30.7.05

Auto-retrato com máscara

Eu sou quase assim:




Vejo-me quase assim:






Fecho-me quase assim:





Vejo-vos quase assim:




Encontro. Aguardo, quase assim:



Aproximar-me, quase assim:




Quase.

28.7.05

Prendi-me a coisas



Prendi-me a coisas como se tivesse medo que elas se não prendessem a mim, me não guardassem. Prendi-me a lugares e a histórias e a pedaços de música e algumas vezes até a coisas frágeis: um sorriso que não era comigo, uma carta de amor que por engano abri. Prendi-me a todas as sombras do sol, amarrei por dentro as tardes calmas. Prendi, aprendi. Prendi-me a coisas nenhumas, ao ver que as coisas todas me largavam. Prendi-me à ribeira como se nela prendesse a rapariga de outono. Necromante de mim. Perdi-me. Não aprendi coisa nenhuma.

Parei, como se subisse a uma colina pequena. Como se tivesse saltado o muro e tivesse outra vez a bicicleta que foi comigo há tantos anos. Prendi-me, perdi. Os caminhos dão voltas às coisas, nenhum deles levou a mim. Nenhum deles me levou. Não sei porque é que o fim não é a primeira coisa a saber-se. Porque é que não começo por escrever o último parágrafo.

27.7.05

ribeira - Isto não vai adiantar. Não vais ter tempo para a Maré Negra. Desiste.

goldmundo - Já desisti de muita coisa. E não me interessa se não tenho tempo. Nada me obriga a escrever.

ribeira - Não te sentias bem aqui? Eu tratava-te bem.

goldmundo - Sei. [um silêncio] Não é isso. E não vou sair daqui.

ribeira - Ao menos sabes o que vais escrever lá?

goldmundo - Não. [um sorriso] Também não sabia nada quando te comecei.

ribeira - Para escrever o que não sabes basto eu. Bastam esses blogs por onde passas. Sempre foi assim, e estava tudo certo. Não percebes o que está a acontecer?

goldmundo - Não está a acontecer nada.

ribeira - Tu andas zangado. Queres que te diga? Andas zangado e isso põe-te mais frio e voltas aos teus livros e à internet e queres alguém em quem descarregar.

goldmundo - ...

ribeira - Foste tu que disseste, logo no princípio: "que os mortos enterrem os seus mortos". O que é que interessam as histórias do Império e da política...

goldmundo - [interrompendo] Não é política.

ribeira - O conhecimento é uma forma de poder. A política é o poder sem o conhecimento. E no fundo isso não interessa nada. Interessa que te vais irritar e perder tempo.

goldmundo - Ler um jornal irrita-me. Há muita coisa que me irrita.

ribeira - Vês?... Logo agora. Agora que estás a meio. A meio de perceber quem és, de perceber o que é isto tudo. Quem é que quer ouvir falar do Bush? É mais importante o que dizes aqui. Eu sou mais importante.

goldmundo - És sim. Eu não sou a maré negra. [um sorriso muito rápido]

ribeira - São as coisas que nos fazem a nós, já não te lembras? Tu vais ficar igual à maré negra. Vais acabar a falar sozinho ou a discutir secas com gente seca. O mal é insaciável. A luta com o diabo acaba na cama.

goldmundo - Não é mau falar sozinho, ribeira. Estás com ciúmes?

ribeira - Não. Claro que não. "eu sou a ribeira negra, e as luzes de néon não me sabem tocar".

goldmundo - Ninguém te sabe tocar.

ribeira - Não. Mas eu toco todos os que aqui passam. E é isso o que te irrita, não é?

goldmundo - Não me venhas com isso agora.

ribeira - [franzindo os olhos] Não? Posso contar a verdadeira história?

goldmundo - [acende um cigarro] Podes. Até que enfim.

ribeira - Eu não conto as coisas sem ti, gold. Tu és a ribeira mas eu não sou o gold.

goldmundo - Já falámos sobre isso. Já escrevi coisas lindíssimas sobre isso. Conta lá a história.

ribeira - [um silêncio] Tu vais fazer o teu típico joguinho. Falar da realidade para fugir dela. Falar do Bush e da crise económica e do analfabetismo e das catástrofes todas que achas que vêm aí...

goldmundo - [voz um pouco mais alta] Eu não acho coisa nenhuma. As coisas estão à vista.

ribeira - ... para não teres de andar mais um bocadinho para dentro. Para te tranquilizares com a inteligência das coisas que dizes, com o cinismo e a ironia que disseste que não querias trazer para aqui. Não gostei nada da brincadeira do Jabba, sabes? "Menos tentação". Aliás já fazes isso noutros lados. Deixa de brincar aos robots. Deixa de brincar com puzzles. Não faças guerras antes de...

goldmundo - ... "antes de te venceres a ti próprio". Agora pareces o Paulo Coelho, ribeira. Eu sempre fui assim, e sabes disso. O "goldmundo" é apenas uma das metades. Sou gémeos, eu. Este lugar é lindíssimo, cheio de buganvílias e de rosas bravas e de silêncios e de quadros do Caspar David. Um lugar negro que cheira a flores, onde é que já se viu? Mas os sítios com flores estão sempre cercados por muros. Como estava a minha casa em miúdo. Já falámos disso também. Vivia sozinho e dava voltas pelo jardim de bicicleta contando-me histórias que eram sempre histórias de reis e de batalhas e de viagens e de liberdade. Mas só andava de bicicleta dentro daqueles muros, e o muro mais alto era o que tinha as buganvílias.

ribeira - Pois era. E agora queres viver mais uma dessas histórias idiotas. O cavaleiro que derrotou a maré negra. O teu problema é não distinguires viver de ler. Ou de pensar.

goldmundo - ... eu sei. Porque é que toda a gente me anda agora a dizer isso?

ribeira - Ninguém te disse isso, gold. Vês? Tu é que leste isso no que te disseram. Em vez de responder. Nunca vais quebrar este círculo.

goldmundo - ... ia dizer "só tu o podes quebrar". Mas se dissesse isso dava-te razão. [um cigarro]

ribeira - Larga-me, gold. Larga-me ou perdes-me. As coisas acabam.

goldmundo - ... uma vez saltei o muro alto, lembras-te? Subi as escadas das buganvílias, sentei-me lá em cima e depois saltei. E virei a esquina. Foi a primeira vez. Estava sozinho, não via a minha casa e ninguém sabia que eu não estava lá.

ribeira - e...?

goldmundo - Bem, senti que a estrada nunca acabaria. Podia andar até ao fim do mundo. Podia acontecer tudo e mais alguma coisa. Foi bom saber isso. Mas não queria ir a lado nenhum em especial. Por isso voltei. E fui para o ramo alto da japoneira ler um livro qualquer sobre viagens.

26.7.05

Há dias em que acordo igual ao frio.
Maré Negra

1. Hoje (isto é, dia 25, dia de Santiago) faz dezasseis meses que a gotika me ofereceu a ribeira; na altura não imaginava que me desse tanto prazer escrever tanto, nem que escrever me fosse fazendo tão bem.

2. Com raras excepções, escrevo só para mim, mesmo quando me falo com outros; e no entanto a ribeira não tinha tido metade do interesse se não fosse, ao mesmo tempo que uma espécie de auto-análise, também o reflexo em bruto de coisas que pelos outros vou sentindo. Pelos outros, ou seja, pelas palavras que aqui ou noutros blogs deixam - porque dos outros (dos outros-mesmo) nada sei ainda. E duvido que alguém saiba.

3. Nos "comentários" as coisas são um bocadinho diferentes: tento calar o que sinto, e responder ao que me foi realmente dito. Por isso é raro aí eu não parecer... acolhedor, coisa que realmente me não parece que seja. Hóspedes são hóspedes, e as leis antigas são sagradas.

4. No meio, tive muita sorte: foram raros os visitantes que não deixassem saudade, e aprendi a sentir melhor coisas que afinal já sabia: de facto os corpos pouco interessam, e de máscara posta andamos todos, mesmo que seja a máscara da verdade. Não entendo muito bem as pessoas que dizem que este é um mundo "virtual", no sentido de "não-real".

5. E agora, o drama. Andei meses com uma hesitação grande: devo ou não sujar a ribeira com as sombras do mundo? Não quis, no início, falar das coisas que vêm, ou poderiam ter vindo, em jornais e revistas - só serviria para me distrair de mim, e era para mim que eu queria olhar com cuidado. Agora estou um pouco mais forte, ou um pouco mais habituado à escuridão. E o mundo está a chegar a um ponto em que é estranho ficar calado.

6. No entanto gosto de ter (de ser) este lugar sossegado. E não me apetece chamar pela confusão. Na dúvida, criei outro blog. É, e será durante algum tempo, apenas uma experiência. Não sei se o quero manter. Duvido que tenha tempo. Não sei se vale a pena. Maré Negra. Nos links está na sombra dos dias, ao lado de outros que, esses sim, valem a pena. Mas não tinha mais onde o pôr.

24.7.05

Meiga Galicia



Estou em Lisboa, e gostava de estar a chegar a Santiago por caminhos como este. Mais um ano sem completar o caminho grande. Resta-me ir a pé à igreja de Santiago de Alfama.

Se for, levo comigo dezasseis meses certos em que fui sendo isto que aqui deixo. Reparei agora que já são trezentos e cinquenta posts. Tantas palavras, sempre tão longe...

Meiga Galicia. Meigas são bruxas estranhas que guardam os caminhos de escurecer. Meiga Ribeira. Envelheço, as coisas confundem-se em mim.

22.7.05

Sonhei isto:

Estava na Índia. Cidades enormes, multidões. A presença invisivel da Al-Qaeda. Comigo estão a Rainha de Inglaterra (sim, Isabel) e o marido, o velho Duque de Edimburgo. Não fomos juntos para a Índia, encontrámo-nos lá. Eu não sei bem quem represento, o Embaixador de Portugal hospedou-me em sua casa mas não tenho nada a ver com a República de Portugal. Sou mais antigo. Sou eu, e ao mesmo tempo sou a História, boa ou má, bem ou mal. Sou a presença de Portugal na Índia, anterior à da Inglaterra, e isso o Duque reconheceu quando nos cumprimentámos. Estamos numa rua larga apinhada de gente de todas as cores, há saris e turbantes e um grupo de japoneses de óculos e fatos azuis-claros, devem ser industriais ou senhores de guerra da Yakuza. Ao fundo da rua está um templo (usei no sonho a imagem belissima do Taj-Mahal) e é para ele que nos dirigimos: a Rainha Isabel, o Duque, um grupo de pessoas que vieram com eles e que são o rosto tão frágil da antiga Inglaterra, a Inglaterra eterna das fadas e das canções, dos poemas de Shakespeare. A Alegre Inglaterra, não a de Thatcher, não a de Blair. Loges era o seu nome.

E vamos descer a rua grande num carro aberto. Talvez haja alguém que vá dsparar, que importa? Talvez vá morrer a velha Rainha, talvez o tiro seja para mim. O que improta é descer a Rua, o que importa é atravessar a multidão que nos olha como se aguardasse o destino do mundo. Se chegarmos ao templo talvez haja paz.

Reparo numa rapariga ao meu lado. Veste de negro, calças de combate e botas, no copro leva coisas de prata e coisas que parecem sangue. O cabelo é mal cortado e sujo como se fosse uma prisioneira. A filha mais nova da Rainha, diz-me alguém. A vergonha da família real. Revoltou-se contra o Palácio.

Ela está agora caída no chão, soldados dão-lhe pontapés. A multidão continua a olhar. E o templo mais perto, o tiro que não chega, o olhar do velho Duque. O medo no olhar do velho Duque.

Eu disse à rapariga uma coisa muito importante. Nâo me lembro o quê, e depois acordei. Talvez lhe tenha dito "levanta-te". Talvez tenha dito "és tão bonita". Sei que fiquei parado. Sei (tão estranho) que todos os diálogos deste sonho foram tidos em francês. Quando acordei havia uma frase francesa que eu completei como se fossem versos que soubesse de cor.

Quando tenho sonhos de madrugada acordo a tremer.

Ribeira negra letras de oiro

"Screvo meu livro à beira-mágoa..."

(Fernando Pessoa)



A Ribeira mudou, e eu tenho mudado também. Forma e conteúdo. Estou longe do que já fui, e por isso muito do que escrevo não é senão memória de terras que atravessei. Adiante haverá mais coisas.

Quando comecei, estar triste entristecia-me, ter medo assustava, andar sozinho era uma coisa solitária. Agora sei que nunca serei o riso claro, nunca serei a companhia. Mas já pude fazer negra a ribeira negra sem que isso fosse máscara de esconder. Já pude escrever o negro em letras de oiro.

Sim, "atravessei oceanos de tempo para me encontrar".

21.7.05

The thing out there



Freitas do Amaral, em entrevista ao DN de hoje, praticamente confirmou a sua ambição de ser o próximo presidente.

Podia ser (um bocadinho) pior.


19.7.05

As I write (part three)



No mar não há ribeiras para te guardar. Por isso o canto esguio dos barcos, irmãos mais novos das almas.

[pintura: Caspar David outra vez.
Um dia serei assim]

17.7.05

As I write (part two): Fragmentos de uma autobiografia não autorizada

Fui educado por uma mãe católica, e fui baptizado em criança. (09.04.04)

Sabes, ninguém de fora me moldou. Em criança fui precoce, o que é uma maldição, e fui-o sozinho, o que é uma impossibilidade. Cresci numa casa enorme e vazia, onde os limites eram só os muros altos do jardim e onde aprendi melhor as árvores e os livros do que as pessoas e as vidas. Ninguém me mostrou afecto, mas ninguém me impôs violências: hoje creio que tudo isso teve por causa, só, uma distracção perdoável dos adultos. Mas nunca me socializei, como hoje se diz; não andei em jardins infantis, não brinquei com os primos mais velhos, uma intermitente bronquite dispensou-me das aulas do colégio onde ocasionalmente tirava fotografias com a turma antes de levar para casa as melhores notas. Aprendi a ler com três anos, sozinho; aos sete ter-te-ia podido dar a lista dos reis de França e o nome das maiores cidades da Austrália; mas era demasiado novo para entender os romances, e ninguém me ensinou as regras que regem veladamente as relações dos homens. As outras crianças eram para mim, apenas, uma inofensiva estranheza. (02.03.05)



Agora presta atenção. Eu não sou uma criança como as outras. As outras, até, só soube delas neste dia de chuva em que o Pai me levou ao Colégio a primeira vez. E ainda não sei como são. Gritam e não estão quietas e (como é que conseguem?) portam-se como se nenhum Crescido ali estivesse. E andam ligadas umas às outras, estes começaram a esmurrar-se como se se conhecessem muito bem e aqueles conversam. Talvez tenham estado aqui ontem a ensaiar e o Pai se tenha esquecido de me trazer. Aqueles senhores ali são Padres, uma vez li que é pecado olhar para trás na missa, e eu olhei. Os sapatos é que me apertam. (02.04.04)



Não tive nunca um cavalinho, e um cavalinho foi a primeira coisa que me lembro de não ter tido. Não, não é bem isso: nunca tive um cavalinho, e lembro-me de o não ter tido porque, a certa altura, houve um cavalinho feito de palavras, um cavalinho inquieto dentro de mim. Toda a minha vida foi assim, e talvez seja assim a vida de todos os outros. Não encontramos aquilo que não deixamos ir embora, não temos aquilo que anda sempre cá dentro. E depois há as coisas que não damos por ela. (05.05.05)



Tive, na generalidade, uma adolescência tranquila depois de uma infância muito estranha. Em criança vivi sempre sozinho, e habituei-me a viver assim. Quando pude começar a sair, aproximei-me de algumas pessoas como aqueles cãezitos que abanam a cauda, e fui quase sempre bem recebido. De modo que não passei por "crises" e "revoltas". Era politicamente radical (muito) mas era um intelectual afável. O bicho estava vivo cá dentro, no entanto: coisas como o divórcio dos meus pais, a que quase não liguei, deixaram coisas por dizer, e coisas por sentir. (20.04.04)



Fiz todos os disparates do mundo depois disso. Achei que não devia ter nascido. Revivi a vida toda à procura de erros meus, dos outros, do destino. Culpei toda a gente, e culpei-me a mim. Entrei numa greve geral de viver. E por essa altura estava mergulhado num mundo feito de pessoas ambiciosas e importantes, um mundo feito de poder e de negociação, um mundo feito de adultos sérios. Achei o jogo imbecil e quis virar o tabuleiro. Mas não fui capaz de dizer aos meus filhos, "desculpem, afinal quero ser punk". Não fui capaz de dizer nada. Ainda hoje muito pouco digo. (20.04.04)



Tenho quarenta e dois anos, e durante dez andei morto, durante outros tantos perdido. Casei-me aos vinte e dois, mas essas são contas fáceis demais. Tive uma vida feliz mas as coisas não correram bem. Outro qualquer tinha feito tanto com as jóias que deus me pôs na mão ao nascer. Os meus filhos não sabem que cada dia é para mim uma morte, acham-me um pouco estranho talvez. Cada dia que passa me sinto mais velho, e não são saudades da juventude, é o sentir que um dia o dragão será mais forte que eu. Um dia o meu medo será mais forte. Um dia farei um movimento errado com a espada que me resta que é a espada do pensamento frio. (23.08.04)



Tenho comigo uma canção, e tenho comigo o silêncio de todos os barcos naufragados. Tinha preferido não ter olhos e não ter alma que neles se espelhasse. Tinha preferido que no mundo não houvesse livros, nem estátuas, nem igrejas, nem rosas bravas. Tinha preferido não ter chegado tão longe, sempre tão perto de sítio nenhum. Mas agora é tarde, muito tarde, tarde demais. (30.06.04)



Eu vi e ouvi estas coisas, e vi outras coisas assombrosas. Vi o Bem e o Mal. Andei por tantos lados, sim. Ouvi do seio de uma multidão de três mil pessoas sair o canto a que se chama "cantar em línguas", e as línguas são, dizem, o canto dos anjos, e dos homens sei eu que não é ele feito. Ouvi histórias de apavorar. Dormi em casas assombradas, e vi as coisas que as assombram. Vi coisas no espelho que não deviam lá andar. Vi rostos tão puros como o da órfã do Delacroix. Vi a minha filha quase a morrer. Toquei toda a beleza, toda a perfeição que um corpo pode dar, toda a tristeza que um corpo pode receber. Vi, ouvi, toquei, senti. E o meu coração continua feito de pedra. "oh tu que dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos" (S. Paulo). Pois, porque me não ergo eu, a quem foi dado ver todas estas coisas? (13.01.05)



no fundo de mim há um medo informe, como uma aranha que aguarda. Não sei ainda quem é esse eu aracnídeo. Uma noite enfrentá-la-ei (29.05.05)



Ando há dias por uma floresta com lobos. Talvez seja um só. E vai comigo onde eu for. Tecnicamente é a agudização de uma depressão, um estado de alta ansiedade, um desequilíbrio químico que os antidepressivos e um sono induzido tentarão combater. Mas subjectivamente não há estados químicos. Há uma floresta com lobos, talvez só um. Há o mundo a uivar cá dentro. Há aqueles barulhos que nos fazem preferir as boas salas de cinema quando vamos ao cinema, cada barulho perfeitamente distinto, perfeitamente ameaçador (as vozes são o pior).

Tenho medo dos lobos, tenho medo de andar (durante dois dias não consegui andar de metro sequer, ainda ontem de repente não conseguia estar numa loja, mas também não em casa, não na rua. Se dormisse o lobo ia embora. Se dormisse até voltar a ser uma criança pequena, na minha casa sob a lua. Se acordasse de andar acordado assim. (03.10.04)




Acho estranha a preocupação com "sermos nós próprios". Como se pudéssemos ser outra coisa. (29.05.05)



Não sei porque é que as pessoas acham que sorrir é parecido com rir. É como dizer que amor é parecido com sexo. (29.05.05)

Não sei como escrever que estou a sorrir e um bocadinho triste. (31.08.04)



[fotos de Patti Smith. C'est tout]

As I write (part one)

Estamos todos aqui disse ela - e demoradamente lhe desceram
os olhos calados como o corpo colhido do cristo branco
(tão branco por entre os véus das mulheres. Eram azuis os véus
um roxo mais velado: Mãe. De poeira romana cobertos, as quedas).

Calados ficaram-lhe os olhos - estamos todos aqui disse ela e foi
então como um silêncio: ferida aberta uma vez e outra
no corpo já morto. Depois a pele cansada falou, as veias
salientes das mãos grandes, deixámos tudo para trás mas é
tão fundo o deserto. (Há momentos em que os corpos
são terrivelmente belos)

Pareceu-me também reconhecer duas letras indistintas
na cinza da camisa escura dela (tão gasta)
mas não pude entender a palavra. Já os joelhos
são como os meus: os ossos igualam-nos.




Mother as I write the sun dissolves
Blood life streaming cross my hand
And these words, these words
Hope dashed immortal hope
Hope streaking the canvas sky
Blue poles infinitely winding, as I write, as I write
Blue poles infinitely winding, as I write, as I write

We joined the long caravan
Hungry dreaming going west
Just for work just to get a job
And we never got lucky
We just forged on
And the dust the endless dust
Like a plague it covered everything
Hal fell with the fever
And mother I did what I could
Blue poles infinitely winding, as I write, as I write
Blue poles infinitely winding, as I write, as I write

We prayed we prayed for rain
I never wanted to see the sun again

All my dresses you made by hand
We left behind on the road
Hal died in my arms
We buried him by the river
Blue poles infinitely winding, as I write, as I write
Blue poles infinitely winding, as I write, as I write

Blue Poles (by Patti Smith)

14.7.05

Se alguma vez a luz entender a noite, que derrota para as trevas!

10.7.05

Luto




O Senhor o deu, o Senhor o levou. De luto, sim. Experimentas a brutalidade de Deus. Mas quando a hora chegar, até os mortos combaterão ao teu lado. E até as pedras testemunharão.

Não temas a derrota, mas a rendição. E dança como sempre dançaste.

8.7.05

Golden strike

Estou neste momento muito cansado, profundamente triste. É tarde e não consigo dormir. Não, não me aconteceu nada de mal, e não, não é uma tristeza para levar a sério. Nada de importante.

Penso naquela história conhecida do "apontamos a lua e o imbecil olha o dedo". Mas... e se alguém deixou de ver a Lua porque os meus dedos a não apontaram? (e o diabo sussurra-me a frase cínica: "ergui o dedo, e o imbecil foi procurar a lua")

Neste momento acho que tudo o que digo não vale nada. Já nao falo daquilo que faço. Para que lua temos de apontar, para que a vida seja merecida? A que dedos estar atentos na multidão? Porque é que sei tão perfeitamente que não sei nada? Quem me adormecerá de vez?

Já me disseram também que as coisas são afinal mais simples.

Avisos

O número indicado de comentários a cada post deixou há umas semanas de ser fiável. Às vezes por isso demorei a responder - não vi que havia novos comentários, o número indicado estava inalterado.

Provavelmente estarei, em breve, uns dias sem passar cá. Usem tudo e arrumem ao sair. Depois volto, se Deus quiser.

Está a acabar o tempo doce das cerejas.

6.7.05

As minhas frases, algumas

"Que sentidos nos faltam, para que possamos sentir os outros mundos à nossa volta?" (Frank Herbert, escritor americano de ficção científica, séc. XX. Num dos romances da série "Dune")

"Amo aquele que se envergonha quando os dados caem a seu favor" (Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, séc. XIX. Penso que no "Para além do bem e do mal")

"Não tenho senão a imagem que faço de mim mesmo para me suster nos oceanos do nada" (Henri de Montherlant, escritor francês, séc. XX. Não sei onde a escreveu, penso que num dos seus ensaios e não nas suas peças de teatro).

"Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua natureza mais potente. Pois o belo apenas é o começo do terrível, que só a custo podemos suportar, e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha destruir-nos. Todo o anjo é terrível." (Rainer Maria Rilke, poeta alemão, sécs XIX-XX. Nas "Elegias de Duíno")

"Até ao fim do mundo" (Inscrição gravada nos túmulos de Dom Pedro e de Inês de Castro)

"Ah tocadora de harpa, se eu pudesse beijar teu gesto sem beijar a tua mão..." (Fernando Pessoa, nos Sonetos dos Passos da Cruz)

"Uma arte que tem a forma de um grito" (Ana Teresa Pereira, contista portuguesa contemporânea)

"Os cobardes, esses, rirão mais. Mas nunca terão música para dançar" (francês, meados do séc. XX ?... mas não me recordo de quem)

"Não fomos feitos para ser criaturas de luz, mas para dar sentido à escuridão" (Carl Jung, psicanalista e gnóstico suíço, séc. XX)

"Atravessei oceanos de tempo para te encontrar" (estará esta frase no livro de Bram Stoker? Não me lembro.. mas é dita pelo príncipe Vlad no Drácula de Francis Ford Coppola)

5.7.05

Contradigo-me?

Da porta de minha casa sai uma estrada alcatroada que conduz ao Kremlin, em Moscovo. Este pensamento assustava-me quando era pequeno: os caminhos estão todos traçados, já só temos de seguir as placas benevolentes. Não é fácil perdermo-nos; mesmo que não saibamos onde estamos, há-de haver algures um mapa que o diga.

Nem sempre foi assim: todos os que ainda tiveram de ler Garrett no Secundário (eu chamo-lhe Liceu...) se recordam da ida de barco de Lisboa a Santarém, dos perigos do pinhal de Azambuja com os seus ladrões e os seus medos. Não havia estradas para os sítios todos; não havia mapas assinalando os hotéis. Não havia sequer telemóveis...

Habituamo-nos a pensar que o mundo das ideias é semelhante ao mundo das estradas. Há-de haver sempre um raciocínio lógico que, partindo da nossa porta, nos conduza aonde quisermos ir, por estradas lisas e sem ladrões. Há-de haver sempre uma ideologia que, como o Mapa da Michelin, nos diga que estamos a cem quilómetros à direita de Marx ou na auto-estrada que conduz a felicidade-city. Há-de haver um romance ou um filme que conte a nossa história, e alguém em qualquer lado que nos tenha já compreendido mesmo que nunca nos tenha visto. É possível ir da minha preocupação com a guerra no Iraque até à decisão moral que me preocupa neste momento sem contradições e sem abismos, que é como quem diz sem pedaços de floresta virgem que nenhum satélite fotografou.

As coisas não são assim. E não é porque sejamos nós os complicados: é o mundo que não tem uma só dimensão, que não tem tamanho que caiba num único mapa. Walt Whitman, que foi um dos grandes poetas americanos do fim do séc. XIX, disse qualquer coisa como "Contradigo-me? Muito bem, então contradigo-me. Sou grande. Contenho multidões!". Mas talvez seja ainda mais estranho que isso: é o mundo que se contradiz, é o mundo que contém em si a multidão dos mundos. Não, não há um mapa de estradas, e não é porque ninguém se tenha lembrado de o desenhar. É porque não há papel onde ele caiba.

É estranho eu escrever isto. "Contradigo-me?"...

Mistério da iniquidade

"Ouvi isto, todos os povos,
dai ouvidos, habitantes de todo o mundo
..........................
Mas o homem com seu luxo não entende
que é semelhante ao animal mudo..."


SALMO 49


Não era sobre isto que ia escrever, mas como sempre as coisas enlaçam-se e no fim talvez vá tudo dar ao mesmo. Já vou ao que queria dizer. Mas o melhor é agora ir direito ao assunto. De desvios ando eu farto, já me bastam os que a Ribeira faz quando finge que é um rio grande: Mistério da iniquidade. Mistério do Mal. E talvez seja bom começar pelo Mistério, apenas ele. E pelo olhar puro que o convoca.

"Mistério" ("mysterion"), antes de ser palavra na boca de detectives parvos nos filmes, era o nome que os gregos antigos davam às formas de sentir a presença da Realidade oculta no mundo que habitualmente vivemos. A presença dos deuses e dos demónios, dando a estes o seu sentido mais amplo. E por isso a celebração dos "Mistérios" era uma espécie de cerimónia sagrada, em que só participavam os escolhidos, em que se tratava para os deuses de retirar os véus e para os homens de abrir os olhos interiores da contemplação. O latim dos romanos trouxe depois uma palavra semelhante, "sacramentum", e por isso ainda hoje a minha Igreja e algumas outras falam de sacramentos e de mistérios. "Mistério da fé", diz o padre no momento em que o pão se faz corpo do deus vivo. Mas mesmo muitos dos que o escutam não sabem bem do que se fala, vivemos tempos tristes.

A Igreja Católica fala dos sacramentos como "a forma visível da graça invisível". Quer dizer, o ponto em que se cruzam, sem se confundirem, o humano e o divino, o efémero e o eterno, a limitação permanente da linguagem e a imensidão eterna do Ser. Mistério: aquilo que pode ser compreendido pelos homens (aquilo que QUER ser compreendido pelos homens) mas que é compreendido permanecendo intacto no mistério que já antes era. Aquilo que no olhar puro que podemos ser se contempla, se vive, se sente, mas se não explica nem se analisa. Mistério do amor, e talvez assim se compreenda melhor. Porque quem já amou sabe que tocar não explicou nada, mesmo quando nada ficou por dizer.

E assim o Universo inteiro é atravessado pelo Mistério (dilacerado pelo Mistério, apetece-me dizer), e por isso ensinam os sábios que numa folha de árvore ou no voo de um pássaro podes ler algumas das letras que compõem o nome de Deus. Mas eu ia falar de outra coisa, não era? Mistério da iniquidade, sim.

Em certos pontos, certos lugares, certos momentos, o Universo faz-se o contrário de si. A luz degrada-se na treva maior. A realidade que vemos torna-se a escrita selvagem de Alguém que reclama como seu não o Amor mas a insuportável inexistência. Como se o Abismo ganhasse uma boca ávida. Anti-sacramento, dizem os teólogos: mistério do Mal.

Há anos li uma entrevista a um grande cientista italiano (não a guardei, e já não recordo o seu nome); dizia ele (nunca o esqueci) que era ateu, e que com isso sentia uma insatisfação sem nome. "Sei que Deus não existe", dizia ele, "e isso para mim quer dizer que há no Universo uma insuportável ausência". Ah, a fé desse homem quisera-a eu para mim.

Não vou dizer mais por agora. A seguir está um link, e esse link conduz a um vídeo, e nesse vídeo vais ver muitas coisas se conseguires ter os olhos abertos. Vais ver o olhar puro de que eu falei atrás. Vais ver o que a tua tranquilidade permitir. Mas se olhares o fundo das coisas, se escutares as palavras adivinhadas, vais sentir na fronteira do visível uma presença que se rejubila na Ausência insuportável. É o mistério da iniquidade. E volto aos teólogos: Deus presente pela ausência, sub contrario, o universo fazendo-se o grito sacramental. Porque não é possível que o mundo seja simplesmente assim, toda a Terra procura um Rosto desde o instante da fundação das coisas.

Está aqui.

3.7.05

O meu caminho nasce da noite
e da lembrança das rosas.
Assim é o voo dos pássaros.

2.7.05

Sobre a fé dos demónios

"A simples fé sem o compromisso de transformação dos pobres e necessitados é estéril e morta. Trata-se de uma fé que também os demónios possuem, mas nem por isso deixam de estar onde estão, no inferno. Estão onde estão não porque lhes falta a fé, mas porque carecem de amor."

Leonardo Boff