29.10.04

Gato lebre mulher cão

Não há nada a fazer. Não gosto disto:


exactamente pela mesma razão de que gosto muito disto:


E por favor não me venham falar em realidade.

[Em cima: Paula Rego. Em baixo: Caspar David Friedrich]



Às vezes o mundo todo parece um caminho estreito.

28.10.04

Monopólio



Nunca gostei muito deste jogo, mesmo quando era criança aborrecia-me em pouco tempo. Gostei do Risco, conquistar o mundo. Mas acumular casinhas e notinhas sempre me pareceu estranho. É muito isso aquilo que me afasta, por dentro, da vida que é suposto levar por fora. Saiu o sete, um dois, três... compro. Aqui está. Duas casas, por favor. Volte à Partida. Azar. Perdeu a licença, pague uma multa. Rua do Ouro. Prisão. Salvo-conduto. Volte à partida. Sete.

Estive a ler o "Necromante", o romance de ficção científica que, há vinte anos, inventou a palavra "ciberespaço", deu origem à estética do Matrix e a outras coisas a que nos habituámos já. A certa altura há uma espécis de não-lugar. Não se percebe bem se é um sonho, uma ilusão cibernética, uma realidade virtual. Uma praia, um céu cinzento, o mar. O tempo não passa. É talvez ums prisão. Há uma rapariga que é uma antiga namorada morta e que talvez seja um fantasma, ou uma armadilha, ou um espião. Mas ela está ali ao lado, adormecida, com os seus cabelos negros e o seu rosto infantil. E a seguir as ondas, as ondas brancas, a espuma. Talvez haja um pássaro ao longe, talvez as luzes de uma cidade morta.

Era ali que eu queria estar agora, agora num não-lugar, num não-tempo. É talvez, obscuramente, o desejo de morrer. Mas gosto mais disso do que dos quadradinhos do monopólio. Sete. Volte atrás. Partida. Prisão.

27.10.04

A cabala

Eu acho que o Ministro tem razão. Para esta política só há uma palavra: acabá-la.

24.10.04

Little Black Spot: Do alto da serra a própria noite...

Encontrei este sítio, está ali em cima a entrada, Little Black Spot. É feito de um azul que magoa.

Rei capitão soldado ladrão...



Na outra noite sonhei uma história de príncipes e um castelo triste e um tesouro escondido na capa de um livro antigo. Havia príncipes irmãos, de olhos tristes e cabelo comprido aos caracóis, tão negros. Havia pedras e ferros e talvez uma grande lareira acesa, lá fora as trompas e os uivos dos cães.

Esta noite sonhei que era condenado à morte. Era voluntário num sítio de África, o deserto, tribos. Uma mancha escura na areia. Alguém me empurra e ao cair as minhas mãos tocam a mancha proibida. Tabu, ouço gritar, esse homem tem de morrer não se pisa a mancha sagrada. Não quero acreditar. Havia uma espécie de delegado das Nações Unidas, um homem ridículo com um fato amarelo e uns bigodes sujos de tabaco e óculos-fundo-de-garrafa. Então? É um boer sul-africano, explicam-me. Houve um equívoco qualquer, deviam ter escolhido outra pessoa. As tribos nunca aceitarão ouvi-lo. Tabu. E pronto, vou morrer quando a manhã se levantar, tenho uma noite por minha conta, começo por insultar o boer estupefacto.

Gosto tanto de sonhar, tenho a sorte de me lembrar tantas vezes. Há cores e há músicas e por duas vezes sonhei versos inconcebíveis de que ainda me lembro e que me fizeram acordar a rir. É raro sonhar com monstros, mas muitas vezes acordo a tremer também.

É engraçado como nos sonhos sou sempre o mesmo, sempre diferente, nunca me vejo a mim mesmo e cada um dos outros sou eu também com uma máscara maior. Não, nós não somos a nossa circunstância. Somos a criança que joga sem saber, rei capitão soldado ladrão... Às vezes somos uma criança a olhar.

22.10.04

Dandelion wine



Não procurem este nome, se quiserem ler em português o livro mais luminoso que alguma vez se escreveu. Não procurem a aguardente de dente-de-leão. Por razões estranhas, as duas traduções já feitas chamaram-lhe a "Cidade Fantástica" (bem, eu conto a verdadeira história, cidade fantástica foi o título da tradução francesa e o livro deve ter sido traduzido a partir dela a primeira vez... mistério é porque é que a Caminho manteve o nome enganador). Outro enigma é estar, ambas as vezes, incluído em colecções de ficção científica. É como se alguém tivesse pensado "Principezinho... planetas... já sei, vou editar este Saint-Exupéry junto do Star Trek...".

Dandelion wine (e daí vem o endereço que, como um talismã, uso no meu e-mail) é a história de um Verão numa cidade pequenina da América em 1928, visto pelos olhos muito abertos de um rapazito de doze anos. E percebemos como todas as coisas dependem sempre dos olhos que as queiram ver. Mas isso já sabíamos, não é, se não não tínhamos sequer começado a ler este livro tão grande. Não tínhamos visto coisa nenhuma.

Há uma cidadezinha americana sim, há as ruas e a Fábrica de Gelados e o cinema Elite e o ribeiro das trutas. Há o Avô sentado no alpendre, a Bisavó a fazer compotas para o Inverno, o Pai tão alto que sabe ainda todas as coisas que há para saber. Há a Sr.ª Bentley que nunca foi nova nem num milhão de milhões de anos, e que não pode ser a menina das tranças da fotografia amarelada, o Sr. Leo que quer construir a Máquina da Felicidade antes de perceber que a Máquina da Felicidade é que o constrói a ele todos os dias. Há o Coronel Freeleigh que morre aos cem anos tentando ouvir pelo telefone, uma última vez, as vozes claras da Cidade do México que para ele era a Cidade da Juventude. Há o Assassino Solitário e a incrível Máquina Verde e o eléctrico que faz a sua última viagem e a Bruxa do Clube das Senhoras da Madressilva. Há os vidros coloridos na janela da casa em frente, os pirilampos, correr descalço na relva, cheiros de alfazema e de baunilha e de limão e de hortelã, lençóis lavados de linho e rostos lavados de lágrimas. Há todas as cores de que o mundo é feito, todos os sabores, todos os gestos, ali á nossa frente como se o mundo todo fosse uma maçã verde ou um copo de limonada ou a gargalhada serena de uma senhora de idade.

A certa altura acontece uma coisa triste, muito triste. Há uma história que chega ao fim. E temos três rapazitos a andar devagar pelos caminhos de terra batida.

-Tom, conta-me agora a verdade.

-Mas qual verdade?

-Que foi que aconteceu aos fins felizes?

-Estão a dá-los nas matinées dos sábados.

-Sim, mas e na vida?

-Tudo o que sei é que me sinto bem ao ir para a cama à noite, Doug. É um fim feliz, uma vez ao dia. Na manhã seguinte acordo e pode ser que as coisas corram mal. [...]

-A gente não confessa que gosta de chorar. Ora nós choramos um bocado e logo tudo se compõe. Aí está o teu fim feliz. Ficas em condições de voltar cá para fora e andar outra vez por aí com os outros. E isso é o princípio de sabe-se lá o quê. De modo que agora o Sr. Forrester vai vai pensar em tudo muito bem e vai ver que não há outro remédio senão um bom choro para depois olhar à sua volta e perceber que é outra vez manhã mesmo que já sejam cinco da tarde.

Dandelion wine. A aguardente de dente-de-leão, que o Avô fabrica na Cave para que no Inverno todos possam beber bocadinhos luminosos do Verão guardado. Um rapazito que aprende a guardar o que mais importa. Um livro para ler às cinco da tarde de todas as manhãs do mundo.

21.10.04

Gosto do rio de manhã, disse ela a sorrir, principalmente quando há nevoeiro. Gosto das gaivotas, de ver Gaia a aparecer e desaparecer como se fosse uma ilha longe.

Sim, disse o rapazito, vejo isso quando atravesso a ponte às vezes. Mas deve ser bom ir a pé. Tens sorte em morar perto.

Um dia vens comigo se quiseres, disse ela, e continuou a comer o pão de mel.

Nos dias a seguir continuaram a falar, quase sem dar por ela, quase sem saber. O rapazito foi deixando de ir jogar bilhar quando não havia aulas de português (quase nunca havia aulas de português), ela foi deixando de fazer fosse lá o que fosse que fazia. Era bom esperá-la no corredor grande, olhar com muita atenção a mochila cinzenta, a t-shirt verde com um balão desenhado, os olhos que riam, tão verdes também. Era bom falar e ouvir e perceber como o mundo era feito de tantas coisas diferentes.

Gosto de bolas de berlim, dizia ela, Gosto de ir para casa quando chove devagarinho. Na Rua da Paz há sempre um morcego que tenta pousar no meu cabelo.

Em que dia fazes anos, perguntou ele de repente, e ficou espantado quando ela demorou a responder. Sou três meses mais velha que tu, disse ela devagar, tem mal? Mas ele não percebeu o que ela queria dizer, e disse ah, então é Dezembro. Novembro, disse ela baixinho. Já tenho dezassete anos.

Porque nos dias de Nevoeiro o Douro não é um rio como os outros. E sim, as gaivotas são de certeza as almas mortas dos marinheiros, e os marinheiros as almas pousadas das gaivotas, por isso gostam do mar. Acreditas em fantasmas? Uma vez a lâmpada da minha rua apagou-se quando eu passei, disse ela.

A minha casa, dizia ele, e ela ficava com os olhos tão abertos.

Nesse dia o nevoeiro não quis ir embora.

Dá-me uma madressilva, disse ela de repente. Dá-me uma madressilva para eu me lembrar de ti quando fico em casa, quando o meu pai não me deixa sair. Dou claro, disse ele, não sei como são as madressilvas, devem ser trepadeiras. São brancas disse ela, mas também não sei como são, nunca vi nenhuma. Li num livro que são brancas. São parecidas contigo, explicou ele e de repente calou-se. E não disse que eram bonitas.

No meio do rio passava uma sombra que devia ser um barco devagar. Um dia vou subir o rio, disse ela. Há coisas de pedra enormes, há coisas que nunca ninguém viu. Gostava de ter um sítio só para mim, com muitas árvores e musgo e onde o tempo não andasse para a frente. Onde as coisas se calassem para mim.

Andaram devagar, ao longo do país pequeno das margens, a ponte da Arrábida faz medo vista daqui, tão alta. Andaram devagar e as gaivotas aproximaram-se, como se os quisessem avisar de alguma coisa. Mas o rapazito não prestou atenção.

Olha, estamos sentados no terceiro banco a contar da esquerda neste jardim, disse ela. Um dia vou-te perguntar onde estivemos sentados e tu não vais ser capaz de te lembrar. Não é suficientemente importante, pois não? Um dia quando tiveres vinte anos. Vou lembrar, disse ele, um banco vermelho com coisas escritas há muito tempo, e tu sentada com a cabeça encostada aos joelhos como sempre fazes. Vou lembrar esse risco de esferográfica que tens na mão, pareces uma criança pequena sempre com as mãos sujas de tinta. E um restinho de bola de berlim, disse ela a olhar as mãos com muita atenção.

E o rapazito pensou que mais uma vez ela o olhava como se esperasse alguma coisa, como se houvesse alguma coisa que ele devesse dizer. Ainda não te disse, lembrou-se de repente. No Verão vou para Paris.

É tão tarde, disse ela baixinho, como se não fosse aquilo que queria dizer. Vamos embora, a minha mãe já me vai chatear. Apanhamos um eléctrico, está bem?

Porque é que ela não gosta de Paris, pensou o rapazito sem perceber.

Vinha quase cheio o eléctrico, tardes de chuva. Vinha quase cheio e quando ele se quis segurar sentiu a mão dela no corrimão de madeira. Desculpa, começou a dizer, e de repente calou-se. Porque a mão dela era igual ao que queria ter dito. Agora sei porque é que tens as mãos sempre sujas de tinta, pensou, porque é que tens esse sinal no pulso tão magro. Agora sei tantas coisas. Não, não faz mal nenhum teres dezassete anos já. O eléctrico começou a andar num gemido alto. Ela levantou os olhos, meu Deus verdes, olhos tão verdes. Não olhes assim para mim. Não sejas assim o mundo todo.

Chegamos, disse ela baixinho ao fim de muito tempo, e o rapazito deixou de sentir os cabelos pousados no seu ombro, a camisola de lã encostada à sua. O chão outra vez, o mundo. O rapazito ficou parado no passeio como se não soubesse para onde devia ir. Ela tinha os olhos baixos. Vou correr, disse muito depressa. Dá-me uma madressilva então. Dá-me. Dá-me outra vez a tua mão, pensou ele, mas agora já descemos, já não está aqui o corrimão de madeira, então era isto. Sim, disse ele. Dou.

Gosto tanto de ti, disse ela logo a seguir, vou correr. Vai com cuidado.

Isto, pensou o rapazito parado enquanto ela se perdia nas pessoas tantas, e isto foi um beijo. Parecido com as gaivotas, com o nevoeiro do rio. Estou tão feliz, tantas coisas. E começou a andar até ao comboio. Acho, pensou, que isto quer dizer que ela é minha namorada.

20.10.04

Nos dias em que ando mais triste, as coisas que leio ou as músicas fazem-me bem, mas distanciam-me ainda mais do mundo. Como se tudo fosse um filme, um sonho. Não gosto nada de me sentir assim, embora nesses momentos me sinta bem (isto é, quando não tenho de sair desse estado). A "realidade" toma a forma de um monstro emboscado. As pessoas ficam feias, os cheiros mais fortes, a sujidade mais visível. As coisas não são coisas, são ameaças. Por vezes passo na rua por uma rapariga (nao é geralmente uma rapariga muito bonita) que tem em si qualquer coisa de real, ou melhor, de mais forte que o real. Como se se destacasse de tudo, como se todos os pormenores dela - a roupa, o cabelo, a maneira de andar, aquilo que leva consigo - tivesse uma cor especial. Se a pudesse tocar como quem folheia um livro, se a pudesse interrrogar, ficaria bem. E tocar não significa tocar "touch". É tocar "play". Uma árvore tem o mesmo efeito. Mas tenho-me abstido de andar pela cidade a tocar em árvores, e em raparigas.

Talvez o mar fosse uma solução. Mas deixei o Verão passar, como deixei passar tanta coisa.

Afectos

Noutro blog, fala-se de afectos, e da necessidade (desnecessidade) deles. Pouco sei disso. Penso que não é de afecto que eu preciso. É de sentir as asas da vitória. O que é estranho.

19.10.04

Registos

Sonhei esta noite que tinha sido feito um acordo entre as três CIAs. Não sei quem sejam as outras duas, mas aquilo tinha ar de boa notícia. As pessoas à minha volta estavam contentes. A casa grande onde eu vivia - era uma espécie de hotel - foi redecorada com muito luxo, um pouco novo-rico na minha opinião de acordado.


É espantosa a ansiedade com que ando ainda. Ver a internet lenta é quase mais do que consigo suportar.


O mais estranho - o mais difícil - nas fases em que não estamos bem psicologicamente é conseguir não confiar no que sentimos. Perceber que a nossa percepção das coisas é errada, é errada de raíz. Como naqueles filmes em que o herói diz ao monstro "tu não existes". Sentir medo, e não "ser" o medo que sentimos. Ter vontade de chorar, e ver isso de fora, como vemos uma constipação. E sustentarmo-nos no que parece ser o vazio, lançar uma âncora nas coisas pequenas que tudo - mas tudo mesmo - nos grita que não fazem sentido


18.10.04

... Hoje precisava do vento branco do mar.

17.10.04

Caspar David Friedrich


Desde o princípio tenho trazido à Ribeira alguns dos espantosos quadros do Caspar David Friedrich. E de uma das últimas vezes alguém comentou que ninguém pintou a luz como ele. É verdade sim, mas é mais do que isso, muito mais. E por isso hoje uma gravura a sépia, para reparar como não é a cor o que mais importa.

Como sempre os homens ficam de costas. Como o Viajante da montanha, como o Velho que olha a chegada - ou a partida - dos navios do mar. Agora que estou a escrever parece-me (um dia hei-de verificar) que Caspar David às vezes nos mostra uma mulher quase de frente, como se quase a pudéssemos olhar nos olhos; mas os homens não, andam sempre embuçados, sempre de negro, sempre tão parados por fora e tão vivos, tão grandes por dentro.O que nós vemos é sempre um homem a ver.

De costas um homem vê, e quando são dois como aqui percebemos melhor que andam calados. Vêm da cidade: não são pescadores nem marinheiros, e da cidade que fizeram e que os fez trouxeram a gravidade negra das capas, a hierarquia representada pelos largos chapéus. Não vieram ao encontro do mar para se libertar de quem são: não lhes ocorre despir, nivelar, nem sequer sentar no chão. Não, não foi daqui que nasceram os hippies; vestem de negro, daqui nasceu o que se foi chamando - na literatura - o gótico. Sentimos que se os víssemos amanhã num tribunal ou num parlamento ou numa universidade seriam iguais ao que são agora junto do mar. E é verdade, iguais somos sempre, mundo inteiros tão fechados.

Sim, de costas de negro um homem vê. O que ele vê nós vemos também, por enquanto não o podemos ver a ele. E por isso a Natureza à volta começa a falar baixinho. Como se não pudesse deixar as coisas grandes por dizer. E são as pedras, as praias, o mar e as nuvens que nos olham, que se fazem em nós sentimento, paixão, dor, assombro. No meio sempre os homens quietos. Como gaivotas que voam sem bater as asas, nas tardes em que o vento anda mais forte.

"O nascer da lua" se chama esta pintura. E percebemos melhor a frase assombrosa do João Bénard que deixei aqui antes: "Há homens que crêem para ver".

Duas palavras

"Um rio é como alguém que me ouve", diz hoje a um jornal a Aldina Duarte, actriz e fadista. "O mar é como alguém que eu ouço".

"Há pessoas que vêem para crer". disse há alguns anos o João Bénard da Costa, que para mim é o maior escritor português vivo. "Outras há que crêem para ver".

Sim, a verdade diz-se sempre em duas palavras.

14.10.04

Quero



Não sabemos se o dia vai no fim, se ainda agora se anuncia a manhã. Há um velho de costas (há sempre alguém de costas nos quadros assombrosos de Caspar David Friedrich), e talvez o velho seja aquele Viajante que do cimo da sua montanha connosco esteve há alguns dias. Tantos dias. Chegam barcos, ou talvez estejam para partir ao encontro de Ítacas que só eles hão-de saber encontrar. Talvez um deles seja a barca da morte, talvez um deles leve o corpo adormecido de Artur o Rei. Que sabemos nós?


Sentes o cheiro no ar, sentes a brisa? Tenho a certeza que este quadro é feito de Outubro, como de Outubro são as coisas que agora connosco tocam o mundo. É tempo de andar outra vez. Vamos. Há-de haver uma taberna perto, poderemos descansar e beber a cerveja preta dos duendes e ouvir histórias novas, histórias de rir e de espantar. Talvez a tristeza se queira sentar connosco, que importa? Talvez se diga da morte de marinheiros, talvez se conte que no mar grande andam navios em que só o fantasma do capitão continua a rota sem fim. Talvez haja novas da Índia. Talvez a mulher que vemos sentada seja já viúva e ainda não saiba, porque o barquinho pequeno ainda não aportou. Que sabemos nós?

Que sabemos nós, sim que sabemos nós dos dias feitos de cores e de letras... Que sei eu de mim. Ando numa floresta de lobos, disse lá atrás, e disse também estou tão cansado. Somos folhas no vento, disse alguém uma vez. Mas sabes, uma folha no vento pode ser afinal uma folha de papel cavalinho à espera de um desenho a lápis. E por isso me levanto. Andar, andar. Sei que ainda não estou bem. Ainda ouço os lobos a uivar. Ainda não sou capaz de fazer muitas coisas. Mas quero ver bem as cores assombrosas do mundo. Quero ver as minhas mãos reflectidas na água. Quero fazer o teu desenho a lápis. Sim, quero ser aquelas crianças a brincar.

(o quadro é do meu Caspar David Friedrich. Nunca mais ninguém pintou assim)


8.10.04

A Vila, O Derviche e a Ribeira:


A propósito do filme "The Village", o Derviche-do-Tapor deixou um comentário interessante, que eu ponho aqui.

Eu já tinha gostado de "O Protegido", o primeiro do Shyamalan, que considerei muito bom. Depois deste odiei o "Sexto Sentido" e ainda mais o "Sinais" que é um autêntico nojo.

Outro nojo é o trailer deste "A Vila" que não faz jus ao filme e deixa antever mais uma paródia de terror barato. Não é, é um filme profundo e muito complexo que mexe com os mais primários medos humanos e da melhor forma de lidar com esses medos. Não há bestas à solta por ali, não há tripas a escorrer.

A Besta que ali há somos nós. Qualquer de nós. O Ser humano normal, que sempre ambicionou o paraíso terreno e que se caga para as 72 virgens a voar. O Homem normal como nós e como o pessoal da Vila quer a felicidade aqui e agora.

O problema é que custa ou o que implica essa felicidade ou no limite a própria sobrevivência. O pessoal da Vila criou um paraíso terreno, assente na segurança e na abundância, mas cujas fundações assentam na ignorância e no medo. As fundações não se vêm, mas sentem-se, o paraíso não se sabe se é real, ou se lá queríamos viver mas sabemos que no mínimo é fascista. E a primeira interrogação que levanta é esta: será que eu queria viver ali e criar ali os meus filhos?

Se à primeira vista a resposta é sim, até porque a Vila gerou dois seres de bondade e coragem excepcional como é a Ivy e a personagem do Joaquin Phoenix, não é menos verdade que aquela merda de paraíso também gerou dois mostrengos horríveis, cobardes e abjectos, como é o caso daqueles dois jovenzarros que deixama Ivy sózinha.

Por outro lado a horrível sociedade de cá de fora foi capaz de gerar por sua vez um ser de excepcional bondade e desinteresse, capaz de ajudar o próximo com risco do seu próprio emprego e sem fazer perguntas, como é o caso do Segurança da Walker.

Enfim milhões de questões a ponderar. Um filme excepcional, que certamente será no futuro um filme de culto, e que me remete para obras fundamentais como o Se Isto é um Homem do Primo Levi, o O Paraíso na Outra Esquina do Vargas Lhosa.

DervicheRodopiante



E agora falo eu, Goldmundo: Gostei muito deste comentário, e não concordo com coisas que não sei se o Derviche (que já me conhece) sabe quais são. Mas primeiro as coisas pequenas: também acho que o trailer me enganou, e lembro-me de ler num jornal que isto "Não assusta tanto como o Sexto Sentido"... Espero que isso tenha sido imposição dos financiadores do filme. A malta gosta é de se assustar, e não percebe que coisas realmente assustadoras se passam à sua volta todos os dias.

Infelizmente não vi mais nenhum (além do "Sexto") filme do Shyamalian, não tenho como comparar. Desse gostei, mas isso é outra história (e também não li nenhum dos dois livros que mencionas).

Agora voltando à Vila: li também na imprensa que parte da crítica americana leu o filme como uma alusão à "América-de-Bush". Eu não sou suspeito de gostar dos ianques (bushianos ou não), e acho que é, como dizes (?) uma alusão ao mundo todo. E no mundo todo - não apenas naquele paraíso fascista - há gente como a Ivy (pouca) e gente como os miudos que a deixam sozinha (muitos). Nisso, as tribos como aquela e a Grande Sociedade são iguais. E mesmo aquilo de que os Velhos fugiam (o sangue) acaba por entrar, e entrar pela porta da frente. Poderemos concluir que tudo fica igual e que tanto faz viver na Vila como "cá fora"?

(to be continued, espero)

7.10.04

Os lobos não choram

Há muitos anos passou cá um filme com este nome, que eu não vi. Disseram-me que era bonito. Soube depois que o título era só o lamentável produto da ignorância: no original, "Don't cry wolf", ou seja, "Não grites 'lobo!'", lembrando a historiazinha daquele Pedro e o Lobo, o pequenino pastor que se divertia a gritar "lobo" por brincadeira, assustando a aldeia toda. Até que ninguém ligou ao que o pastorito dizia, e um dia o lobo, o lobo mau, apareceu maldosamente.

Mas soube também que não há nunca coincidências. Don't cry wolf. Porque os lobos não choram. E se alguma vez fores incapaz de chorar, pensa se não haverá um lobo por perto, se não andarás na companhia dos lobos sem saber.

E se houver? Se o lobo tiver descido do mato e rondar os bosques dentro de nós? Dizia-me o ebola ali atrás que um lobo pode ser tão carinhoso como um cão. Pode sim, e lembrei-me do lobo do S. Francisco (não, não é a cidade...), conhecem a história? Posso contá-la aqui, contar histórias faz-me bem.

Sempre vi o lobo como o meu totem. Em pequeno lia histórias passadas no tempo dos cavaleiros e imaginava as minhas armas, "em campo negro duas cabeças de lobo de sua cor, armadas de vermelho". E sabia a história dos vários meninos-lobo, e a mais bonita delas era a contada por Raul de Navery, outro escritor (era uma mulher) que já ninguém conhece agora.

Na estranha linguagem dos símbolos, o lobo representa uma força escondida, uma força impedida de se manifestar, e que por isso se mostra furtivamente, traiçoeiramente. Não é ela que é "má", "mau" é o que dentro de nós a mantém isolada. Como naquela frase do Brecht que eu aqui uma vez pus, "ninguém diz violentas as margens que comprimem o rio", mas são. É a história do Capuchinho Vermelho, para quem a souber ouvir com olhos de criança e alma crescida, claro que o destino da menina é amar o lobo na cama ancestral da avozinha. Por isso não grites lobo cedo demais. Os lobos não choram, não, desaprenderam a chorar. Mas o Capuchinho chorará por eles as lágrimas todas, e aí a história pode chegar ao fim.

E por isso é tão difícil caçar os lobos selvagens.


6.10.04

Lobos (III)

Escrevi aqui muita coisa agora e um erro qualquer não o fez gravar. Não consigo repetir. Uma das coisas más neste estado é a impaciência. Falava de mim agora, como se fosse um diário clínico. Mas talvez os pormenores não interessem. Há bocado pensava se o que disser aqui sobre a depressão pode ajudar alguém, mas penso que não. É um estado tão íntimo como o enamoramento, na verdade é apenas um desenamoramento de tudo. Só vivendo, acho.


O folheto que acompanha um dos medicamentos que me deram diz "consulte o médico se notar agravamento da tendência para o suicídio". Esta é extraordinária.


Outubro é um mês assombrosamente bonito. No fundo, todos o são (não gosto muito de Janeiro nem de Agosto), desde que os deixemos ser diferentes. A cidade uniformiza o tempo e o espaço, reduz tudo a mais ou menos sol, mais ou menos horas de luz. Fazem-me falta os cheiros de Outubro. Quando eu era pequeno havia na minha casa nesta época melros, ouriços, ao longe passavam os últimos bandos de pássaros migradores. Havia umas flores brancas, as últimas antes do Inverno. Plantava-se alho, e talvez outras coisas. O azul das hidrangeas (ora aqui está uma palavra que nunca soube escrever). O cheiro da terra começava a saber a musgo. Pedras. E chegavam-nos as uvas do Douro, última homenagem da família que tinha trabalhado para o meu avô, e para o pai dele antes dele. Era assim, nós tomávamos conta dos que vinham para a cidade, e os que ficavam davam-nos uvas e às vezes um cabrito. Sabiam onde ficavam os últimos bosques que nos pertenciam, e que eu ainda visitei aos onze anos. Na geração dos meus pais descobriram que os antigos laços já não faziam sentido. Com dezasseis anos visitei-os pela última vez, joguei bilhar no único café da aldeia e achei engraçado tratarem-me por "morgadinho", como faziam com o avô. Mas era a luz do sol-posto.


Ontem li coisas dispersas. E soube de uma história espantosa: 1812, as tropas de Napoleão avançam sobre Moscovo, como tinham antes avançado para Lisboa. Aqui os reis retiraram para o Brasil. Lá o Brasil era a imensa Sibéria. A diferença foi o incêndio de Moscovo, para que os franceses não tivessem como descansar, apanhados já pelo frio do Inverno russo. O príncipe Rostopchine, conselheiro do Czar (veio a ser o pai da Condessa de Ségur dos livros que as crianças antigamente liam), teve essa ideia terrível. Para dar o exemplo, e antes que o Estado-Maior tomasse qualquer decisão, incendiou o seu próprio palácio, sem se dar ao trabalho de retirar um só papel, uma só jóia. Avisou a família com uma hora de antecedência. A filha Sofia (a escritora) tinha nove anos.


Não sei se mudei de assunto. Tantas vezes temos de incendiar os palácios que habitamos, para salvar o que mais importa. Tantas vezes perdemos tudo a tentar salvar jóias mortas.


Lobos

O que há de terrível, e perigoso, num estado de depressão aguda é que não podemos confiar no que nos dizem os sentidos. Os painéis de bordo estão todos lá, e o que transmitem não pode fazer sentido. É em grande escala o que acontece à nossa pele com um "escaldão". Ficamos realmente sozinhos.

O jogo continua (e o que escrevo nestes dias só pode ser sobre isso, para já). Cruzar uma pessoa no passeio dá a mesma sensação de constrangimento que temos nos elevadores. Dizerem-nos "bom dia" bate como se tivesse sido dito a ferros. Há coisas que tenho que fazer e não sou capaz, e são simples. A música ficou difícil de suportar (dei por mim a cantarolar Julio Iglesias, e assustei-me). Só a noite é a mesma (só a noite nos abraça).

Comecei com os medicamentos. Ops. No folheto que vem junto contam-se coisas assustadoras. "Consulte o seu médico se notar tendência agravada para o suicidio" (esta é de antologia). Ao que parece, tudo pode acontecer: pernas dormentes, indisposição de estômago, tonturas, sensação de frio (esta é verdade), até talvez ficarmos "bons", seja lá o que isso for. Vontade de comer doces parece-me melhor, mas ainda não notei (por acaso agora comia um "bom bocado").

A pior coisa é o relógio, evito olhá-los como se trouxessem o mau-olhado. Outra é a impaciência.

Não sei se isto poderá ser útil para alguém. É talvez o único estado tão íntimo como o enamoramento. É no fundo um "desenamoramento" de tudo. Mas faz bem descobrir (ou pelo menos procurar) aquilo que cá dentro não depende dos "sentidos", do "cérebro". Sim, os mostradores estão todos avariados. Mas, "quem dentro de mim os olha? Quem tem agora que caminhar às cegas?". E a mim mesmo me encontro na perda de tudo.

4.10.04

Lobos

Para memória futura, a caçada começou hoje às 18.43 h.

Marte em Peixes, em oposição quase perfeita a Plutão na Casa IV. A Lua, em Capricórnio, faz quadratura com Vénus na XII. Saturno no Meio-do-Céu. É esta a silhueta do animal.

3.10.04

Lobos

Ando há dias por uma floresta com lobos. Talvez seja um só. E vai comigo onde eu for. Tecnicamente é a agudização de uma depressão, um estado de alta ansiedade, um desequilíbrio químico que os antidepressivos e um sono induzido tentarão combater. Mas subjectivamente não há estados químicos. Há uma floresta com lobos, talvez só um. Há o mundo a uivar cá dentro. Há aqueles barulhos que nos fazem preferir as boas salas de cinema quando vamos ao cinema, cada barulho perfeitamente distinto, perfeitamente ameaçador (as vozes são o pior).

Tenho medo dos lobos, tenho medo de andar (durante dois dias não consegui andar de metro sequer, ainda ontem de repente não conseguia estar numa loja, mas também não em casa, não na rua. Se dormisse o lobo ia embora. Se dormisse até voltar a ser uma criança pequena, na minha casa sob a lua. Se acordasse de andar acordado assim.

Durante o dia, então, a floresta é mais escura. Não é fácil respirar. Não é fácil ter a pele perto de qualquer luz. A noite sossega-me um bocadinho.

A médica a que fui perguntou-me se tenho tido "pensamentos tristes". Não sei se é assim que se descobre se há pessoas por aí a pensar em suicídios, pareceu-me uma pergunta pouco subtil. Mas não, não ando a pensar em suicídios, isso foi só uma vez e foi há muito tempo. Disse-lhe qualquer coisa sobre ser sempre o mesmo. Pensei como é estranho falar.

Ando há dias numa floresta com lobos. E a médica disse uma coisa sensata, "já viu como somos iguais, desde que nascemos?". Já vi sim. Já vi coisas que tenho de fingir que vou aprender consigo, para que a senhora possa saber alguma coisa. É para isso que lhe pago. Como quando aos seis anos cheguei ao Colégio a saber ler mas fingi que soletrava os AA, para que não dessem por mim.

E vou aguardar à minha maneira os lobos baços. Não são os primeiros. Nunca tinha andado tantos dias sem conseguir reagir, mas não são os primeiros. Nunca tinham chegado tão perto. Mas depois destes haverá mais, noutros passos da floresta encantada.

Medo, quando me abraças és igual a mim.


2.10.04

Coisas pequenas (II)

1. Fui outra vez ver A Vila (The Village) com a minha filha. No fim, "pai, podemos ver outra vez? Por favor?". Saímos, fumo um cigarro. Compro gomas. Voltamos a entrar, as mesmas cadeiras nas filas da frente. "Não há nenhum Oscar para a melhor cena, pois não?", pergunta ela depois. Não, pequenita, não há. Nem um Oscar para as melhores árvores. Nem um Oscar para o vermelho mais vermelho. O mundo ainda não é tão bonito como o olhar cego de Bryce Dallas Howard, como as mãos envelhecidas da Sigourney Weaver. E daí, talvez seja.

2. E ontem voltei ao meu lugar dos arcos de pedra. A noite dançou à minha volta como só ela sabe dançar. Gostava tanto de poder escrever ali (eu sei que beber ajuda). Reconheci algumas músicas (uma era Bauhaus, outra talvez Joy Division mas já não me lembro). No fim, Nick Cave, but my name was Elisa Day. Às vezes a beleza preenche todo o espaço.

3. Fui a uma médica que achou o meu estado preocupante. Mandou-me parar tudo durante um mês. Não lhe disse que parei tudo há tantos anos. Pareceu-me boa pessoa, na parede ao lado um desenho infantil para o Dia do Pai. Achei estranho o quadro na recepção, duas zebras em fúria a branco e preto, os cascos, os dentes arreganhados. Esse quadro destruir-me-ia se o tivesse em casa. Estará ali por isso mesmo, talvez. Quando saí, dois homens aguardavam envergonhados, como se nos cruzássemos num bordel.

4. Desde há muitos anos cumpro o ritual de em Outubro beber cerveja preta. Tudo por causa de uma frase de um livro lindo. "Dançaremos. E beberemos a cerveja dos duendes. A doce cerveja preta de Outubro". Outubro é para mim um irmão mais velho.

5. Ando pelo mundo com demasiada bagagem. Mas isso é talvez por não ter verdadeiramente uma casa onde a guardar.

1.10.04

Tocar

Às vezes sento-me ao teclado como se me sentasse a um piano. Acontece-me isso à noite, quando o tempo anda devagar. Experimento palavras como se as ouvisse. Escrevo. Apago. Começo outra vez. Depois, devagarinho, alguém começa a cantar. Eu só acompanho. Mas é raro continuar. Nessa altura, quase sem dar por ela, fecho os olhos para escutar mais. Ao longe, muito ao longe, a canção dorida do mundo. Não há luz. Isto é o mais próximo que já estive da paz. Nós em Portugal não nos apercebemos de como a língua diz o mistério: tocar (to touch, to play).