). Na quarta, ao acordar, encontrei o lavatório pintalgado de sangue (ou qualquer coisa muito semelhante). Todo ele, até à parede, até à minha escova de dentes (deitei-a fora), cheio de pequeninas gotas vermelhas, que me fizeram lembrar gotinhas de tinta-da-china com que na Escola fiz uns muito imperfeitos desenhos. Não se se já repararam que as gotinhas de tinta podem ser mais pequenas que as gotas de água, não sei porquê. Mas estas eram vermelhas, e percebia-se que irradiavam de um ponto central, nas bordas do lavatório já não eram redondinhas mas rastos com a forma de pequenos cometas.

Pensei (e tão pouco sei de anatomia) que o Gatinho (é o nome da minha gatinha maior) estava com uma hemorragia ou algo semelhante. Pensei no mistério mensal da condição feminina. Pensei que ao acordar não me apetecia limpar lavatórios. E nessa noite, por cautela, fechei pela primeira vez as gatinhas na cozinha, e fechei (eu sei que isso já não tinha lógica) a porta da casa de banho. Na quinta-feira as gotinhas estavam lá outra vez, e eram mais e eram maiores e eram mais escuras. Havia também no chão um pequeno rasto que se perdia (que começava?) na porta. Descobri, assustado, que havia várias (poucas) no espelkho. Olhei-me, apalpei-me, fui ver os lençóis. Nada, não sou eu.

Hoje, depois de dois dias (duas noites) de sossego, as gotinhas estavam lá outra vez. Os gatos têm continuado encerrados à noite. Há menos gotas, mais espalhadas. Continuam a ser vermelho-escuras. Reparei num pormenor: propositadamente deixei, na quinta-feira, duas delas por limpar. Não sei porque fiz isso, se há muitos anos não tenho um microscópio, mas achei que as podia ver com mais atenção, com mais tempo. Nenhuma delas secou.

Não sei quem anda ferido pela casa durante a noite. Talvez seja uma parte de mim. Talvez esteja, outra vez, a viver numa casa habitada por qualquer outra coisa. Os gatos, que tinham a casa de banho como sítio favorito de brincadeira, não entraram lá hoje. Ao fim da tarde dormi um pouco, e é ao fim da tarde que tenho sempre os meus sonhos mais estranhos.

25.8.04

Barca bela


Ontem andei a tentar lembrar-me de quando teria sido o meu primeiro olhar para o "lado negro" do mundo (se é que existe mundo fora dele). Não falo do "sofrimento" ou da "dor" sentidos, estou mesmo a pensar em "influências culturais". E isso, ao contrário do que deve acontecer com tanta gente, não deve ter sido tanto na adolescência. A maior parte das minhas coisas aconteceram cedo demais, ou muito tarde. A Florbela Espanca encontrei-a aos dezassete anos ("tenho vinte e três anos, sou tão nova..." eram versos que me faziam sorrir). Antes disso, comecei de repente a escrever palavras sombrias que eu mesmo não entendia bem. Atrás dessas palavras havia música (Beethoven, talvez). Mas, e antes ainda? E de repente lembrei-me do meu avô (o que quer dizer que eu tinha menos de nove anos) e destes versos, e da imagem, que não me lembro se estava em alguma gravura que tivesse visto ao mesmo tempo: a água transparente de negro, a noite, a lua.


Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Ó pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Ó pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Ó pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Ó pescador!

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela,
Ó pescador!

Almeida Garrett


E lembrei-me de ter pensado (teria mesmo nove anos? mas sim, só pode ser...) que não fugiria dela, não. E não fugi.

pintura: o pescador e a sereia, de Knut Ekvall (1843-1912)

24.8.04

Pobres

Li ontem no jornal: um terço das crianças japonesas (não só do ensino básico) nunca viu um nascer nem um pôr-do-sol. Sim. Cada vez mais isso é uma coisa para os pobres. Já a duquesa de Devonshire, amiga da Rainha Victoria de Inglaterra no séc. XIX, tinha dito: "deixemos aos pobres o amor. Afinal, coitados, não têm mais nada".

23.8.04

Cidadela IV: para mim mesmo

Tu não receberás sinal nenhum, porque a marca da divindade de quem tu pretendes obter um sinal é o próprio silêncio. As pedras não sabem nem podem saber nada do templo que constituem. Nem o bocado de casca, da árvore que ele constitui na companhia de outros. Nam a árvore ou a moradia, da propriedade que compõem juntamente com outros. Nem tu, de Deus. Seria preciso que o templo aparecesse à pedra ou a árvore à casca, o que não tem sentido, pois a pedra não dispõe de linguagem em que o receber. A linguagem é da escala da árvore.

Vim a descobrir tudo isto depois daquela viagem até junto de Deus. Sempre sozinho, fechado em mim diante de mim. Não tenho esperança alguma de sair, por mim, da minha solidão. A pedra não tem esperança de ser outra coisa que não pedra. Mas ao colaborar congrega-se e torna-se templo.

Já não tenho a pretensão de esperar pela aparição do arcanjo, porque ou ele é invisível ou não é. E aqueles que esperam um sinal de Deus, é porque fazem dele um reflexo de espelho, onde não viriam a descobrir nada além deles próprios.

Saint-Exupéry, "Cidadela" (trad. de Ruy Belo)
Eu, Goldmundo

Às vezes sou assim. Quase nunca consigo falar, mas às vezes (raras vezes) não consigo nem escrever. Estou aqui há quase duas horas e já tentei tudo. Comecei por querer escrever sobre o blog da Gotika, e até tinha ontem pensado no que havia de dizer ao falar dele (ao falar dela). Ficou mais difícil do que parecia, e resolvi falar de mim porque era já de mim que vinha falando. Escrevi três parágrafos, e por isso isto tem o título que vai ficar ali em cima. Estava tão bem quando comecei, apenas um pouco cansado apesar de ter dormido até ao pôr do sol. Ouço Beseech, a estranha música "Sunset 28", "the diamond lost her world that day". E depois tudo se transformou. Agora estou com medo como se fosse morrer daqui a uma hora (e como todos nós, não sei se isso não será verdade). Agora não estou capaz de escrever.

Às vezes sou assim, ou ficam assim as coisas de que eu sou feito. Como se o fogo se aproximasse, como se a luz fosse explodir e o ar não soubesse ser respirado. E agora vou lutar com uma noite condenada a ser vencida pela luz de amanhã. Agora precisava que a escuridão fossem os três dias de trevas de que fala a Bíblia. Daqui a sete horas estarei no meio da multidão, e vou ter de pensar, falar, decidir, enfrentar, fazer as coisas que fazem tão bem os adultos contentes para quem o mundo é feito só das cores que o dia-a-dia dá. Vou ter de embrulhar o medo dentro de mim como quem arruma à pressa as provas de um crime. Vou acordar a tremer, e não hei-de querer acordar.

Às vezes sou assim, e por assim ainda bem que às vezes o Goldmundo sabe falar, para que entretanto possam os meus dias ir correndo. Ai de mim quando andamos os dois calados. Porque quando é assim o fogo aproxima-se e o sol transforma-se naquela luz tão zangada e as águas da ribeira começam a ferver. A lua não vai aparecer. A noite não vai trazer a paz nem o silêncio nem... (lembram-se do post do outro dia? pois, a quietude, o céu ausente...). E eu enfrento os pesadelos, completamente desarmado. Só a música me poderia salvar, só a música ou as palavras certas que nunca serão as palavras ditas por mim. Só os anjos.

Tenho quarenta e dois anos, e durante dez andei morto, durante outros tantos perdido. Casei-me aos vinte e dois, mas essas são contas fáceis demais. Tive uma vida feliz mas as coisas não correram bem. Outro qualquer tinha feito tanto com as jóias que deus me pôs na mão ao nascer. Os meus filhos não sabem que cada dia é para mim uma morte, acham-me um pouco estranho talvez. Cada dia que passa me sinto mais velho, e não são saudades da juventude, é o sentir que um dia o dragão será mais forte que eu. Um dia o meu medo será mais forte. Um dia farei um movimento errado com a espada que me resta que é a espada do pensamento frio. A única com que posso enfrentar o pesadelo do fogo, o pesadelo do ar. "Só tens a imagem que fazes de ti mesmo para te sustentar nos oceanos do nada", disse uma vez um poeta francês. E a imagem que faço de mim é este Goldmundo arrastado que me vai sustentando nas asas de não desejar. Far away, so close. Ainda bem que tenho a ribeira. Ainda bem que a Gotika ma ofereceu (e por isso eu queria falar dela).

Quando comecei a escrever a ribeira, disse que queria contar a história verdadeira, e ao dizer isso pensei que queria que isto fosse um sítio bonito e que a mentira é feia demais. E ainda não fui capaz de contar a minha história toda. É a história de uma espantosa derrota. É talvez, também, a história que confirma o que uma bruxa do Alto-Minho disse de mim: eu seria a pessoa mais teimosa que ela algum dia tinha visto, e por isso resistiria ao feitiço que me queriam fazer (eu não estava lá nessa noite). Talvez. Há muitos anos que penso que as minhas qualidades me atraiçoam e só me sustento nos meus defeitos.

Sim. Um dia serei derrotado de vez, um dia em que o medo seja apenas um pouco mais forte do que está a ser agora mesmo. Um dia pedirei misericórdia aos anjos. E só o anjo negro me há-de responder.


19.8.04

rosas de março: se eu morrer amanhã, bonecas roxas...

Estou de novo a chorar. Entrei ali e a Nevernaya calada a um canto, costas voltadas para eu lhe ver só o cabelo, abraçada aos vidros da janela como nunca mais voltamos a saber estar depois de ficarmos grandes. Estou de novo a chorar, e foi nos vidros de uma janela e de Dezembro e de chuva que a minha irmã me veio dizer não desças, o avô morreu, e eu fiquei tão quieto tão parado e a certa altura pensei então é isto pensar e agora já sei porque é que os grandes às vezes se calam. Não quero ser grande assim, mas era tarde e ter dez anos é muito cedo para ser tarde.

Mas não vinha aqui falar de mim. Vinha falar das rosas de março e nem sei se devia dizer estas coisas. Talvez devesse dizer olá Nevernaya olá Kearinn-a-negra, os vossos blogs são fixes, visitem o meu, experimentem falar mais vezes do Winnie-the-Pooh. Talvez devesse dizer aos quinze ou dezasseis anos não se dizem coisas dessas, pelo menos num blog onde nós os crescidos podemos ver e podemos ver que afinal somos todos pequenos, somos todos crianças com uma boneca suja esmagada contra o coração. Talvez devesse ficar calado porque a Nevernaya diz nasci nesse dia que já uma vez esqueci e mais vale deixá-la pensar que nós grandes já aprendemos a esquecer. Mas já não fiquei calado quando da outra vez encontrei os caminhos de Tir Na n'Og e quando disse nunca tinha entrado num lugar tão negro. Foi lá que fui ouvindo falar de Nevernaya-a-fiel e foi lá que as comecei a ver como filhas de uma fada qualquer, foi lá que comecei a gostar da história destas meninas e a misturá-las no meu coração. E agora a Nevernaya também tem um blog, e também tem com ela a verdade que parece o canto das harpas: sou pura.

E por isso, se vocês todos que já são grandes seguirem a Via Occulta para Tir-Na-n'Og ou se forem à procura das rosas de março, entrem lembrando-se que entraram em terra sagrada. Andem devagarinho para que as fadas não se vão embora. Sacudam dos ombros os despojos do dia antes de entrar. Peçam a um deus qualquer que nos perdoe a fraqueza, a cobardia, a nossa parte em termos aceitado crescer deixando o mundo ser o que é, fingindo tantas vezes que não era nada connosco. E sintam a música que há nas palavras da Kearinn e da Nevernaya, mesmo quando elas gritam baixinho, mesmo quando elas choram-dentro ou dizem estou de novo a chorar. Porque a música é às vezes feita das lágrimas do mundo.

Eu já não me lembro se era assim, Nevernaya, já não me lembro se as minhas palavras pareciam o fogo frio das vossas. E a almofada a que eu me agarrava foi para o lixo há muitos anos. Sim, perdi-me em Londres com nove anos e não tive medo nenhum, perdi-me de amores aos dezasseis e tive muito medo. E nesse tempo era eu o guardião da terra encantada. Nesse tempo às vezes choravam em mim as coisas misturadas, e a alegria também me fazia triste como às vezes muita luz nos faz franzir o nariz. Chorei porque ela era tão bonita. Tive medo porque ela me disse quando fizermos dezassete anos hei-de arranjar maneira de saltar a janela de noite sem o meu pai acordar. O meu coração ficou pequenino na primeira noite de chuva, a andar a pé os seis quilómetros que nos separavam para lhe deixar na janela às duas da manhã uma flor de madressilva, rosas de março para quando ela quisesse acordar. Gostas de madressilvas? tinha-me ela dito. Eu nem sei como são, mas o nome é o mais bonito. As rosas hão-de ser quando formos grandes. E tudo isso eu finjo que passou, e por isso chamamos a ontem passado.

Ah, é verdade. Uma vez fingimos que não tinha havido aula de matemática e a mãe deixou-me entrar em casa dela e vi a porta do quarto e nele havia uma bonequita roxa. Por isso colhe as rosas de março, Nevernaya, colhe às braçadas as flores que os deuses todos te quiserem dar. Veste o esplendor do azul, a glória do laranja. Não deixes sozinha a solidão da Kearinn. Sabes, nós os grandes temos muito pouco poder, e chove no mundo tantas vezes. Talvez não haja mais nada nele senão bonequitas roxas, não haja mais nada em mim senão a ausência de um deus. Mantém-te fiel a tudo o que requer fidelidade. Porque são as rosas de março que coroam a fronte das rainhas verdadeiras. E nessa coroação encontrarás a permanência, que é o sentido do mundo, e na permanência a alegria, que é o sentido da alma. E nascerá em ti a música baixinho que finalmente te murmura pronto, passou.

E vocês os grandes, sim, olhem com amor as rosas de março, caminhem na terra sagrada devagar...



Gather ye rosebuds while ye may,
Old time is still a-flying:
And this same flower that smiles today
Tomorrow will be dying.
The glorious lamp of heaven, the sun,
The higher he's a-getting,
The sooner will his race be run,
And nearer he's to setting.
That age is best which is the first,
When youth and blood are warmer;
But being spent, the worse, and worst
Times still succeed the former.
Then be not coy, but use your time,
And while ye may, go marry:
For having lost but once your prime
You may for ever tarry.

Robert Herrick (1591-1674)

(duas pinturas dos "pré-rafaelitas" ingleses, que são sempre coisas parecidas com as rosas de março: "Ofelia", de Arthur Hugues [1832-1915] e "Gather ye rosebuds while ye may", de John Waterhouse [1849-1917], que retrata o poema que aqui deixo também)




18.8.04

Cidadela III: Para a Catarina

"[o meu pai] Pegou num dos convivas e levou-o até à janela.

- Que te faz lembrar aquela nuvem acolá?

O outro ficou-se a olhar longo tempo.

- Um leão deitado - respondeu por fim.

- Mostra-o àqueles.

E meu pai, depois de dividir em duas partes a assembleia, levou os primeiros até à janela. Todos viram o leão deitado que a primeira testemunha lhes identificou, traçando-o com o dedo.

A seguir, meu pai mandou-os afastar e levou um entre os restantes até à janela:

- Que forma tem essa nuvem?

O outro ficou muito tempo a olhar.

- Um rosto sorridente - respondeu por fim.

- Mostra-o a estes aqui.

E todos viram o rosto sorridente que esta testemunha lhes mostrou, traçando-o com o dedo.

Depois o meu pai levou todo o grupo para longe das janelas.

- Esforcem-se por chegar a um acordo sobre a imagem que a nuvem representa - pediu-lhes ele.

Mas injuriaram-se uns aos outros sem resultado. O rosto sorridente era por demais evidente para uns e o leão deitado para outros.

- Os acontecimentos também têm a forma que o criador lhes conferir - afirmou-lhes o meu pai. -E todas as coisas são verdade ao mesmo tempo.

- Que seja assim quanto à nuvem, aceitamo-lo - objectaram-lhe. - Mas na vida... Se o teu exército for desprezível em comparação com o poder do teu adversário, ao raiar a madrugada do combate, não está no teu poder agir sobre o resultado.

- É certo - concordou o meu pai. - Da mesma forma que a nuvem se estende no espaço, assim os acontecimentos se estendem no tempo [...]

Voltou-se para o primeiro-ministro:

- O rei, meu vizinho, quer declarar-nos guerra. Ora, nós não estamos preparados. A criação não consiste em modelar, num dia, exércitos que não existem. Seria uma infantilidade. Mas já é criação modelar um rei, meu vizinho, que tenha necessidade do nosso amor.

- Mas não está no nosso poder modelá-lo...

- Conheço uma cantora - respondeu-lhe o meu pai - em quem hei-de pensar, se me fartar de ti. Ela, na outra noite, cantou-nos o desespero de um apaixonado fiel e pobre, que não ousa confessar o seu amor. Eu vi chorar o general, chefe do estado-maior. Ora ele é rico, rebenta de orgulho e viola raparigas inocentes. Ela tinha-no-lo mudado em dez minutos nesse anjo de candura de que ele experimentava todos os escrúpulos e todas as penas.

- Eu não sei cantar - respondeu o primeiro-ministro."

Saint-Exupéry, "Cidadela"
Ed. Presença, 3.ª edição, 1996.




Cidadela II (para todos e para ninguém)

Vou deixar falar, várias vezes, o Saint-Exupéry da minha Cidadela. Vou deixá-lo falar e falar através dele a cada um de vós, os que têm feito comigo a ribeira negra que eu sempre fui. No meio falarei eu também. Falaremos todos se quiserem. Eu falarei de mim, que de mim tenho andado calado, e falarei como sempre das coisas que me fizeram assim. Para cada um serão as palavras da Cidadela, e a ordem por que elas forem ditas não tem importância nenhuma.

(a frase do título, "para todos e para ninguém", é a dedicatória de Nietzsche no seu "Assim falava Zaratustra; a "Cidadela" que porei aqui foi traduzida pelo Ruy Belo, e isso bastaria, mesmo que ele não tivesse feito mais nada, para que do Ruy Belo nos devêssemos lembrar sempre.)


16.8.04

Cidadela

"É que não foram poucas as vezes que vi a piedade enganar-se". É assim que começa a "Cidadela" de Saint-Exupéry (o do "Principezinho"), um livro que a sua morte deixou inacabado e que talvez tivesse sido um blog se já houvesse blogs nesse tempo. Não foram poucas, não, e por isso toda a Cidadela é a procura do que possa ser, em vez da piedade, um amor de olhos abertos, um amor que chame no coração dos homens aquilo que neles merece ser amado.

... e no entanto... às vezes é engraçado conhecer a origem das palavras. A palavra "misericórdia", por exemplo, quer dizer "amor pelos que não merecem ser amados", e vem da ideia de que só deus é bom: se amássemos apenas quem merece, apenas poderíamos amar a deus... e lá estou eu a mudar de assunto...

E volto à cidadela. Cidadela era o nome que tinha a parte dos povoados protegida pelas paredes fortes de um castelo. E o livro é todo sobre a força e a fragilidade. Sobre o pouco que são as muralhas de pedra que não sejam edificadas sobre o coração dos homens. Não há nele uma história (e por isso parece um blog), mas uma espécie de diário de um príncipe, senhor do deserto e da cidadela. E é quando as coisas andam adormecidas, quando os homens repousam confiados na única força da pedra e das muralhas de pedra, que o príncipe se mantém vigilante, que percorre sozinho a sua cidadela e se apercebe da sua espantosa beleza e da fragilidade dos corações que a sustentam.

Lembrei-me de tudo isto ainda, e outra vez, por causa dos sonhos e da tentação de sucumbir aos sonhos. Viajo no mundo-dos-blogs e encontro muitas vezes flores e borboletas, conchinhas de mar e palavras leves como penas de pássaros. Tudo parece uma Primavera do Disney, e o azul e o laranja cintilam como cintilam as coisas fáceis. Estranho que, com tantas cores, o mundo "real" seja tão mau, não é? Porque raras vezes vejo "ontem fiz uma pessoa feliz", mas vejo "ontem sonhei que a menina que estava a chorar comia laranjas feitas de pedaços de lua". E sim, não foram poucas as vezes que vi a piedade enganar-se. Não foram poucas as vezes que vi a doçura tornar-se a pedra de um coração duro, como de pedra se torna a terra onde despertaram os vulcões. Por isso dizia, há uns dias, que preferia um mundo com menos afectos e mais valores. Por isso (eu sei) a alegria que vejo no mundo me parece um leve lençol que mal cobre as coisas que desaprendemos a olhar.

Eu sei que não há só laranjas e borboletas. Há também, quantas vezes, lágrimas e sangue e estar sozinho e não querer acreditar no que aconteceu. Há a revolta, e há tantas vezes a ironia que é a última arma dos desesperados. E eu não posso deixar a minha cidadela andar assim. As pessoas à minha volta andam agarradas a coisas, como aquelas crianças tristes que esmagam uma boneca suja contra o coração pequenino. Às vezes as coisas são borboletas. Outras vezes são as memórias negras da noite. Cada vez as vejo mais como formas do medo, e do medo do medo. "Oh cidadela, eu queria saber construir-te no coração dos homens!..."



13.8.04

Até para o ano

Antigamente, quando os calendários ainda não estavam aperfeiçoados, havia de vez em quando um dia que não tinha nome, como um vinte e nove de Fevereiro suplementar. E para mim cada vez mais os dias doze a quinze de Agosto são também isso mesmo: uma coisa arrastada que devia ser passada só a dormir. Não depende de estar em férias, a não ser que por causa das férias eu nem me lembre que eles chegaram e foram; não depende de estar em Lisboa, a não ser que o trabalho seja tanto (mas que me lembre só foi uma vez) que os minutos não deixem ver as horas porque as horas são sempre cinco minutos depois. De doze a quinze de Agosto há três dias em que o tempo se detém, como se o ano andasse cansado demais para continuar.

(no meio, a catorze, foi Aljubarrota e faz todo o sentido que tenha sido um dia parado, como parado foi, um dia inteiro, o destino de Portugal e por ele o destino do Mundo)

E por isso na segunda-feira há-de começar um ano novo, sem festas e sem fogo de artifício (o que é bom), e hei-de contar mais um ano de idade embora não faça anos, o que não é nem bom nem mau. É que dentro de mim é agora que o ano passa, é quando o tempo pára que dentro de mim me ponho em marcha outra vez. Adeus 2004, olá Outono, olá tantas coisas que hão-de chegar, mundo-na-mesma. Que bom viver neste parado que é estar vivo. Até para o ano!


12.8.04

Qualquer coisa de errado, qualquer coisa de azul

Por isso gosto de palavras, quando as palavras são crianças que temos de compreender para que se portem bem junto de nós. E para que possamos ser, finalmente, crianças no meio delas. (meto-me aqui na conversa de baixo, sobre silêncios e pássaros e coisas erradas)

E é com certeza, António, a inspiração e a paciência andam sempre de mãos dadas. Obrigado pela resposta. Vamos então ver o que acontece. Sim, estou a ver mesmo tudo ao mesmo tempo, nina e ebola, como pássaros...

"Gosto de algumas palavras, como ilhas num mar de silêncio. Gosto de alguns gestos leves, como pássaros num quadro, no acto de migrar, num voo errante que o olhar do pintor faz quase parado...". Sim. É isso o que eu quero dizer, ou é por isso (para poder dizer coisas assim) que preciso de encontrar a contrapartida de "silêncio". Mas há mais, não há?

Numa bica de água. Também é verdade que os pássaros não farão o voo errante se não houver a bica de água. Mas...

"Gosto de algumas palavras, como ilhas num mar de silêncio. Gosto de alguns gestos leves, como pássaros num céu ausente". João, isso vai-nos levar longe, muito longe. Como pássaros no acto de migrar. Já vamos ver.

Quietude. Carla. E fico a pensar se a quietude vem do céu ausente. (se deus existisse..., como dizes em Elsinore).

Estive a reler o "Tão longe de sítio nenhum". (leiam se puderem, se não conhecem, leiam.) E por isso e por coisas que aqui na ribeira se disseram e se calaram (é bom a minha ribeira não ser às vezes só minha), queria falar de coisas quase caladas, quase a parar.

Repara. Eu posso dizer assim: "com ela as palavras não eram precisas. às vezes estavamos ali uma tarde inteira, e era o silêncio que nos unia e era o silêncio calmo que nos contava tudo um do outro.". E depois quero continuar, como continuava o personagem do "Tão longe...": "sabíamos que gostávamos um do outro, mas não era preciso abraçar, não era preciso gesto nenhum. Porque era a "...." que nos unia, era o "....." que nos fazia tão perto."

Não, não creio que seja a bica de água. É qualquer coisa de azul. É que o silêncio tanto pode ser uma coisa à nossa volta, "à minha volta, o silêncio do céu, o silêncio do deserto. Ah deus, porque não respondes?" como pode ser uma palavra especial minha ou tua, como o joker do baralho de cartas: "e o silêncio dela disse tudo o que ele queria saber, e ele sorriu".

Por isso o silêncio é tão simples e tão estranho.

Mas os gestos são palavras a dançar nas pontas dos dedos, não é? E o silêncio na ponta dos dedos, o silêncio que faz afagar os teus cabelos num gesto quase parado (numa quietude?), o gesto que não é acto de poder mas apenas acto de amor e por isso diz tudo sem fazer nada? ( e vem daí o céu ausente?! )

(ele adivinhou o gesto que ia no coração dela. e soube tudo o que queria saber. e ela fez-se inteira nos olhos dele, como pássaros soltos num céu ausente. e nas mãos dele quase paradas bailava indeciso o sorriso terno da manhã.)


11.8.04

...

Tenho andado a pensar que há aqui qualquer coisa de errado. Como é que se completa isto?

palavra --- silêncio
gesto --- ???

"Gosto de algumas palavras, como ilhas num mar de silêncio. Gosto de alguns gestos leves, como pássaros num ..."

bem me parecia que as coisas não eram fáceis.

10.8.04

Pedaços de paisagem

Cada vez mais as pessoas são para mim um pedaço de paisagem. Dito assim pode parecer frio, e não sei se é. Dito assim pode parecer triste, e não sei (ao fim de tantos anos) se de outra maneira alguma coisa se tornaria alguma coisa. Mas cada vez mais as pessoas são pedaços de céu, ondas de mar, arcos-íris, chuva. E eu gosto muito da chuva e do mar (do céu nem tanto).

Olho-as muito, e olho-as quase sempre com atenção. Às vezes alguém parece uma praia, e apetece-me levar para casa uma concha pequena que lhe não faça falta. Às vezes alguém parece uma montanha, e apetece-me ver o mundo com os olhos que leva tão altos. Às vezes alguém parece o deserto, e aí me gostava de perder para que finalmente houvesse um fim. Não as guardo inteiras cá dentro, mas tenho bocadinhos de imagens como se tivesse tirado uma fotografia na praia e uma fotografia na neve. E digo olha como eu era junto de ti, olha como o teu gesto me guardou, olha.

Olho-as muito e penso cada vez mais. As pessoas são tantas. As pessoas são tanto. E andam quase sempre tão veladas. Ou sou eu que só as vejo ao longe, não sei. Não me aproximo delas, aproximo-me às vezes do silêncio que trazem. E não sei o que fazer às palavras que me entregam. Palavras já eu tenho dentro de mim, palavras soltas e palavras que andam aqui, quase caladas.

Já me disseram (e já acreditei) que é através dos gestos que o silêncio se abre mais, porque os gestos (os gestos verdadeiros) mais não são do que silêncio a voar. E cada vez mais olho os gestos das pessoas todas, à procura das asas quietas. Mas não gosto que os gestos venham ter comigo, não gosto sequer (cada vez mais) que olhem para mim. Porque então chega nos gestos a ambição das coisas. Chega com o olhar a palavra "poder".

Gostava de ser eu o pedaço da paisagem. Gostava de ser só a chuva a cair.


9.8.04

um viajante na ribeira

esta noite a voz não é minha. o Klatuu pediu-me que publicasse aqui um poema, e a ribeira hoje corre sob uma sombra maior. Obrigado, Klatuu.

nocturno andaluz

Noites de cinza. Corvos sobre as dunas.
A alfarrobeira deixa cair os seus dedos mortos.
Do fundo do pinhal alguma coisa canta.
Escuta as nocturnas águas, as escuras águas.
Fala agora da pureza das águias, de como
A erva cresce. Da morte no brilho
Das cascatas e das gaiolas brancas ao luar.
Das torres, dos laranjais, dos terraços. De como
Das profundezas do mundo, dos rigores da pedra
A nora levanta os cântaros. Os pés da roda
São os pés da bruxa dos silvados
Que ama os mochos. Cala agora e escuta.
Na faina auroreal a velha morta canta.


Klatuu Niktos

8.8.04

...

Li isto ontem, e pôs-me a pensar: "Não há amor que não assente no silêncio. Não há poder que não assente na palavra."

6.8.04

ribeira negra olhos baços

às vezes vou à tua ribeira, disse ela, e olhou-o como se não tivesse a certeza. às vezes vou lá, e gosto do teu sítio de rosas negras. porque é que a fizeste assim?

achas que devia ter o fundo preto em vez de azul, começou ele mas calou-se, pois, e acendeu um cigarro, quase calado quase a falar.

assim, disse ela. como se por lá andassem rosas bravas. como se fosse um sítio intocado. como se o mundo ficasse à porta.

eu gosto muito de rosas bravas, disse ele muito depressa, e não é bem isso, eu gosto das palavras "rosas bravas". como gosto de "lobos baços" e de "chuva" e de "enamorado". gosto da palavra "tu".

e sim, pensou, como se fosse um sítio intocado, mas disso não queria falar, e se tu te lembrares vais deixar essas coisas caladas. por favor, agora não. agora preferia falar de música.

sempre foi o teu mal, disse ela a rir, e agora que não te vejo há anos posso dizer isso sem te zangares. é bom falar contigo quando me inventas. não é como quando eu te gritava.

eu não te inventei, disse ele baixinho. tu tinhas uma pedra azul e tudo começou aí. bem, tudo não, havia coisas mais antigas, mas tu começaste aí. uma tarde e uma pedra azul. e essa é uma história que não contei na ribeira, pensou, a história da pedra azul que não fazia sentido e de quando disseste "six ans nous séparent" e de quando disseste "eu sou um cenário". é uma história que não sei contar.

eu não te inventei, disse ele.

não te zangues disse ela é que tu não tens rosas bravas e não és um sítio intocado. mas finges bem, e sorriu com os olhos verdes, eu perguntava o que vês tu na ribeira, como te vês tu, quem és.

nada, disse ele, e levantou a mão como se quisesse apanhar a palavra que tinha saído sem querer. o que vejo na ribeira é o que eu podia ter sido.

mesmo agora eu não tinha paciência, disse ela, ainda bem que não te vejo há anos, desde a noite do labirinto. porque é que nunca dizes o que estás a pensar?

ouve, disse ele, eu ando cansado. espera aí. então eu digo sem pensar, eu comecei a ribeira sem fazer ideia nenhuma, e às vezes acho que ela me mudou. como se andasse mais calmo. como se começasse a saber as rosas bravas e não só as palavras. às vezes não gosto muito, ainda hoje li que me disseram "as tuas palavras cantam" e senti chorar dentro de mim. é sempre esta distância do mundo, é sempre olhar. e tu sabes que eu não sou assim, e sabes muito mais que eu disso tudo, o que sou o que faço. o que fiz. as minhas palavras cantam sim, e nelas sei que há mundo lá fora. mas eu estou sempre aqui. olha a pintura que eu tenho aqui em cima, vês? é o "Narciso" de Caravaggio, sabes, o tipo que inventou a noite a pintar. o Narciso olhou para um rio e enamorou-se do que viu. e nunca soube que o que via era o seu retrato.

é isso mesmo disse ela tu gostas de um mundo que goste de ti mas não és capaz de te deixar ir. e por isso inventaste a ribeira, fizeste dela um sítio em que as coisas cabem no bolso e em que as rosas são uma palavra a cantar. é mesmo teu.

não era assim que tu fazias? disse ele para a calar. eu sou um cenário. e olha para o Caravaggio, na ribeira até o branco sabe rasgar-se em negro. e aquelas mãos quase pousadas.

4.8.04

O lugar do início (V): o que ontem pensei, sentado sob os arcos de pedra

Não me lembro se já falei disto aqui: se só houvesse homens no mundo, eu duvidaria da existência de deus. Os homens são quase sempre (o que quer dizer que assim eu os vejo) demasiado brutos ou demasiado frágeis. São como uma estátua de bronze que se tenta forjar a si própria, uma estátua ainda mal destacada da rocha informe. São uma coisa que oscila entre o macaco e o anjo caído, como se não tivesse ainda encontrado um espaço próprio.
Viram (mal me atrevo a perguntar, "leram?") o Senhor dos Anéis? Por os homens serem o que são teve o Tolkien de inventar os desgraciosos hobbits: é pelos seus olhos pequeninos que vemos a Terra Média... "Que homens aqueles!" dizia-me uma amiga comentando o primeiro filme (e essa era das que tinha lido a verdadeira história...) Sim, que homens aqueles, e que longe estamos nós daquela silenciosa grandeza... (nós e o simpático americano que se esforça imenso por representar a figura de Aragorn, o herdeiro de mil gerações de reis). É estranho pensar que nós podiamos, que nós devíamos ser assim...
Sim, se só houvesse homens no mundo eu duvidaria de deus. Mas há também as raparigas, e por elas tenho eu a certeza da existência dele, e da existência daquele "que não é prudente nomear na escuridão". Não, não estou a dizer que há loiras divinas. Não. Estou a falar de uma coisa para a qual julgo não haver uma palavra, que tantas vezes é confundida com a beleza ou a juventude (sem ser nenhuma delas), e que elas trazem consigo tantas vezes. É uma forma que parece um gesto, um gesto que parece uma palavra, um sorriso que parece um poema. É um silêncio que parece um grito, um olhar que parece uma noite, uma marca na pele que parece uma cicatriz no coração.
Uma noite, há mais de um ano, voltava eu a casa de madrugada e uma rapariga daquelas "de má vida" pediu-me um cigarro. Quando a olhei percebi que devia ser muito nova e estava quase a cair (heroína, ou a falta dela). Chovia. Falou-me as coisas que elas falam como se recitasse uma história sabida de cor. Tinha uma saia comprida inconguente, como se fosse uma hippie nocturna. Parou de falar e disse estou tão cansada. Sentou-se num banco de pedra, igual ao banco em que ontem sentado recordei tudo isto entre uma bebida e uma música feita de carvão. Disse desculpa ter-te feito parar (eu olhava-a como quando à noite me esqueço que o mundo não é um filme). Fechou os olhos e a cabeça caiu-lhe para o lado como se tivesse adormecido. O cabelo seria muito bonito se estivesse limpo, as mãos esguias podiam ter pintado ou ter sido pintadas. Estavam muito, mas muito sujas. Ao pescoço tinha (via-se mal) uma medalha da Senhora de Fátima. A dois quarteirões dali havia um café a abrir, e eu queria um café antes de me deitar e levei-a e vi-a comer dois bolos como se fossem os primeiros bolos do mundo. Adormeceu em cima do leite quente e ficou com uma madeixa de cabelo branca. Os homens (os empregados, os primeiros clientes que traziam escrita na testa "sei tudo sobre a noite") olhavam-me com olhos de este traz putas para cá.
É isso. Se só houvesse homens talvez eu não percebesse que vale a pena tentar segurar este mundo tosco. Mas às vezes (serão os meus olhos doentes?) o mundo inteiro grita-me assim. Às vezes todas as coisas choram como se estivessem à minha espera. Às vezes o gesto, o silêncio, a imperfeição de uma mulher são como o véu que se abre para o mundo que devíamos ser: e não, não fomos feitos para ser assim. Não fomos feitos para esta brevidade, esta podridão, esta cegueira. Mas se não fomos feitos - para que fomos feitos nós? Quem nos fez e nos desfez desta maneira?