31.5.04

deixa

Deixa que a paixão termine com o dia
e a fresca brisa da noite nos transporte
a ti no teu barco-íris de magia
a mim no rumo incerto da barca da morte

28.5.04

Uma história medieval, uma história moderna

Em plena Idade Média (por volta de 1225) houve em Portugal uma guerra civil. No fundo havia um rei (D. Sancho II) que talvez fosse pouco inteligente (alguns dizem que era completamente incapaz), havia um grupo de poderosos que se escondia à sombra dele para governar, e havia outro grupo que queria qualquer coisa que os que governavam não queriam dar. O grupo descontente pensou em destituir o rei e fazer rei um irmão mais novo que vivia em França, e que se veio a chamar D. Afonso III, e que de Paris trouxe o nome Dinis para o primeiro filho que em Portugal nasceu. Não é esta a história que interessa.

Interessa é que havia um cavaleiro que achava que os descontentes tinham razão, mas que tinha jurado fidelidade ao rei que havia. Era governador de um castelo importante, alcaide, como se dizia então. E não sabia quebrar um juramento de fidelidade.

Os descontentes, que queriam o castelo ou pelo menos queriam o caminho livre (o castelo era um ponto importante na guerra que se adivinhava) disseram ao cavaleiro que se não preocupasse porque um imbecil não merece fidelidade. Mas o cavaleiro teve dúvidas.

E então pôs-se a caminho de ouvir conselhos maiores. Saiu de Portugal a foi à corte de Castela. Quem sabe disso são os de Aragão, disseram-lhe lá. E o cavaleiro foi a Aragão (ou seja, ao outro lado de Espanha). Poderei, sem desonra, desvincular-me do juramento que fiz? O rei de Aragão ouviu, e chamou os seus conselheiros. E disseram-lhe, talvez por prudência política, que a França era a capital da honra e da palavra dada. E o cavaleiro lá foi. Já não me lembro que resposta em França teve ele. Mas isto quer dizer que fez um viagem que demorou meses, apanhou certamente frio e chuva e sol e muitas coisas por causa de uma coisa que tinha dito, e que ao dizer sentia que tinha feito.

E agora uma história moderna. Passou-se também em Portugal, e tecnicamente ainda na Idade Média. Cento e sessenta anos, mais ou menos, depois da outra. Ouvimos falar desta época na Escola como a "Crise de 1383". Um rei tinha morrido sem filhos, a herdeira era a rainha de Castela, de novo a guerra civil e a invasão castelhana e Nuno Alvares Pereira e Aljubarrota e tantas coisas. E o novo rei veio a ser um meio-irmão do rei morto, que se passou a chamar D. João I. Vamos ao que interessa, então.

O meio-irmão que veio a ser rei estava muito hesitante. Tinha uma vidinha confortável e talvez tivesse medo da guerra que a coroa que lhe ofereciam podia trazer. E foi ouvir o conselho de um milionário, um burguês de Lisboa chamado Álvaro Pais, um homem prático e moderno. O Álvaro Pais não queria os castelhanos, e fez bem porque os castelhanos perderam a guerra e mais tarde dois netos dele até foram feitos condes. Como conseguir gente suficiente, perguntava o meio-irmão hesitante. Fácil, disse o milionário. Dai o que não tiverdes, prometei o que não podeis cumprir.. Olá, mundo novo. E o meio-irmão encheu-se de brios.

São duas histórias que fazem pensar. Percebe-se porque é que nós, mais modernos ainda do que o milionário, não gostamos nada da Idade Média.

Keira, Black Heired

A primeira história arrepiante que li (seria de Prosper Merimée?) era a história da imagem de uma deusa que era desenterrada no pátio de um castelo. A estátua era como a da Vénus de Milo, mas com braços e mãos, e por isso e porque era muito bonita e muito fria fica ali, à vista de todos. Há depois um casamento no castelo, e o noivo, no entusiasmo da festa e porque quer jogar já não recordo o quê, tira a aliança e rindo-se alto coloca-a no dedo da deusa. Alguém, horrorizado, repara que a estátua fechou a mão para guardar o anel oferecido. E depois é a noite gótica de núpcias, a intimidade do quarto que verá o primeiro sangue, e os passos pesados a subir as escadas, os passos de pedra da deusa inamovível. A buscar o seu noivo eterno...

Se leres esta história não podes deixar de ouvir ao longe o vento frio. E o mesmo vento, a mesma mão que se fecha sobre alguma coisa que levavas contigo, encontra-los num blog que eu encontrei, e que alguma coisa guardou de mim. Eu sei que há muitos blogs negros. Mas este, não sei porquê, pareceu-me tão negro que quando lá entrei instintivamente tacteei uma parede a que me agarrasse. Talvez tenha sido uma frase que lá está, e que não me atrevo a nomear. Talvez tenha sido o espaço vazio entre elas (e é aí que ouves o vento...). Há alguma coisa nela de estátua de pedra, e a Joana Dark não anda longe.

De resto é um blog muito novo, mas a noite não se importa nada com isso. Irás lá? E se fores saberás olhar a deusa enorme? São os caminhos de Tir na n'Og, os mundos de Keira. Black Heired.

Verdade: a Paixão dos Homens

Há duas coisas que qualquer pessoa sabe: a Idade Média era a época das trevas, os católicos são os aliados da mentira maior. E é verdade que uma coisa não anda sem a outra.

Vem isto a propósito, não de um filme (a "Paixão de Cristo"), mas de um comentário que eu comentei. Dizia assim: "Gibson narra a história (...) segundo uma perspectiva muito redutora. (...) O Jesus sinónimo de amor não aparece no filme (...). Gibson é fascista porque acredita ser aquela a verdade e nenhuma outra (...)."

Já não me recordo se comentei aqui que nos dias em que o filme estreou ouvi, num restaurante, o comentário último: "É o que dá deixar os católicos falar sobre Cristo. Afinal, já havia o Jesus Christ Superstar, para quê mais filmes?".

Eu penso que são os enamorados que melhor nos podem falar da paixão. E portanto que talvez os católicos nos possam falar da sua fé (para falar da fé budista, prefiro ouvir o Dalai-Lama). Penso, também, duas coisas muito simples sobre a primeira parte do comentário que comentei (e já vou dizer como o comentei): primeiro, não sei o que seja uma perspectiva não-redutora de uma história: as pessoas que pensam como o Dan Brown, autor do livro "O Código Da Vinci", por exemplo, pensam que não houve morte nenhuma, e que Jesus viveu feliz casado com a Madalena. Outros pensam que achar que os sacerdotes hebreus intervieram naquela morte é pecado mortal de anti-semitismo (normalmente os mesmos que, quando se fala de um padre pecador, dizem "os católicos são todos isto e aquilo"). E outros ainda, se bem o compreendo, pensam uma coisa muito estranha. Pensam que aquela pessoa era o deus vivo, e que a morte dele matou a morte e deu a todos nós o caminho para uma vida maior. Muita gente pensa muita coisa, e se eu quiser fazer um filme fico com o drama do Oliver Stone no "JFK": qual das cinco mil teorias sobre a morte de Kennedy vou seguir? Ou faço um filme que diga que há cinco mil teorias? Mas só haverá mesmo cinco mil? Meu deus (desculpem, meu ser humano cheio de dignidade), como é que eu faço uma coisa que não seja redutora?!

É verdade que o realizador Gibson escolheu contar a mais estranha das cinco mil histórias possíveis. Aquela em que a morte é vivida (inteiramente), sofrida (como nenhum homem poderia suportar sem morrer muito antes, coisa que muita gente que viu o filme notou - e bem) e livremente consentida (diz Maria, a sua mãe: "até quando permitirás que te façam isto?"). E portanto, não havendo beijinhos, tudo aquilo é uma prova de amor. É uma história quase incompreensível. Mas é fascismo acharmos que as histórias absurdas devam ser proibidas.

E portanto podemos agora ir ao ponto essencial. Gibson é "fascista" porque acredita numa verdade. Fascismo é uma palavra estranha, mas não me importo nada de a usar assim. Eu sou, pois, fascista, visto que acredito em verdades. Acredito, por exemplo, que é verdade que o mundo existe. E não me interessa ler, ouvir ou pensar em argumentos contrários. Se um dia fizer um filme (deus me livre) afirmarei com o meu filme que é verdade que o mundo existe. Prendam-me se quiserem (de preferência numa prisão que não-exista, claro).

Mas os que pensam que não há uma verdade pensam o quê? que é verdade que não há uma verdade? (fascistas...) que, se não há uma verdade, não pode ser verdadeira a sua crença de que as coisas de Cristo não foram as que o Gibson contou? É complicado pensar assim. Mas se a lógica te incomoda, grita pela revolução e pela beleza da revolução e proclama a ilegalidade das amarras do pensamento frio.

E agora vou falar do meu comentário a este comentário. Foi outra vez por causa do amor ausente, e das coisas outras que vieram por acréscimo. Há uma frase que é um dos três ou quatro momentos centrais do filme. Jesus ferido e carregando a cruz encontra finalmente a sua mãe desolada. Ela, em silêncio, procura confortá-lo. E ele sorri no meio do sangue (sim, muito sangue) e diz "Vê, Mãe, como eu redimo todas as coisas". E o meu comentário foi "terás dado por esta frase? ou o teu fascismo não a deixou ver?".

No que eu me meti.

PS. Parece-me que devo indicar o sítio onde deixei o comentário fatal. Neste momento não tenho comigo as instruções, ou lá como se chamam, para criar um link. Mas o endereço é: noctivago.blogspot.com.


O que eu tento dizer aqui é que a verdade não é o que é, mas o que pode ser. Por isso, sempre que hoje for um presente envenenado, lembra-te que a verdade anda no futuro entreaberto. E não acredites no mundo quando ele te disser "eu é que sou". Isso só o deus vivo pode dizer. E lembra-te que as trevas se servem da noite para nos fazer cair nos buracos de luz, donde não há regresso.

Joana Dark

Se eu soubesse escrever escreveria a história de Joana Dark. A minha Joana Dark seria parecida com a Donzela de França, parecida com cada rapariga a quem a vida deu o frágil por dentro e a morte deu a noite por fora. E a Joana Dark seria o meu amor mais inteiro.

Eu sei da Joana Dark há muito tempo, mas lembrei-me agora dela porque à volta da minha Ribeira voltei a encontrar sítios feitos de tristezas mais fundas. E todos os que acham que os homens e as mulheres são iguais reparem com atenção em como são diferentes as palavras da tristeza (os risos, esses, assemelham-se).

A Joana Dark só se mostra de vez em quando. Quase sempre escreve e quase sempre tem amigos, e quando tem um blog pinta-o com palavras de vermelho e negro. E é preciso lê-la devagarinho, se a lermos, e olhá-la ainda mais devagarinho, se tivermos a sorte de a saber olhar. Porque ela pensa nas coisas como se pensar fosse o nevoeiro da manhã, mas sente as coisas como se sentir fosse a madrugada mais livre. Mas é raro haver palavras que trespassem a sua armadura de noite, e é raro que o primeiro gesto chegue a tempo. Agora já se não deixa abraçar. Quase sempre gosta de animais e quase sempre há um animal que (já) não gosta dela.

Talvez haja um momento na nossa vida em que somos a Joana Dark sem dar por isso, e um outro momento na nossa vida em que a Joana Dark nos gritou e nem demos por ela. E por tudo isso era muito difícil escrever a sua história.

Mas pensando bem talvez não valha a pena escrevê-la. Valia a pena era olhar à volta e não desviar o olhar até que o mundo seja o lugar do início. Valia a pena era seguir as armas da Joana Dark até à vitória ou à derrota, e alistarmo-nos na companhia dos lobos. Valia a pena sermos nós, almas errantes.

26.5.04

as águas do tempo

As águas do tempo atravessei, geladas
e horrendas. Sim, eu, Dracula de Vlad, outrora
do sangue do dragão,
eu que um dia tive exércitos, espadas...
agora
as sombras o sangue... ah, a maldição!

As águas do tempo... Eu, Dracula de Vlad, antigo
Senhor dos exércitos de Deus,
o mar do tempo atravessei fiel, contigo,
contigo a arder
na minha boca, a arder nos meus
insaciáveis sonhos de vampiro,
em cada noite atroz em que me volto a erguer
e sombra nas sombras rondo e giro...

As águas do tempo... Eu, que noutra vida
de alma inteira me entreguei a Deus e à Cruzada
levando os teus beijos por única armadura...
Eu, a alma perdida
doida de Deus, por Deus abandonada
até na sepultura
quando a ti quis regressar, louco e vazio,
as águas do tempo... ah, as águas do rio...
Dracula's dream

Vem minha princesa, meu amor de outrora,
libertar-me deste sonho de estar vivo...
de me vingar na noite, petrificado e altivo,
da dor de não morrer que me atormenta agora...

Vem minha Senhora aos braços do vampiro
deixa-te arder no sangue do meu beijo!
Vem-me dar esta noite o que eu de ti desejo
em cada noite em que horrendo rondo e giro...

Dos teus olhos nascem luas de cristal
que me desaguam sob a Lua cheia...
Que eles me sejam a luz clara e fatal

que o vampiro que em mim há teme e odeia!
e que no meu mal se redima o teu mal,
princesa da noite, Mina... Dulcinea...
coro dos lobos de Saka

Nos nossos penhascos há cantos de medo,
há risos nas trevas, há fúrias no ar?
é o mal que se ergue no denso arvoredo
é a voz do vampiro que passa a voar...

Nas nossas montanhas há silêncios mansos,
há gritos calados, há cores a gemer?
São almas que escorrem das mãos dos arcanjos,
é a mão do vampiro que as vem recolher...

Nas vossas cidades há luz nas janelas,
há fiéis namoradas, paixões, sofrimento?
Coitados dos homens que sonham com elas,
é a dor do vampiro que dança no vento...

25.5.04

Ventos da Transilvânia


- Quem me arrancou em vida o coração
e abriu minhas mãos à tempestade imensa?
Quem me deu por manto a Lua baixa e densa
e por noiva ansiosa a escuridão?

(e o vento Norte anunciou nas trevas
a passagem horrenda do vampiro)

- Quem me fez assim? Quem me quer que seja
este espectro baço, este mal vagabundo?
Quem deu à minha alma o sangue de além mundo
por lhe negar o que do mundo ela deseja?

(e o vento Sul anunciou nas fragas
o festim obsceno do vampiro)

- Quem me deu o nada que desejo ser,
este espelho frio em que nao trago imagem?
Quem me deu abismos, quem me fez viagem
para reinos mortos que não vou morrer?

(e o vento Leste confundiu os homens
à chegada inquietante do vampiro)

- Amantes da noite, vinde ver em mim
a figura horrenda do que haveis de ser!
Vinde adivinhar o vosso estranho fim
vós que amais ainda, que amar é beber!

(e o vento Oeste conduziu as almas
à morada tremenda do vampiro)

24.5.04

Sofrer passa. Ter sofrido não passa nunca.
Pó de estrelas

Abri um atalho para um sítio onde as palavras são pó de estrelas e olhar é uma coisa muito séria. Se eu fosse um feiticeiro fazia com que nesse sítio houvesse um relógio de cuco, uma laranjeira e um muro caiado com um gato a dormir ao sol. E fazia com que à noite as vassouras voassem sem que as crianças fossem chorar. Assim só posso dizer que é um sítio onde se pode ir como quem vai ao bar do costume. Se lá fores lês coisas que fazem pensar e depois a Catarina ri-se e diz que te atirou um punhado de pó de estrelas para que os olhos se te abram a noite toda. E talvez seja assim mesmo. É um blog, e chama-se Salada de Letras com Maionese. O meu mundo não é o mundo deles. Mas o meu mundo vive de haver à volta mundos assim.

Tão longe, tão perto

Estes dias mudo de casa, e a nova casa é um sítio onde os livros cabem melhor. Ando a arrumá-los por ordem alfabética. É engraçado, a Anne Rice ficou longe do Drácula e passou a estar ao lado do Rainer Maria Rilke, há policiais mesmo ao lado do Eça e um almirante inglês ao lado da Anaïs Nin; o Herculano conheceu o Hermann Hesse e Camões e Camus andam agora de mãos dadas. Tão longe, tão perto sempre. Assim são as coisas do mundo. Sempre tive pena de quem só gosta dos seus iguais.

23.5.04

American Beauty

Hoje nem aqui consigo escrever. A noite às vezes não deixa sair nada. Talvez o fundo de um poço fundo. Um sítio onde houvesse pássaros de gelo. Um sítio onde o vermelho gritasse. Talvez arrancar as asas de um anjo cego. Talvez o teu cabelo incendiasse. E as rosas de Abril, coisas sem dono. Ontem uma rapariga falou de um lápis e de palavras sem peso, e outra veio dizer que as palavras são esperar. Mas hoje não, nem sequer há tempo, nem sequer. De manhã vi uma mulher vestida de negro, trazia um dragão ao pescoço e folheava um livro chamado "Ela, Adriana", e também outros mais antigos. Mas deixou ficar os poemas de Rimbaud. Eu sei que ela não se chama Clara. No polegar tinha um anel mas não sei que desenho nele se gravava. Hoje são doze de Agosto de um ano qualquer num sítio que não é aqui.

21.5.04

Olha

Seiscentos visitantes. Espero que se estejam a divertir tanto como eu.
O lugar do início (III): coisas dos arcos de pedra

O meu lugar do início é um sítio em Lisboa feito de arcos de pedra e feito da noite antiquíssima. É também o primeiro lugar onde eu posso estar simplesmente a beber ou a ouvir música, a ver os arcos de pedra ou a pensar nas coisas que ainda não disse aqui. Gosto mais dele quando não tem quase ninguém.

Mas a vantagem do lugar do início é que não tem quase ninguém mesmo quando afinal tem muita gente. Porque os outros são também feitos de noite, ou são pelo menos feitos dos mundos que a noite faz. E portanto eu posso estar o tempo todo só com as coisas que para lá levei.

Há principalmente um canto de que gosto muito, onde me posso sentar como se estivesse sentado à beira-mar. As luzes que ali estão não chegam ali tão fortes, e a música soa mais porque alguém deixou ali uma coluna como se estivesse perdida. E as pessoas ficam quase todas de costas e por isso ficam quase todas melhor.

E no entanto há uma coisa de que não gosto no meu lugar do início. A culpa não é dele, nem das pessoas que fizeram há tanto tempo os arcos de pedra nem daquelas que agora os fizeram nascer outra vez. A culpa é minha, que não aprendi a gostar de escravos contentes. Vou explicar.

Sempre gostei da noite, mesmo quando em criança tinha medo que no meu quarto entrasse um tigre (era a única coisa de que tinha medo, e por isso dormia com a porta fechada e a janela aberta, porque o tigre pela janela não sabia entrar). E sempre gostei de música, porque a música é a forma do tempo e o tempo é maior quando a noite nos pára. Mas sempre pensei que a noite é diferente das trevas, e sempre achei que as trevas são feitas de não querer ver (o dia, esse, é só um lugar de passagem como uma estação de comboios ou uma ponte na ribeira negra: uma coisa de atravessar). E se a noite é feita de abrir e de respirar e por isso nela somos feito de dança e de silêncio, as trevas são tudo o que nos fecha e sufoca e traz a luz mentirosa.

Eu sei que há pessoas que gostam do dia. De algumas delas eu gosto também, porque são aquelas a quem as trevas nunca tocaram. Mas são raras essas. As pessoas que gostam do dia são quase todas as que escolhem os olhos fechados. E por isso quando saem à noite não é pela noite que saem mas apesar dela, e procuram sítios feitos de luz e mentira. No fundo são também coisas de atravessar, e por isso nem sabem que as trevas existem. E é isso que as trevas querem ouvir.

Há muitos, muitos anos atrás, essas pessoas gostavem de uma música que então se chamava disco. Depois gostaram de uma coisa que finge que é música e que não sei que nome tem. Tecno, penso eu, mas com as trevas não falo. Essas músicas são os assassinos da noite.

Eu posso perceber que se goste de fado ou de jazz, de Beethoven ou de Tindersticks, de Jacques Brel ou de Therion. São caminhos diferentes nos quais a noite pode ser andada. E há noites em que sou mais feito de Nick Cave do que de Bauhaus, ou mais de Type-O Negative do que de Pixies; e também há em mim noites de calar e ainda outro dia descobri (também no meu lugar do início) que os Sétima Legião colheram a rosa vermelha que o Zeca Afonso uma vez plantou.

Os mundos são muito grandes, e a noite é sempre o mundo maior. Mas não entendo uma música que não é música mas o inverso de tudo o que a música pode ser (eu sei que há outras coisas que andam invertidas, e para mim é pena que andem. As cruzes, por exemplo. Mas não é disso que se trata, porque a cruz invertida diz a verdade sobre a mentira, e do que eu não gosto é da mentira sobre a verdade. Um satânico com uma cruz invertida é para mim um bom satânico, mas um padre com uma cabeça de bode invertida seria para mim um mau padre. Chaque chose a sa place.)

O Matrix, por exemplo, pode ser um filme de que se goste mais ou um filme que não esteja nas nossas preferências. Mas não entendo que alguém retire do Matrix que havia um sítio grande feito de tubos e de amas metálicas. Mesmo que me diga que tem preguiça de ir sozinho em busca de comida. E o tecno que passa por música é a canção de embalar das amas metálicas e não é mais do que isso.

Cuidado com os escravos contentes. São eles que justificam os seus senhores.

20.5.04

A história da menina que caminhava contra o vento e do vento que não tinha história



Primeira parte

Era uma vez uma menina que caminhava contra o vento.

Isto parece um princípio estranho para uma história, mas a história não é minha e não lhe posso mudar o princípio: e portanto era uma menina que, fosse onde fosse, caminhava contra o vento. Se eu tivesse também uma história, haveria príncipes no princípio dela. Os príncipes não devem estar no princípio? Mas eu não tenho uma história, e por isso estou a contar esta.

Era uma vez… Não, não era uma vez: era de uma vez por todas a menina mais linda de todas as histórias. Nem na minha história me atreveria a sonhar uma menina tão linda… Claro que os seus cabelos eram feitos de sol, o seu sorriso era feito de lua e os seus olhos eram feitos do mar e da sombra dos príncipes verdadeiros (os do princípio da minha história, se eu a tivesse…). Nem vale a pena falar disso, pois não? É por isso que ela tem esta história, e é talvez por isso que ela agora caminha contra o vento, esteja onde estiver.

(O quê? Andar para a frente? Eu sei, estava-me a perder, não estava? … Mas é difícil não nos perdermos com esta menina, a não ser que saibamos onde é que o vento se encontra. Porque aí a encontraremos também, sempre com o vento pela frente e sempre a andar contra ele. )

Um dia a menina saiu de casa muito cedo. Querem vir comigo vê-la? Olhem, aquela é a casa. A porta ainda está fechada. É realmente muito cedo, tão cedo que talvez tenhamos chegado antes de a história começar, a tempo de descobrirmos as coisas adormecidas.

Naquela casa o sol não entrava de manhã: o sol passava lá a noite, escondido. Já se esqueceram de que eram feitos os cabelos da menina que caminhava contra o vento?

Claro que na cidade todos sabiam — ou julgavam saber — que o sol se punha no mar, quando se cansava de brincar com as nuvens e com as crianças, ou quando se cansava de se esconder por trás da chuva. Mas o mar não era só o mar em frente à cidade: o mar era também os olhos dela…

E assim o sol fingia que passava a noite no mar lá do fundo, em frente à cidade, para que ninguém percebesse que a passava naquela casa, nos olhos feitos de mar da menina que também de sol era feita.

De modo que não era nunca o sol que a acordava: era a menina que o acordava a ele, quando o mar se abria com os seus olhos… A lua, que aproveitava para dar um passeio enquanto ela dormia, recolhia-se de mansinho no seu sorriso e o sol espreguiçava-se (era por isso que a menina tinha depois de se pentear) e tentava continuar a dormir… mas acabava por se levantar, porque tinha de se portar bem e ir acordar a cidade toda.

E ninguém dava por nada.

Mas um dia a menina acordou muito cedo, e pensou que o sol tinha direito a dormir mais um bocadinho. Levantou-se sem fazer barulho e olhou para o espelho: havia qualquer coisa de estranho, e demorou a perceber que era o seu sorriso que não estava no sítio do costume. E como poderia estar, se nesse momento andava pelo céu feito lua, a conversar com aqueles que, como eu, gostam de saber estas histórias?

A menina hesitou. Não estava habituada a não ter consigo o sorriso. Mas também não estava habituada a hesitar. E abriu a janela do quarto, como fazia todas as manhãs.

Do lado de fora estava tudo escuro: era noite, porque o sol continuava a dormir. E a menina nunca tinha visto a noite, nem a noite a tinha nunca visto a ela.

— Olá — disse a noite — Tu deves ser a menina que adormece o sol, e que liberta a lua. Eu sou a noite.

A menina quis sorrir, mas não conseguiu.

— Olá, noite — respondeu ela — Não sabia que existias. Vives há muito tempo na minha cidade?

— Já aqui vivia antes de haver tempo — respondeu a noite, e a noite pôde sorrir porque tinha a lua consigo — Antes de os teus olhos terem inventado o mar, e de os teus cabelos terem inventado o sol.

A noite ia acrescentar "e antes de o teu sorriso ter inventado a lua", mas calou-se a tempo porque percebeu que a menina não sabia da lua, e não a queria perder. E a noite tinha medo do sol.

— Tu és a menina de todas as histórias, mesmo daquela que ainda não começou. — disse então a noite — Gosto de ti. Queres vir comigo?

E a noite pensou que nunca antes tinha dito aquilo, mas que já algumas vezes o tinha ouvido. São coisas que se dizem à noite, não é verdade?

A menina adorava dar passeios, e nem se lembrou que não tinha acordado o sol. Se pudesse ver os seus próprios olhos tinha sentido logo que mais uma vez alguma coisa não ia bem: o mar estava a ficar agitado, com medo de a ver sair assim. Mas como poderia ela ver os seus olhos?

E no mar também os pescadores sentiam que alguma coisa não ia bem.

— Passa-se qualquer coisa de estranho — diziam os pescadores uns aos outros — O mar está a ficar agitado, mas a lua continua a sorrir. E a noite está mais escura, como se estendesse os seus braços, e o sol não se levanta para acordar a cidade.

E era verdade que a noite estendia os braços.

Ah, então sempre chegámos antes do princípio da história. Ainda bem. Reparem na menina enquanto sai de casa ao encontro da noite que lhe estende os braços e lhe sorri, com o sorriso da lua roubada: é verdade que ainda não caminha contra o vento… Vai muito direita, com os olhos muito abertos a ver o escuro pela primeira vez… E todos nós estremecemos, nós os que costumamos ficar à conversa com a lua, os que não temos uma história como esta e portanto a contamos ou a escutamos.

(— Que vens fazer entre nós, menina dos cabelos de sol e dos olhos da cor dos príncipes verdadeiros? Não queiras saber o que se esconde no escuro, não te entregues nos braços da noite, não ouças as suas histórias!…)

Ah, lá estou eu a perder-me outra vez… Mas também a menina depressa se vai perder, porque a noite é ciumenta e não quer que ela volte para casa a acordar o sol e a sorrir…

— Anda por aqui — dizia-lhe a noite — tenho tanta coisa para te mostrar… Olha, aqui é a praça da menina dos fósforos…

E a noite contou-lhe a história da menina dos fósforos, enquanto lhe pegava na mão.

— Olha, aqui é a praça da estátua por quem a andorinha se enamorou… Olha, a sereiazinha que não pôde regressar ao mar… Olha, o rapazito que procura o palácio da rainha do Inverno…

E a noite ia-lhe contando a história da estátua, a da sereiazinha e a da rainha do Inverno.

— Não sei o que sinto com as tuas histórias — respondia a menina — Não sabia que havia tanta coisa na noite, enquanto o sol dormia em mim. Noite, mostra-me tudo!

E a noite estava contente, porque a menina já se tinha esquecido do seu sorriso.

— Era uma vez, aqui nesta praça, uma mulher cujo filho estava doente… Era uma vez, além, o castelo da princesa Desalento… Anda por aqui, pela rua das promessas esquecidas… Vês, a praça dos sonhos interditos? … E além, a alameda da saudade, encostada ao jardim de chorar…

A menina ia andando, muito calada. Mas não se sentia a caminhar; sentia que eram as coisas e os sítios que iam passando por si. Também já não ia muito direita, nem com os olhos muito abertos: andava devagar e hesitava, e às vezes fechava os olhos como se já não quisesse ver mais coisas. E de cada vez que passava por uma história por ela passavam também, um a um, os filhos da noite que a vinham ver e que dançavam à sua roda antes de desaparecer outra vez na escuridão.

Passou o flautista de Hamelin, com as suas pernas muito altas e o seu chapéu amachucado; passaram os lobos cinzentos, que traziam consigo o lamento verde das florestas e o lamento turvo dos rios; passou o fantasma do rei, e passou o fantasma de Shakespeare; passaram os namorados e os mendigos, o gnomo que vivia na torre da Igreja e a feiticeira que não vivia há trezentos anos; passou o poeta que tinha fome, e os ratos que eram os únicos amigos do poeta; todos eles, e muitos outros, passaram pela menina e dançaram à sua roda sem lhe dizer uma palavra.

Talvez eles estivessem a sonhar, porque não a olhavam, ou talvez fosse ela que os sonhasse, porque lhes não conseguia tocar: vinham de todos os lados, dançavam brevemente enquanto as histórias da noite se desfaziam em músicas tristes, e recuavam para a escuridão como se sentissem que tinham ido longe demais; se a menina lhes estendia os braços dançavam como se se esquivassem e nem uma vez as suas mãos se tocaram, nem mesmo quando o que passou em último lugar (era um rapazito com uma asa de cisne no lugar do braço direito) esboçou o gesto de a levantar no ar e hesitou antes de recuar, como se estivesse preso ao seu coração. E cada um deixou nela, devagarinho, um pouco da sua sombra, e as sombras foram ocupando o lugar que tinha sido o do seu sorriso.

A menina ia andando, andando sempre, sem saber por onde e sempre pela mão da noite que a arrastava cada vez mais depressa e cada vez mais longe. E o mar que costumavam ser os seus olhos tinha agora ondas tão altas que algumas salpicaram o seu rosto: a menina chorava, e as suas lágrimas eram como as primeiras lágrimas do mundo.

— Noite, noite — soluçava ela — Que me aconteceu? Estendeste os braços como se me acolhesses, e eu abracei coisas que não queria ter visto e que me foram deixando vazia em vez de me encher… O mar já não cabe nos meus olhos e há sombras estranhas em mim, no lugar onde devia estar não me lembro o quê…

— Tem paciência — respondeu a noite.

A noite estava segura da sua vitória, porque tinha a menina na mão. E foi então que eu reparei nela.

Eu estava, como de costume, a conversar com a lua.

—Vento que não tens história —dizia-me a lua —explica-me porque não tens história, tu que andas por todo o lado…

— Como posso ter história, se estou sempre de passagem? — respondia eu — Em algumas histórias também estou numa passagem, mas nunca no princípio nem no fim… Às vezes entro numa, só para que as pessoas digam "e então o vento soprou" ou "o vento levou consigo essa canção", e logo mudem de assunto.

— É estranho — respondia-me a lua — Porque não há história onde eu não esteja desde o princípio, pelo menos no coração de quem a conta. Por exemplo, nesta história eu sou o sorriso da menina…

Eu tive um sobressalto.

— Lua, lua! — gritei — Como podes ser nesta história o sorriso da menina se estamos aqui os dois, sem saber dela, a conversar? Deixaste a menina ir passear com a noite, e não entraste nela de mansinho para ela voltar a sorrir!

A lua estava tão aflita que se eclipsou, como faz sempre que não quer que ninguém a veja.

— Vento, vento! — gritava ela também — Depressa, corre pelo mundo e encontra-me a menina que foi sem mim pela mão da noite. Eu vou perguntar ao mar se sabe dela…

E a lua lá foi ter com o mar.

— Cada vez mais estranho — repetiam os pescadores uns aos outros — Nunca vimos um luar assim. O mar continua agitado, como se quisesse combater a noite, e o luar espalha-se como se a lua andasse à procura de alguém. Ao menos se o sol despertasse…

E era verdade que o luar se espalhava. Mas fui eu que encontrei a menina.

A noite tinha-a levado para muito longe. Saíram da cidade e passaram montanhas e vales. Andaram por campos cheios de corvos onde tinha havido uma batalha e andaram por fragas onde enforcados balouçavam. Viram castelos a arder, cidades submersas e casas visitadas pela desgraça. Ouviram o choro das crianças que perderam a mãe e o silêncio das mães que perderam os filhos. Subiram o rio do esquecimento e desceram ao lago das almas cansadas. A menina continuava a seguir a noite, mas já não ia muito direita nem levava já os olhos muito abertos: caminhava curvada como se levasse às costas todos os pesos do mundo. E finalmente, numa montanha mais negra que a própria noite, chegaram a um castelo de altas torres, o castelo de Nãosentir.


Segunda Parte


Estou eu então a contar a história da menina que caminhava contra o vento… E estou triste porque já não lhe posso mudar o princípio, não posso dar príncipes ao princípio dela; mas muito mais triste estava a menina quando entrou, pela mão da noite, no alto castelo de Nãosentir.

Eu não sabia que a menina estava lá, e que adormecera embalada pela noite. Só sabia que não podia desistir dela, para que a lua voltasse.

Fui encontrar primeiro o flautista de Hamelin, sentado aos pés da estátua da grande praça, com as pernas altas a balouçar. A estátua era de uma mulher descalça; não tinha cabeça, e dos seus ombros nasciam duas asas grandes como velas de um navio. A sua mão direita apontava em frente, como se quisesse indicar um caminho, mas a mão esquerda estava erguida, como se quisesse deter alguém. E o flautista segurava a sua flauta com o olhar dos que se perderam nos oceanos do tempo.

— Flautista, flautista, filho da noite — disse-lhe eu, fazendo as folhas caídas dançar em redemoinho à sua volta — viste passar a menina que adormece o sol e que liberta a lua?

O flautista não se virou para mim nem deu mostras de ter ouvido; curvou-se sobre si mesmo e soprou a flauta como se a beijasse, e eu fiz a sua música triste erguer-se pelos ares até as estrelas dançarem.

— Vento que não tens história — respondeu ele por fim — não queiras entrar nesta história, tu que tens estado sempre de passagem: limita-te a brincar com as folhas desta praça, e com a música da minha flauta, até que alguém mude de assunto. Sim, eu vi passar a menina, e vi a noite que a chamava. Dancei à roda delas, e o silêncio mora agora onde morava o seu sorriso.

E era estranho, porque a música continuou mesmo enquanto o flautista falava; depois ergueu-se nas suas pernas altas e afastou os braços como se quisesse dançar outra vez, enquanto a sua sombra magra afagava demoradamente os ombros da mulher alada.

— Quando ela tentar sorrir — prosseguiu ele — recordará o medo das crianças que a minha flauta encantou. Mais vale que continue a dormir; mas talvez os lobos cinzentos saibam mais, se te atreveres…

E eu deixei o flautista entregue à música triste e à paixão da sua flauta encantada, deixei-o com as suas pernas altas e os seus braços afastados na praça onde a mulher estendia as suas asas grandes como velas de um navio: deixei as folhas caídas descansar outra vez e fui ao encontro dos lobos cinzentos. Encontrei-os já fora da cidade, junto a uma fraga onde balouçavam enforcados.

— Lobos, lobos, filhos da noite — soprei eu — falai-me da menina que já não pode sorrir, mas que há-de recordar o medo das crianças…

Os lobos estremeceram, e os seus vultos baços recortaram-se no cimo da fraga que um luar imenso iluminava e despia. Depois ergueram o focinho para o céu, e eu fiz os seus uivos vibrar pelos ares até as estrelas tremerem.

— Vento que não tens história e que não sabes se vais entrar nesta — responderam eles por fim — Não podes mudar o princípio de uma história que ainda não começou: limita-te a conversar com a lua, e a fazer redemoinhar as folhas mortas em torno de gente como o flautista. Sim, nós vimos a menina sair da cidade e vimos a noite que a conduzia. Dançámos à sua roda, e a nossa raiva mora agora onde morava a sua inocência.

E os lobos ergueram-se nas suas patas magras e espetaram as orelhas como se quisessem escutar todo o lamento da criação.

— Quando ela tiver esperança — prosseguiram então — recordará o desespero dos homens a quem levámos os últimos rebanhos. Mais vale que continue a dormir; mas talvez o fantasma do rei saiba mais, se te atreveres…

E eu deixei os lobos cinzentos entregues às estrelas e à sua paixão pela noite, deixei-os a guardar os sítios baços do mundo e os instantes frios do tempo, e fui ao encontro dos fantasmas. Entrei pela parte velha da cidade, varri as ruas desertas onde um dia as histórias foram vivas, corri a muralha arruinada até chegar às pedras derrubadas que tinham sido um palácio. E aí encontrei o fantasma do rei, que jogava xadrez com o fantasma de Shakespeare.

— Sombras do rei dos homens e do rei dos poetas, filhos da noite — soprei eu mais uma vez — Falai-me da menina que ainda não tem esperança, mas que pode recordar o desespero dos pastores…

Os dois fantasmas interromperam o jogo e rodaram lentamente, e eu fiz os seus vultos alargarem-se no ar até se confundirem com as nuvens.

— Vento que não tinhas história e que não sabias que história era esta — respondeu por fim o fantasma do rei, que era o mais frio — Volta depressa para trás, agora que lhe mudaste o princípio…

— Agora que puseste príncipes no princípio dela; — continuou o fantasma de Shakespeare, que era o mais triste — tonto que nem reparaste que mudaste de história, que esta história há-de ser a da menina que caminhava contra o vento, e que tu hás-de ser o vento contra quem ela caminhou…

As grandes pedras que tinham sido um palácio brilhavam ao luar à minha volta como se recordassem uma última festa, e as pequenas peças do xadrez agitavam-se como se os cavaleiros e as damas tivessem saudades de outras vidas. E eu fiz o mundo parar, fiz com que nem uma folha tremesse até que o céu nos ouvisse.

— Sim, nós vimos a menina entrar no alto castelo de Nãosentir — disse o fantasma do rei — e vimos a noite que a hospedava.

E o fantasma do rei moveu uma torre negra no seu tabuleiro de mármore.

— Dançámos à roda delas — sussurrou o fantasma de Shakespeare, sem olhar para o jogo — e o nosso passado mora agora onde morava o seu destino.

E o fantasma de Shakespeare, lentamente, moveu a mão descarnada e empurrou a dama branca para a casa vazia em frente à torre.

Os dois fantasmas, sempre sem olhar para o jogo, aproximaram-se um do outro como dois amantes que se quisessem fundir num só. E eu fiz as nuvens chover.

— Quando ela te reconhecer — murmuraram por fim os dois fantasmas, como se tivessem apenas uma voz — recordará a eterna sina dos reis, que é a solidão, e a eterna sina dos poetas, que é a loucura. Mais valera que soubesse dormir; mas talvez tu venhas a saber mais, se te atreveres…

E eu deixei os dois fantasmas entregues ao seu interminável jogo de xadrez e parti ao encontro da minha história.


Terceira Parte


Sim, eu sou o vento, e o vento nunca teve história… Mas agora não tenho tempo para conversar com a lua, para fazer dançar as folhas caídas em torno das estátuas de bronze da cidade de pedra em frente ao mar. Hoje eu não sou de mim. Já conhecem a história: ali estão os pescadores nos seus barcos, embalados pelas ondas que choram cada vez mais alto, à espera de um sinal do sol que ainda não voltou… ali está o lamento da flauta encantada de Hamelin, enquanto o flautista não desiste de dar vida ao coração de bronze da mulher de asas grandes como velas de navio… ali estão as pedras derrubadas que nunca mais serão o palácio, e a casa fechada onde a menina acolhia o sol todas as noites enquanto a história não tinha os príncipes que eu lhe quis dar. Estão prontos outra vez? Venham então comigo, venham nas asas do vento até ao alto castelo de Nãosentir, e agora é tarde para mudar de assunto porque esta afinal é a minha história e é esta a história que eu vou contar.

A menina dormia no castelo de Nãosentir, e a noite velava o seu sono não fosse ela acordar e inventar o sol. E portanto todas as portas estavam fechadas, e as torres negras não me queriam deixar passar. E eu parei junto à grande porta de bronze e mais uma vez fiz as nuvens chover.

—Dorme, meu amor —sussurrava a noite baixinho —Dorme. Não queiras ver o que se esconde na noite, não ouças as minhas histórias. Dorme para sempre como se o mar fosse um espelho de prata e os meus filhos dançassem contigo a primeira música do mundo.

—A menina dos fósforos por quem a andorinha se enamorou… — disse a menina sem acordar.

—Pronto — disse-lhe a noite — mas a menina dos fósforos já adormeceu, e a andorinha voou para uma outra história. Dorme.

— A praça dos sonhos interditos, onde balançam enforcados — soluçou a menina sem acordar — e os lobos que tinham fome e as asas grandes que eram as únicas amigas do poeta…

—Já não há lobos, meu amor, e os poetas foram-se embora — respondia a noite — agora podes dormir para sempre como os amantes que falaram a uma só voz. Dorme.

E a noite beijou as mãos da menina adormecida e sentiu nelas o sangue dos príncipes verdadeiros. Porque a noite não a queria perder.

— Já não há poetas, e já não há histórias — murmurava a noite como se cantasse baixinho — já não há ninguém para acordar o sol e libertar a lua, e ninguém para mudar de assunto. Dorme até que a noite se acabe como se acabaram os príncipes verdadeiros, dorme para que ninguém volte a fazer as nuvens chover ou a abalar as estrelas com uma flauta encantada. Finalmente chegaste a Nãosentir: fica comigo até ao fim do mundo.

Cada palavra da noite empurrava a menina para um sono mais fundo, onde todas as histórias já tinham chegado ao fim. E eu queria forçar as pedras negras do castelo, soprar até derrubar os estandartes orgulhosos e arrancar pela raiz as árvores que cresciam da terra desde a fundação das coisas. É verdade que nada podia contra Nãosentir. Mas foi então que o sol me chamou.

O sol ficara adormecido na casa fechada quando a menina saiu. Não era capaz de acordar sozinho, porque desde sempre acordara pelos olhos dela, quando o mar se abria em cada manhã que era a primeira. E o sol gostava de dormir.

Eu precisava do sol para derrubar o alto castelo. Mas como o poderia acordar? Se eu tivesse braços para lhe tocar ou olhos para o fitar, mas era apenas o vento sem história e sem tempo para perder. E então lembrei-me de outras histórias.

Há apenas uma condição —dissera alguém uma vez — não olhes para mim. Hei-de estar contigo todas as noites, hei-de-te amar até ao fim do mundo. Mas não olhes para mim, não queiras ver senão o que sentires quando as tuas mãos me beijarem. Se trouxeres a luz, trarás com ela a solidão que havia antes de ti. Se me iluminares apenas darás vida às minhas sombras. Se levantares a lâmpada de azeite, a gota ardente deixará no meu rosto a marca eterna de ter sido teu. Não olhes para mim enquanto o amor for esta história.

Bela — dissera alguém uma vez — Não posso esperar que gostes de mim. Mas também não posso esperar por mais ninguém. Todas as noites virei ter contigo e te direi as palavras sem esperança: "casa comigo e liberta-me deste sonho de estar vivo". E todas as noites me olharás e me responderás as palavras do desespero: "Monstro de coração tão simples, hoje não quero casar contigo. Porque então teria de te olhar, e teria de saber a tua história. Mais vale que continuemos presos e que não digas mais nada enquanto esperar for esta história".

Sonhei-te o labirinto — dissera alguém uma vez — e o anjo alado que dele me liberta. Sonhei-te a espada e a lei. Sonhei-te árctico navio, e eu a passagem do noroeste. Sonhei-te lago escuro da montanha, e eu a bruma que o precede. Sonhei-te alto castelo, e eu o canto rude dos seus homens de armas. Sonhei-te o fogo e o mar, sonhei-te a mão que desenhasse em mim a aurora. Não me deixes acordar enquanto o frio for esta história.

Então compreendi que só a noite era capaz de amor eterno. E quis fugir de Nãosentir enquanto o meu coração se partia. Mas nesse momento a noite falou comigo.

— Vento que chegaste a Nãosentir - disse a noite - e que vieste buscar a menina para que ela volte a ser a tua história: olha bem para mim, e vê agora as coisas de que sou feita. Porque é aqui que as histórias todas têm de começar. Este é o meu castelo, e eu sou a noite do verdadeiro princípio. E nenhuma menina acordaria o Sol se não tivéssemos chegado aqui, e se não me disseres agora as palavras feitas de sangue.

- Noite - disse-lhe eu - Agora sei quem és, e sei também que esta afinal é a nossa história. Eu sou o vento inconstante, mas sou também o príncipe verdadeiro. E sou a menina que caminhava contra o vento, e a lua que era afinal o sorriso dela. São estranhas as pedras de Nãosentir, e estranhos são os teus filhos baços. Mas as palavras que fomos fazendo são afinal os ossos do mundo. E as lágrimas são coisas de fazer andar. Não voltarei a estar só de passagem, e assim não me prenderei mais a sítio nenhum. Tens razão. Já não há poetas, e as histórias foram-se embora. Dos mundos em que quis viver restam as praças feitas de folhas mortas, os lobos que guardam o amor e o jogo do xadrez interminável. E é de Nãosentir que são feitas as coisas que sinto mais.

- Ela é a menina de todas as histórias - respondeu a noite - mas sou eu quem sabe estender os braços. E é por mim que a encontrarás. Diz-me agora, vento feito de coisas tão largas, para onde irá ela se eu ta entregar?

- Ela é a menina feita das cores de que a noite nos veste - respondi eu - e por isso nem na minha história haveria uma menina tão linda. Se ma entregares ela caminhará neste mundo feito de histórias, e é contra o vento que caminham os que chegam a todos os sítios. O sol há-de continuar a acordar, para que as crianças saibam que alguém se esconde atrás das nuvens maiores. Mas não é disso que se trata.

- Não - disse a noite devagar - Não é disso que se trata.

E assim a história pôde começar.



FIM

17.5.04

The gap in the curtain

Hoje estou feliz. Uma amiga que esteve em Londres trouxe-me um dos livros que sempre quis ler, "The gap in the curtain", de John Buchan. Tenho-o à minha frente. Não o larguei durante toda a tarde. Vou jantar num sítio tranquilo para o abrir devagar. Não me telefonem, não me digam nada. Eu estou bem (ainda me faltarão, depois deste, ler dezassete romances dele que ainda não conheço...).

A história? Vou transcrever a contra-capa: "... a supernatural story full of suspense. Guests at a country house party are enabled by an eccentric scientist to see a glimpse of an issue of The Times dated a year ahead of time."

Parece bom. Mas a história não interessa nada. Vou explicar. O John Buchan é um homem que nasceu na Escócia em 1875 e morreu em 1940. Escreveu perto de trinta livros, mas escrevia apenas nas horas vagas. Na realidade fez parte do Intelligence Service britânico na fase (digamos, a partir de 1900) em que um grupo de Britânicos lançou o grande ataque para a conquista do mundo (hoje esse grupo é essencialmente americano) e se defrontou (ou não) com inimigos estranhos (um dos mais estranhos aquele grupo alemão que chegou ao poder em 1933...). E Buchan escreveu sempre a partir das coisas que sabia, das coisas que viu, e ficamos com a dúvida de perceber até que ponto nos quis dizer muitas coisas. Em 1901 (com vinte e seis anos) era o secretário privado de Lord Milner na África do Sul, e Milner era um dos homens que tentaram criar em África o império "do Cairo ao Cabo" que deu cabo dos sonhos de império portugueses; em 1935 foi elevado ao mais alto estatuto da nobreza, como Baron Tweedsmuir. Quando começou a Segunda Guerra era o Governador do Canadá - o Canadá para onde a Coroa inglesa iria se a Inglaterra fosse invadida, como os reis portugueses retiraram para o Brasil diante de Napoleão (aliás por sugestão inglesa também...)

"A minha palavra", diz o herói do seu romance "Os Três Reféns" (um dos poucos que anda traduzido) "tem, em certos círculos, mais peso que a de muitos primeiros-ministros". E no entanto o herói era (aparentemente?) um pacato inglês que vivia retirado no campo a pescar e a ler. E são assim todas as suas histórias. Todas elas são histórias sobre o poder verdadeiro, e o fumo lançado aos olhos da multidão. O "Grande Jogo", como dizia Kipling (sim, o autor do Livro da Selva), que era outro inglês que sabia muitas coisas.

Os heróis de Buchan trabalham na sombra a favor da paz, da "paz verdadeira". Ao contrário dos heróis americanos do pós-guerra, não trabalham, parece, exactamente para o Governo ("trust your country, not your government", como dizem os últimos americanos de tradição libertária). Não querem saber de eleições. Não ajudariam o Rumsfeld a fazer negócios no Iraque. E os seus inimigos não são os "governos estrangeiros". São grupos que trabalham para a guerra, para a discórdia, para o caos. Uns e outros na sombra, que é sempre um sítio bom para se estar. Grupos cuja existência era tão evidente para os ingleses de entre-as-guerras que até a Agatha Christie deles fala abertamente nos seus primeiros romances (o que lhe terá acontecido para que tivesse deixado de falar?).

O livro mais conhecido de John Buchan é agora o "Os trinta e nove degraus", e isto porque dele o Hitchcock fez um filme interessante (embora se percam muitas subtilezas). Mas em cada um dos que li (quatro até agora...) o que realmente interessa são pequenas alusões, pensamentos soltos, coisas pressupostas sobre os poderes que nos governam. Neste mundo e às vezes nos outros mundos à nossa volta.

E sobre o Buchan já se disse muita coisa. Já se disse, por exemplo, que quando os ingleses temiam a invasão alemã em 1940, um grupo de druidas levou ocultamente para o Canadá e confiou à sua guarda coisas sagradas que nós conhecemos como a Espada e o Graal, coisas que aguardam o regresso do Rei-que-foi-e-um-dia-será. E que a sua morte foi determinada por magos negros. Sobre essas coisas nada sei, e não creio que nos livros dele sejam faladas. Mas são sempre livros que ajudam a ter os olhos bem abertos.

A Paixão e o Milagre (II)

Tenho de corrigir uma coisa que disse ontem. Não é (só) com base nos Evangelhos que Gibson fez o filme, claro. É também (como toda a compreensão daqueles factos que os católicos fazem) a partir dos livros que integram, com eles, o chamado Novo Testamento: os Actos dos Apóstolos e as Cartas (principalmente as de S. Paulo).

O significado da morte do Cristo não foi muito claro para ninguém à volta dele, mesmo depois de o terem visto ressuscitado. Esse significado, cuja compreensão não é o resultado da inteligência mas da acção do Espírito Santo ( de cuja existência nem sequer se suspeitava), apenas se torna claro para os discípulos depois de terem ocorrido as coisas que os católicos celebram numa festa chamado Festa de Pentecostes. É só a partir daí que a história se torna uma história completamente diferente daquela que os judeus esperavam (e esperam ainda) que aconteça. Na minha opinião, uma história mais bonita, e infinitamente maior.

Podemos dizer que S. Paulo estava enganado. Podemos dizer (como esse livro que agora anda nas montras, o Da Vinci Code) que Madalena era uma data de coisas e Cristo também. Podemos dizer o que quisermos. Também podemos (e os que são católicos acho muito bem que o façam) dizer aquilo que o Gibson disse.

E podemos dizer, claro, tudo aquilo que disse o meu inestimável frei Bento, que não é muito diferente daquilo que dizem afinal quase todos os professores de teologia. O que me faz concordar com o grande, o muito grande Carl Jung: "a teologia resulta da falta de fé". E Jung não era católico.

Mujique bêbado de Deus! Adorador do Mal
em roucos sabbats nocturnos na floresta!...
Alquimista sombrio!... Anunciador da Besta!...
Nun'Álvares de alguém, cavaleiro do Graal...

Na Cruz hei-de forjar desejos de metal
e celebrar o sangue que me resta!
E do meu corpo hei-de talhar a barca em festa
que a alma morta entregue ao seu país natal...

E tu, ignoto Deus, e tu Diabo, embora
nada queira eu de vossa companhia,
mandai aos deuses que me o destino dão

que a noite me guarde e aguarde nesta hora
e que a Gaia Morte me sirva de guia
nos caminhos mortos a que os homens vão...

O Cavaleiro d'Andar

A noite do solstício de Verão do ano em que tinha dezoito anos era para mim, e para um amigo, uma noite simples de preparar exames. Estava calor. Faltavam ainda dois ou três dias para o teste, e eu estava já na fase em que não me apetecia ler e não me apetecia fazer mais nada. Na altura acreditávamos ambos que era importante a "intervenção política", e ao jantar começámos a discutir já não me lembro que ponto da situação. Notei nele, como tantas vezes notava, uma ambição mal disfarçada, casada à pressa com frases revolucionárias e declarações pomposas de princípios. E quando ele foi dormir eu fiquei acordado.

Lembro-me de ter ido à varanda da minha casa, que dava para árvores grandes, e lembro-me de procurar a lua. Pensei na conversa que tínhamos tido. Descobri que acreditava, mesmo quando não soubesse em que acreditava. E resolvi fazer uma velada de armas.

Não me dirigi a Deus, e não me dirigi ao Mundo. A noite permite que saibamos que há coisas sem nome que nos acompanham mesmo quando estamos mais sós. E invoquei tudo o que sentia ser maior do que eu. Tive pena de não ter uma espada comigo. Mas deixei a música e o silêncio e a lua e a noite e o amor serem a minha espada intranquila. E fiz um juramento de fidelidade.

Que eu não deixe nunca os olhos fecharem-se-me, mesmo que seja de medo ou de cansaço, o que é diferente de ter medo ou de estar cansado.
Que eu saiba ser fiel, mesmo quando não haja ninguém que responda e nada que mereça fidelidade.
Que eu reconheça a grandeza mesmo que nunca seja grande, a coragem mesmo que seja cobarde, a verdade mesmo que aprenda a mentir.
Que o mundo inteiro faça sentido mesmo que a minha vida seja o caos, que as coisas sejam inteiras mesmo que as minhas mãos se estilhaçem, que as asas se abram mesmo que eu seja feito de rastejar.

Eu tinha então dezoito anos e não sabia que o mundo era tão grande e que as derrotas eram tão amargas. Não sabia que a minha vida ia ser o caminho de sítio nenhum. Se nessa altura já tivesse lido os Evangelhos ter-me-ia lembrado do Pedro que por três vezes negou conhecer o seu Mestre. Mas tinha dezoito anos e nem sabia que não sabia.

Agora estou mais velho e vi tantos dos meus amigos cair, derrotados pelo sucesso ou derrotados pelo fracasso. Vi-os a deixar de acreditar. Vi alguns a rir da fidelidade e das coisas grandes que não sejam as coisas inchadas que dentro deles andam. Vi outros a ter medo de ficar, e de ser aquilo para que foram feitos ser, como se houvesse outro sítio e como se pudessem ser outra coisa. Vi muitas lágrimas, e as piores são as escondidas (as dos homens, tantas vezes). Vi almas mutiladas e rostos em que não-acreditar deixou cicatrizes fundas. E tantas vezes não tive palavras para eles, nem um gesto nem a espada que já não tinha na minha noite de invocação da noite. Procurei ficar, num mundo em que todos querem ir embora. Ficar igual a mim, igual à sombra que me acompanha. Procurei ser o mesmo, eu que cada dia me acordo diferente. Ser igual, eu que cada dia sou um pouco mais triste. E tudo para ser fiel a uma coisa que não me disse o nome.

Se eu fosse um cavaleiro era o Cavaleiro d'Andar, e não ia vencer torneio nenhum, guerra nenhuma. As espadas quebram-se nas minhas mãos assombradas. O silêncio nunca me deu voz. Era o Cavaleiro d'Andar, e talvez fosse apenas uma armadura vazia. Mas não há nada no mundo, não há nada em nenhum de tantos mundos à minha volta que me faça dizer que não acredito, que não quero, que não vou até ao fim dele.

Quando a minha filha era pequenina, pediu-me uma vez para ir a um Parque ao Domingo. Eu estava cansado e tentei dizer que não. Está lá muita gente, expliquei. E ela ficou a pensar. Pai, porque é que há muita gente nos sítios em que há muita gente? Silêncio. Deve ser porque muita gente gosta dos sítios de que muita gente gosta. Pois, deve ser. E agora eu ia dizer que quase ninguém repara que há coisas em que quase ninguém repara. Venho agora de andar por aí, pelo mundo-dos-outros que é este mundo-dos-blogs. E há muita gente que acredita que não há nada para acreditar. É fácil distingui-los, são aqueles que sabem qual é a cor de não doer, e a cor de ter os olhos abertos por dentro. E a esses chamo irmãos no meu império isolado.

Todos nós somos feitos de coisas pequenas, e todos nós somos o esboço de uma coisa maior. Se me apetecesse agora ser literário, diria aqui a frase inteira de Nietzsche, "meus irmãos, consagro e edifico em vós uma nobreza nova...". Mas hoje não me apetece falar muito. Este mundo é um lugar feito de trevas e de dor. E as trevas e a dor trazem um nome que não quero agora pronunciar. E podiam ser derrotadas. Como a sombra de Mordor, para quem sabe do que estou a falar. Qual é o contrário de milagre, maldição? Nevoeiro? Porque o que temos é tão simples e tão impossível como isto: aquilo que faz com que pudéssemos vencer as sombras se nos uníssemos é precisamente aquilo que faz com que nunca nos venhamos a unir. Os dados estão viciados desde o momento da fundação do mundo. Não haverá nunca a aliança dos solitários, a irmandade dos únicos, a fraternidade dos deserdados. E tantos somos, tantos.

Há dias uma amiga grande que já não vejo há anos telefonou-me. Tenho apenas uma ideia vaga do que seja feito dela. A última vez estava bem, ou queria fingir que sim. E agora telefonou-me a chorar, e nem soube dizer-me o que aconteceu. Não pude ainda saber dela, não pude ir ter com ela e se fosse não sei o que posso fazer. Provavelmente estar lá, escutar, aguardar. Isso eu sei fazer, guardo e aguardo, a minha divisa de quando sou esse d'Andar que tantas vezes tenho sido. Mas é preciso. Porque se a felicidade dela não é a minha felicidade, a sua dor é também uma dor minha. E a sua derrota uma derrota mais do meu império tão frágil.

Porque é que anda tanta gente por sítios em que não anda ninguém?

16.5.04

A Paixão e o Milagre

Hoje li no Público a crónica de um senhor chamado Frei Bento Domingues. Falava entusiasmado de um filme que estreou, o Milagre segundo Salomé. Há semanas atrás falava também, muito zangado, da Paixão de Cristo. Parece-me evidente que quem goste de um filme não há-de gostar do outro. Para quem não saiba, a Paixão de Cristo pretende narrar a história do significado do sofrimento de Cristo ("Vê, Mãe, como eu redimo todas as coisas!"), a partir dos textos dos Evangelhos e (o que foi menos notado) dos textos de uma mística do fim do séc. XVIII, Anna-Catarina Emmerich. O Milagre é feito a partir do livro de José Miguéis, escritor da primeira metade do séc. XX, e por ele passa a ideia de que Fátima nada tem a ver com Deus e os Homens. Isso percebe-se, porque Miguéis era ateu. Também se percebe a Paixão, porque Gibson é católico (e Anna-Catarina também). E eu percebo que haja ateus, como percebo que haja católicos. Percebe-se menos porque é que o frei Bento, gostando do que gosta, continua a ter como profissão ser frade católico. Os reformadores cansam-me. Não perceberão que o mundo é muito grande? Ou estamos apenas afinal diante de mais um malandro?

15.5.04

Ribeira Negra

(foi assim que nasceu a minha Ribeira Negra, ou a Ribeira Negra de mim. Em Outubro de 1993. Na altura era verdade. P'ra fora, gaveta!)

Da minha janela vejo o inconsciente Douro
enquanto escrevo sem saber de ti...
Não. Não é verdade. Eu não escrevo agora.
Hoje arranquei da alma as cores da noite vã
e a tela que eu sou vai-se encharcar por fim...
Não tenho as tuas mãos, as cores, o firme traço
com que a ti mesma sem saber te andas pintando,
mas da minha janela vejo o Douro
e fria a seguir ao Douro pressinto a outra margem...

Ah, quanto na outra margem há-de haver de mim,
tanto de mim este bocejo de vida me apartou...
essa alma devagarinha, alheiamente estranha,
que me murmura lá fora, da outra margem da vida,
da proibida distância que Deus de mim lhe impôs...

Da minha janela vejo o inconsciente Douro,
mas hoje não sou mais que o medo de te escrever
embrulhado em ânsia vã de ser relido...
(—Se me pudesses ler sem nada te ter escrito...)

Hoje... não sou de mim. É noite — e eu vejo o Douro,
e o que não te ia dizer transborda enfim,
eu, que já não sou o que via o Douro...(— tela branca
onde o Douro e a noite desenham assim...)

Ah, tanto eu queria que este desenho fosse carta,
mas eu já não sou eu, sou um reflexo no Douro...
E o Douro desfaz-se em mim, agora, nesta noite,
do caixote de lixo de todos os sentimentos do mundo...

Querias saber quem sou, tens a resposta agora:
— Eu só não sou eu. Sou todo o imenso resto,
o que sobra, o que me falta, o que não tenho;
o preto e branco de todas as cores,
o porto de destino de todos os barcos naufragados.

Querias saber... e como havias de saber,
tu que não foste a luz da minha alma,
que nem sabias que havia esta outra margem...
— É estranho... isto era uma carta para leres, devagarinho...

... mas a noite e o Douro da minha calma fizeram a enxurrada!
e nos socalcos do meu corpo que o Douro ronda e quer,
a dor é o lagar que me a alma esmaga em vinho
e faz da minha sombra esta ânsia de te ver
e já não sou mais que a sua voz embriagada...

— Mas o rio tem margens, e o que eu te digo também...

Do Douro nunca havemos de ver a nossa margem, e aquela brisa
que na outra margem refresca quem não somos
nunca se levanta para nós (só por não sermos
esses que não somos...)

— e como não nos é consentido que digamos
mais do que a brisa diz da incerta tempestade
se à alma pedirmos que nos se alargue em vento,
assim também nas margens desta folha
se cala, como sempre, tudo o que em mim vai
e eu não deixo sair... e já nada sinto
destas palavras que não vais receber:

— Por breves momentos nos olhámos e sorrimos
como navios que estrangeiros se saudassem
no alto mar da vida, estranhas rotas...

(Mas hoje?... hoje eu não sou de mim!...).

Não escrevo senão o que por mãos de Alguém
na minha alma sonhado se gravou. Não sei nadar.
Eu, eu que por dentro me fiz ao mar e à saudade
por fora o Douro me veste — e não sou nada
senão o olhar vazio que o Douro ao mundo dá,
e a alma que a pedra lhe empresta...

(— Dizes bem, eu sou assim — o Douro e a pedra…)

Hei-de sempre ser a ribeira negra, o sonho marítimo da pedra
que seria cais se algum barco se enamorasse do mar
e se esta chuva se perdesse nos braços fortes de marinheiros
e nas cordas enroladas como em mim vai enrolada a vida...
Nos golfos do sentir sobem em mim os sete mares,
e em cada manhã de dentro há o amor e há rosas,
e em cada noite de fora há um lobo baço
que nem soube ser lobo do mar.

O mundo desagua inteiro em mim, perfeito
e triste como a rosa-dos-ventos; mas do meu peito
só sei arrancar palavras roucas, soltas como as fragas
onde os lobos vagueiam, as fragas
que no Douro enlouqueceram o Douro,
— de que os outros (e tu também) se afastam
como de corpos por sepultar...
Queria pôr diques ao mundo
para que o mundo me não entrasse assim
e rebentar estes diques que me estreitam
mas hoje!... (logo hoje...) não sei de mim!

— Ah, não poder abrir as comportas do Douro que eu sou
e deixar correr as mágoas do rio até à foz de alguém...

E de ti, que pode dizer a ribeira negra?

Até te pertencer, sabia tranquilamente da vida
que não era um caminho para mim
— eu era a pedra onde os caminhantes se sentavam...
Agora sei que essa pedra podia ter sido,
nas tuas mãos, uma estátua de Claudel — ou, nos teus passos,
as escadas firmes de um templo ou de um altar.
Mas foste sempre o sonho da outra margem,
aquela de onde se vê a ribeira negra,
esta ribeira negra que eu sou, que sente e sonha tanto,
tudo, menos a imagem perfeita que da ribeira negra
só se tem (tiveste tu?...) da outra margem...

— Não tenho pai nem mãe nem anjo que me guarde...
Sou filho do desejo insólito da pedra
e do barro que sobrou das mãos de Deus
quando fez Adão e das Suas mãos limpou
distraidamente o barro que sobrava.

Desses, por quem nunca as árvores dançaram,
brotaram os lobos e as sombras
e a primeira lua nova e eu nasci.

—Não sei dizer mais! Não foi por mal. Eu sei
que sou o sapo em que a princesa príncipes não viu,
o porto a que nenhum barco arriba, o outro lado da Lua.
Sou o pão que puseram na mesa
quando ninguém queria pão — a solução de enigmas
que a ninguém a esfinge apresentou.
Nem sequer cheguei tarde. É assim.

— Não me estou a queixar, Amor-dos-outros...

Os barcos da minha alma encalharam em baixios
de um porto que não vem assinalado
nos mapas de Deus,
— onde a vida não tem doer
mas também as lágrimas não sabem de olhos que as digam...

Para mim não há marés, não há levante,
nem ilhas onde ir ter. Há só o mar.
Passaste por mim como por mim passou a vida,
e como a vida disseste " deve ser bom navegar..."
— mas o meu barco perdeu-se e a Lua é a minha inimiga...
mas o meu barco perdeu-se, já não sei desembarcar...

— Nunca brinquei ao bom barqueiro, mas a minha mãe
cantava uma cantiga...
"estava a bela infanta, no seu jardim assentada...")
... trago uma infanta comigo, do mar não lhe chega nada...

Hoje eu não sou de mim. — Dói tanto não doer...

Nunca saberei o segredo de sentir, ou o que é acordar.
Neste barco à deriva por dentro, à deriva no Porto por fora,
nunca hei-de visitar as Venezas que há dentro de mim,
nunca hei-de subir o rio até que as duas margens se consumam
na nascente crua de tudo.

Da minha janela vejo o inconsciente Douro...

Sobre o meu coração pesam montanhas...

Hoje - agora - estou exactamente como não gosto de estar. Na fronteira de tudo. Tenho à minha frente um espaço para escrever e só estou a escrever que tenho um espaço à minha frente. Um bocadinho menos e ia fazer outras coisas, talvez acabar de ler um livro de história ou pôr em ordem apontamentos. Um bocadinho mais e saberia escrever e quereria ouvir música e quereria entrar na noite. Mas agora sou este nem uma coisa nem outra que me cansa mais do que toda a tristeza do mundo. Pareço um post-it que perdeu a cola.

Lembrei-me agora de ter dois ou três anos e de a minha mãe perguntar se eu tinha calor com o casaco vestido. Não, disse eu. Ela tirou-me o casaco. Tens frio? Não, disse eu. Sabes a diferença, perguntou a minha irmã. Não, disse eu. E voltaram a pôr-me o casaco. E lembrei-me porque talvez seja isto o andar triste. Não é quando escrevo. É quando não sou capaz de dizer nem de andar nem de entrar na noite como quem entra num amor grande.

E lembro-me de tantas coisas. Há tantas coisas que vi e pensei e toquei e perdi desde a última vez que aqui estive a escrever, tantas coisas de que queria falar. E de repente não tenho paciência, ou talvez seja por estar a escrever à pressa e por ser muito cedo e por estar num computador que não é o meu. Ou talvez seja porque já sei o que ia dizer e se já sei não vale a pena repetir-me.

Sim, e os versos da Florbela:

Perdi a minha taça, o meu anel,
A minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de oiro e pedrarias...

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas...
Sobre o meu coração pesam montanhas...
Olho assombrada as minhas mãos vazias...



14.5.04

O homem de azul

O meu encontro com o homem de azul foi muito breve, e por isso mesmo só mais tarde percebi que podia ter sido assustador. Era uma noite de chuva intensa, e eu voltava de Braga onde tinha ido como nesse tempo ia sempre. Foi uma época em que tinha um carro mas não tinha dinheiro, e por isso no regresso (morava então no Porto) em vez de usar a auto-estrada meti-me pelas antigas estradas e acabei por me perder. Chuva, vento, sombras de árvores enormes e uma estrada alcatroada que eu corria devagar e que suspeitava não ser a que me devia levar a casa.

De repente, os faróis iluminam o vulto de alguém a pé, no meio da estrada. Um homem alto, de costas, vestido talvez com um fato-macaco ou uma capa comprida azul-escura, caminhava mesmo à minha frente, como se não se importasse com a chuva e não se importasse comigo. A estrada era suficientemente larga para o ultrapassar, mas irritou-me que andasse assim no meio da estrada sem sequer olhar para trás. Tive tempo de reparar no cabelo muito branco e muito comprido que lhe caía pelos ombros. Tive tempo de reparar que a chuva enorme não o fazia curvar. Tive tempo de ver as suas passadas largas.

Eu fumo, e nesse tempo fumava mais. De modo que levava aberto o vidro da janela do lado direito, para que a chuva me não incomodasse. E quis olhar o homem de azul quando passei por ele - suficientemente devagar para saber que não era perigoso, suficientemente perto para lhe ensinar que os automóveis são os donos das estradas. E quando olhei pelo vidro não havia ninguém.

Estava ali a estrada, e estava ali a chuva toda. Estava eu e o meu carro e as árvores e o vento e a noite de andar perdido. Mas não estava lá o homem de azul. E não podia ser. Eu tinha-o visto de muito perto, já estava a três ou quatro metros dele quando fiz o carro curvar para o passar. E não havia sítio para onde pudesse ter ido. Parei o carro e quis convencer-me que o susto o tinha atirado para a valeta ou para os campos da margem. Mas não havia margem, e o susto começava a ser uma coisa minha. A estrada naquele sítio abria-se de um lado e outro para campos baixos vazios. Era como se um de nós afinal não existisse.

Ainda hoje não sei o que era o homem de azul. Não sei se há outras noites em que a chuva ou o céu ou outra coisa qualquer o façam andar por ali, com as suas passadas largas e com o seu cabelo branco comprido. Nem sequer sei onde o encontrei, porque de facto a estrada onde eu estava não era a estrada para o Porto. E não sei se ele me chegou a ver, ou até se foi ele que fez com que eu ali fosse. Talvez devesse convencer-me que não foi nada, ou que ele saltou para qualquer lado, ou que nos bares de Braga o álcool era mais forte nessa noite. Mas acabo sempre a pensar que afinal o fantasma das muralhas não tinha sido assim tão assustador.


11.5.04

Intense fragility



Não somos feitos para ser criaturas de luz, mas para dar significado à escuridão.

(a história verdadeira)

Era um reino encantado onde reinava um Cavaleiro solitário. Esse cavaleiro trazia uma agrura, uma ferida na alma que não podia sarar, e que ganhara nas suas antigas viagens por terras distantes e mágicas, desafiando ninguém sabia que poderes, que mistérios. O Cavaleiro envelhecera.
Um dia chegou a esse reino encantado uma princesa de sonho, trazida num carro de cristal puxado por oito cisnes de prata, e os seus olhos doces brilhavam como os diamantes mais puros.
A princesa era bela, tão bela como nunca se vira, tão bela que quem a visse escutava imediatamente uma melodia vinda de lá das nunvens, tocada por invisíveis flautas ou misteriosos violinos celestes...
O Cavaleiro, até aí solitário e silencioso, desposou a princesa.

O reino encantado acorda num dia de sol, no dia das bodas do seu cavaleiro e da princesa. Tabernas de cerveja e madeira ressoam de luz, risos e alegres raparigas; ouvem-se canções e há um colorido mágico no ar.
Pela primeira vez desde há muitos anos, o povo vê o seu cavaleiro abandonar os trajes de luto e vestir-se garbosamente. O Cavaleiro está belo; o seu cavalo é o mais altivo do reino, nunca até então montado, da sua cinta pende a mágica espada das mil gerações de reis que antes dele foram.

O Cavaleiro e a princesa casam.
Nessa noite o Cavaleiro tem um estranho sonho.
A princesa, acordada junto ao seu leito, observa-o agitado, pálido, desfigurado, e recora uma murmuração mágica da sua velha aia que exorcizava os seus sonhos.
As sombras adensam-se no quarto.
O Cavaleiro, sempre adormecido, começa a falar, enquanto a princesa, de olhos cerrados, segurando nas mãos um ramo de louro e um ramo de azevinho, prossegue a sua invocação misteriosa.
Eis o que disse o Cavaleiro:

- E continua dentro de mim aquele nevoeiro mágico de que te falei, aquela mistura fria de cores indecisas, irrequietas como águas lodosas de um fosso de castelo antigo...
Voam em torno do meu centro negras e sombrias asas de aves curvas e aduncas, crocitando cânticos feiticeiros de saudades dos mil futuros que me oferecem (presente envenenado entre todos...)


E a princesa tremia, o ramo de louro e o ramo de azevinho queimando-lhe as mãos brancas depressa tingidas de um fresco sangue rubro... e o Cavaleiro voltou a falar:

- Caminho de pálida areia cruamente batida pelo sol e pelos passos de silêncio de escamudos e húmidos lagartos ávidos de dor e sede...
Cactos e espinhos fazem sombras que se projectam ansiosas no azul encrespado do céu...


Lágrimas de prata corriam do rosto da princesa quase desfalecida, que se agarrava desesperadamente à melopeia feiticeira que lhe escorria dos lábios puros.

- Nuvens amontoam-se em feéricas tonalidades azuis e roxas, enovelando-se, rugindo ameaças num silêncio de chumbo apenas cortado pelos violinos que fantasmas invisíveis acariciam com as suas mões esburacadas.
Um poço negro negro...
A tua sombra, pouco distinta, destaca-se lentamente, demoradamente, ao som dos raios vermelhos do sol... estás aí ainda, não partiste, não abandonaste as altas paredes dos castelos onde me quis refugiare onde, perdido nas alturas entre garras de abutres e e soluços de corujas negras, me perdi de mim próprio e do meu ser...


A princesa tombou desfalecida no quarto, os cabelos de oiro amarfanhados. Ao fundo do quarto partiu-se de repente a corda duma harpa mágica, a harpa do Destino, oferta de casamento de um velho feiticeiro e bardo das montanhas do Norte.

- Estás ainda lá, sorrindo...
E permaneces fechada num manto sombrio de silêncio triste, acusador, suplicante de desejo e saudade, porventura...ah rainha destronada que me tiraste o meu verde reino encantado das mil noites de luar (nunca mais houve luar na minha terra...)
Feiticeira encantada que me perdeste por tuas próprias mãos de fada, pelo cintilar brumoso dos teus olhos de água mais cristalina que a neve eterna das montanhas do meu outro ser... porque esperas então para destruir o que começaste, para dominar o monstro frio que despertaste com a tua flauta silenciosa, com a tua teia tão linda? Quando me reencontras? Quando me deixarás perder-te para para te reencontrar como nunca foste, minha querida ninfa assustada das florestas de um magro conto de Natal...


O Cavaleiro calou-se, mergulhado num escuro sono profundo. A seus pés jazia o vulto de luz da princesa, cujas lágrimas cristalizavam em preciosos diamantes, cujas gotas de sangue rolavam como espantosos rubis, cujas gotas de suor a cobriam de pérolas como nunca se tinham visto outras... O soalho era velho e gasto, de madeira. No chão poeirento apenas se via o brilho, rapidamente embaciado e empoeirado, das jóias que da princesa brotavam.
Partiu-se então a última corda da harpa, num lamento triste que ecoou pelos telhados adormecidos do reino, se repercutiu nos raios pálidos do luar que devagar se apagou.

No dia seguinte o Cavaleiro acorda, com uma memória confusa do que se passara. Estarrecido, vê o vulto tombado da princesa. Aproxima-se devagar, a medo. Quando lhe vai pegar, sente-se mergulhado num turbilhão de luz e cor. Girando, girando sempre, a sua alma debate-se prisioneira de encantamentos irreais e densos. Ao fundo, lá longe, parece-lhe ter uma visão. Uma mulher vestida de fogo e sombras, sentada num palácio de paredes de fino gelo azul e verde; à sua volta ecoam músicas e pássaros de jade e marfim. Ao seu ombro, um negro pássaro que ora se parece uma águia ora um sinistro e ensanguentado abutre.
A mulher sorri-lhe e chama-o com uma voz feita de tempestades marinhas, de algas e estrelas, de espaços infinitos e modulações impossíveis. Fora do estranho nevoeiro de cores vivas em que o Cavaleiro mergulhou, os criados que acorrem contemplam, imóveis, o corpo baço da princesa morta.

O Cavaleiro volta lentamente a si. Os criados estão ainda paralisados, numa imobilidade angustiante e vazia. Debruçando-se lentamente sobre a princesa, vê nela apenas uma mulher simples e vulgar, indigna do seu amor. A sua alma está sedenta dos abismos e das vertigens, das tempestades e da loucuras que vislumbrou no turbilhão de nevoeiro.
O Cavaleiro tem de encontrar, seja como for, essa mulher altiva que o chamou.

Ao levantar-se, disposto a partir sem demora, o Cavaleiro tropeça em qualquer coisa. Ao baixar-se, vê uma magnífica taça transbordante de verde, feita de um cristal mais puro do que a neve, mais puro do que os raios de luar, mais puro que as mil melodias das estrelas... São os dois ramos que a princesa segurara nas mãos, e que apertara tão convulsivamente na ânsia de não quebrar a acadeia mágica de invocações que despertara, que se fundiram e transformaram em taça de luz.
O Cavaleiro segura a taça nas mãos e parte.

O caminho que segue, desconhecido de todos, vai ficando cada vez mais triste, sombrio e desolado.
Devagar ouvem-se cânticos sinistros de ameaça e desolação.
O Cavaleiro avança, devagar, com a impressão de que alguém caminha a seu lado numa montada invisível.

Cai a noite, ume noite espessa e opaca, repentina e sobrenatural.
O Cavaleiro, de olhos fixos nas trevas, aguarda, imóvel. Apenas se ouve a respiração e o bafo do seu cavalo.

A sua sombra, pouco distinta, destacou-se lentamente, demoradamente, ao som dos primeiros raios rubros do sol...
E disse de repente o Cavaleiro:
- Estás aí ainda, não partiste, não abandonaste as altas paredes de gelo dos teus castelos de loucura; ah rainha destronada que me tiraste os encantos do meu verde reino de oiro, das mil noites de luar (nunca mais houve luar na minha terra!)

E tambores de agonia rufaram sinistramente, acompanhados de doidos sinos impossíveis, orquestrados por asas aduncas e esfarrapadas de negros abutres que rondaram os sete céus. Os penhascos firmaram-se, num silêncio de rocha.
Mas o Cavaleiro ergueu diante de si a mágica taça de cristal, que para ele cantou melodias de saudade e abandono, puras e cristalinas como a imagem do doce olhar puro da princesa que pela primeira vez ele recordou.
Os Dragões avançaram, um a um, acusadores:
- Traidor!
- Indigno!
- Nada és! Nem sombra nem fantasma!
- Vela esfarrapada, veleiro naufragado em mares de sangue e tormenta...
O céu acompanhou o transformar das almas, ficou roxo e rosa, nuvens tomaram a forma de altos castelos e os abutres rodopiaram enraivecidos, crocitantes e loucos...

As florestas gritaram coros de suplício, canções indizíveis de tortura...

E as flautas silenciosas da mágica taça de cristal fizeram de novo ouvir o seu silêncio mágico e triste, os lamentos dos regatos da montanha, as orações pálidas das alturas e as vertigens da inocência perdida...

A mão descarnada do Cavaleiro tremeu, mas pouco. E a taça brilhava, brilhava mais...

Então, por fim, chegou a hoste esburacada dos fantasmas de prata... Empunhavam derrotados estandartes, todos os estandartes que espadas impiedosas tinham feito conhecer o pó e o barro das planícies... E em sua volta rugiam veladas sombras cinzentas, e os seus cavalos baios empinavam e resfolegavam, impotentes, eles próprios perdidos e esmagados pelos furacões da densa calmaria cinzenta que gradualmente se abatia.

As ninfas ajudaram-no, firmes.

Trombetas evocaram espaços e estrelas distantes e perdidas, cometas solitários, nebulosas de luz, e o vazio negro negro do espaço...
O Cavaleiro avançou um passo e outro e outro.
As nuvens afastaream-se para o deixar passar, anunciado por uma sombra gigantesca de corvo agudo e magro, cujas penas negras tombavam do ar... O silêncio desfez-se em estilhaços de vidro musical e tenebroso, de espessos fumos entrelaçados nos pálidos raiso de luar roubados do seu reino...
As folhas das árvores estremeceram longamente, tilintando de dor...
Ele avançou, sem ainda se mostrar completamente, apenas anunciado, festejado por presenças rastejantes e abomináveis, fugazes coloridos negros, gaivotas sombrias pairando no alto...

Pedras tumulares ergueram-se... os mármores embranqueceram e as sombras alimentaram-se das rígidas vibrações do ar...

Do Cavaleiro só restava a silhueta imóvel, de lança quebrada sempre erguida, rodeado de mágicos torvelinhos onde mais forte que as maldições e as pragas rogadas era o vento frio, frio da saudade, que escorria da taça verde de cristal.

Imagens de companheiros e amigos há muito desaparecidos perfilaram-se em seu redor, sombria e fugitivamente...

Finalmente abrem-se as portas do castelo de gelo. Portas pesadas de carvalho druídico rangendo em correntes cobertas de húmidos limos...
A mulher esperava-o.

....................................

E o Cavaleiro falou, tremendo:
-Despertaste, sem eu saber, nevoeiros mágicos que eu julgava adormecidos, pousados nos fundos pantanosos da minha alma...
Que música tocaste tu, feiticeira, que flautas encantadas me fizeste escutar, que escuridão misteriosa lançaste sobre mim naquele dia?
Como destruiste as altas paredes dos castelos de nada em que me quis refugiar, e onde raios de luar por ti mandados desenharam loucos arabescos, as ondas feiticeiras dos teus cabelos tão negros...?
Abriste-me a alma diante de poços sem fundo, de abismos espelhados onde só vi uma caveira tresloucada que trazia o meu olhar...
E os teus pássaros negros que não me largam, aduncos e sibilinos, crocitando sinistramente para abafar os ecos dos puros sinos que eu sei que em ti se espelham e formam...
Ah feiticeira, não me percas por tuas mãos! Estilhaça já a tua pérfida bola de cristal, os teus velhos segredos e livros, os teus olhares de solidão e medo!
Ah fada fada que me tens perdido e encantado!
Porque me deixaste a balouçar perdido na noite, enforcado nos raios brancos da Lua, essa velha inimiga que eu nunca pude vencer completamente...?
Porque acordaste fantasmas que dormiam, que não me atormentavam há tanto, tanto tempo, desde que desci das alturas e vivi no pó da terra, na poeira das cidades e das sombras, dos pregões e das tabernas, dos portos de navios...
E tinhas que vir tu agora, sem saber (quem sabe?) lançar as mágicas palavras que desmoronaram as muralhas de lágrimas construídas pela minha alma ensanguentada... eu, que agora estou diante de ti, vazio, despido, abraseado nas chamas da tua morada e do teu fulvo coração...
Rainha da noite e das estrelas, devolve-me a paz morna das manhãs de sol, deixa-me reencontrar o ruído dos gestos e das companhias, não me lances de novo nos abismos das orquestras de solidão...

A mulher sorriu e o rosto dela tornou-se por um momento o rosto doce da princesa que fora sua mulher.
- Não compreendeste, desgraçado? O destino cumpriu-se, és livre e forte de novo. Ah, Rei, quanto tempo te esperámos, todo este tempo em que por fugir de ti próprio deixaste o mundo inteiro entregue ao caos e à desgraça!
Não me reconheces, e no entanto eu sou uma só!

E ao dizer isto surgiu de novo o rosto suave, banhado em lágrimas, da princesa.

O lugar do início (II): não há coincidências

Sempre que precise da noite inteira, e sempre que precise das coisas dentro de mim. Eu queria ontem falar do lugar do início que conheci em Lisboa, e passei o tempo todo a falar de um lugar que já acabou. É por isso que às vezes prefiro ficar quieto. De modo que hoje vinha aqui falar de outras coisas, para que quando desse por ela estivesse a falar do que queria, do sítio negro dos arcos de pedra e da noite inteira que neles passei.

E há mesmo outras coisas de que queria falar, porque muita coisa aconteceu desde ontem. Por razões que hei-de explicar, queria falar de vampiros e de problemas morais. Mas aconteceu agora mesmo uma coisa muito estranha. Da última vez escrevi aqui "...e um dia contei-lhe a história verdadeira, a história de tudo o que aconteceu depois. Contei-a e escrevi-a, e foi a última coisa que escrevi durante muitos, muitos anos. Penso que uma amiga (...) tenha ainda guardada uma cópia". Sim, eu tinha dezasseis anos e escrevi a minha primeira história. Há muitos anos que a não via, e julgava que estivesse guardada num sótão do Porto. E agora abri uma gaveta onde achava que tinha uns apontamentos sobre vampiros e encontrei uma capa vermelha e dentro dela as folhas originais da minha história. Escritas na máquina de escrever que o meu avô me ofereceu. Não sei o que aconteceu, não sei o que esteja então guardado no sótão do Porto.

Vou pô-la aqui, mas antes vou só dizer quatro coisas:
(1) Essa história escrevi-a numa noite (numa madrugada) aos dezasseis anos. Foi a primeira noite em que não só olhei para a noite como a noite olhou para mim. Sei que a escrevi a ouvir música, e não me lembro que música era. Talvez fosse uma coisa que agora não podia estar mais longe, Barclay James Harvest. O contexto talvez esteja explicado no post anterior, não sou capaz de perceber.
(2) Eu disse que esta era a história verdadeira, "a história de tudo o que aconteceu depois". Sim, esta história foi a história dos anos que vieram a seguir, por coisas de que já falei e por coisas de que ainda não fui capaz. Menos o fim. E eu não era assim até essa noite, não era assim. É estranho.
(3) Acho que está mal escrita. Foi assim que a escrevi e não vou mudar nada. Mas tem muitas palavras complicadas, e escrever é dizer as coisas da forma verdadeira, que é sempre uma forma simples.
(4) Não há coincidências. Mas é bom voltar assim de repente ao lugar do início.


9.5.04

O lugar do início

Na quinta feira descobri que em Lisboa há um sítio feito de regressar à casa antiquíssima. É também feito de arcos de pedra, de paredes escuras, das pessoas que há tanto tempo fizeram os arcos e das que agora passam por eles. Mas é feito de muito mais do que isso. É feito do efeito que fez em mim. E é disso que eu queria falar. O lugar do ínício.

Quando eu tinha catorze ou quinze ou dezasseis anos, o mundo todo era um sítio quieto e um sítio feito de mim. Havia outras pessoas que passavam de vez em quando, os professores e o revisor do comboio, o senhor da mercearia (chamava-se senhor Amorim) e o cigano que chegava nas manhãs enevoadas com uma bicicleta carregada de varões de guarda-chuva e com uma gaita de beiços, o amolador. Ouvi-lo, explicava a minha avó inquieta, era mau, a menos que a cozinheira quisesse mesmo afiar uma das facas de trinchar. O amolador trazia consigo a chuva e podia lembrar-se de levar consigo as crianças e os dias. Era o flautista de Hamelin exilado no Porto.

Sim, havia pessoas que passavam, e no fundo todas elas eram o revisor do comboio: os meus amigos do bairro da câmara, que entravam no comboio depois de mim, chamavam-lhe o pica e tentavam fazâ-lo cair. Mas eu portava-me bem (embora me risse daquela vez em que ele caiu mesmo, o que será feito do Albano?) e mostrava-lhe o passe com uma fotografia a preto e branco (tanta coisa no mundo era a preto e branco nessa altura). E todas as pessoas eram assim: os professores pediam os trabalhos de casa e eu tirava-os da pasta, o meu pai pedia-me que fosse buscar cigarros (os maços eram brancos com uma folha de tabaco dourada, high-life e já não existem), o senhor Amorim pedia-me dinheiro pelas coisas que a minha avó queria e eu contava bem as moedas. Todas as pessoas passavam por momentos, pediam qualquer coisa com ar de que sabiam muito bem o que estavam a fazer e iam-se embora outra vez, pelo menos até ao dia segunte.

O resto do mundo era feito de coisas enormes. Havia árvores e ao longe, da janela do quarto da minha irmã, via-se o mar (em Junho podia ver o pôr do Sol da janela). Havia a noite, e a noite no meu quarto trazia a lua consigo. Havia também, no andar de baixo, numa das salas da parte da casa onde raramente alguém ia, a biblioteca em que os livros antigos subiam até ao tecto (nunca consegui ler os que estavam em latim, sei agora que eram livros de direito e de história) e para onde eu levei o primeiro aparelho de música que me deram. E os livros escutaram comigo o Mozart e o Beethoven, o Wagner e os Pink Floyd, a Maria Callas e o Lou Reed. E os gatos e os fantasmas que havia por lá certamente os escutaram também.

Depois, por causa de uma menina de olhos verdes que usava o cabelo curto e que não sabia que os fantasmas existiam, passei a ir de comboio para a cidade mesmo quando à tarde não tinha aulas, e sem dar por ela passei a deixar passar o dia em praias feitas de rochedos grandes onde em Fevereiro não havia ninguém, nas estradas de pedra que caminhavam ao longo do Douro e dos abismos do Douro, e num cemitério feito de grandes jazigos de pedra com estátuas de anjos como nos filmes que depois vi (o cemitério fechava às cinco da tarde mas uma vez escondemo-nos para saber o que acontecia aos anjos quando o sol acabasse). Dois desses jazigos de pedra eram da minha família, e eu gostava de ver o nome dos bisavós no mármore branco, os versos feitos a uma tia que morrera há mais de cem anos e que não chegara a saber o que era ter vinte anos como eu não sabia também. Foi talvez nesses versos e nesse mármore e no portão enferrujado desse jazigo que eu soube que as coisas passam e que as coisas ficam, e que não vale a pena querer ter uma imagem completa do mundo e que a mesma dor que me vinha do fundo das margens do Douro estava em toda a parte e era inimiga do sol.

Foi nesse tempo que comecei a escrever. Escrevia para ela, para a menina dos olhos verdes, e escrevia coisas que ela entendia mesmo quando não queriam dizer nada. Contei-lhe histórias de reis antigos e de famílias arruinadas, de cavaleiros de olhos cinzentos e de princesas que dormiam num quarto onde havia uma harpa que se não podia tocar. Contei-lhe histórias de dragões e de abismos negros. Contei-lhe que o céu pode ser roxo ou vermelho e que os corvos gostam de pousar nos ombros dos anjos cinzentos. Contei-lhe a história do holendês voador e do navio fantasma, dos piratas das caraíbas e contei-lhe a história do que as minhas vidas podiam ser. Contei-lhe muita coisa que não sabia que tinha, e ela ouvia-me e dizia que queria aprender latim e grego e a linguagem dos pássaros. E que vivíamos no lugar do início e que um dia o dia e a noite seriam iguais, como nós éramos.

E um dia contei-lhe a história verdadeira, a história de tudo o que aconteceu depois. Contei-a e escrevi-a, e foi a última coisa que escrevi durante muitos, muitos anos. Penso que uma amiga, que já não vejo há tanto tempo, tenha ainda guardada uma cópia dessa história, porque numa altura de não ter sítio onde pôr as minhas coisas eu lhe pedi que guardasse no sótão uma arca onde pus os meus livros de astrologia, duas fotografias, alguns papéis e talvez uma concha cinzenta, já não me lembro. E a história verdadeira foi uma história de adivinhar. Um cavaleiro que se perdeu e que passou muitos anos em terras cinzentas em que só havia pássaros grandes e pântanos e sombras perdidas. Uma harpa que tinha sido tocada no quarto da princesa de olhos verdes. Sangue que escorria das mãos dela e lágrimas que se faziam diamantes (vi essa cena anos mais tarde no Drácula de Coppola e é talvez esse o segredo de ser para mim o filme mais bonito do mundo). Tantas coisas.

E o lugar do início deixou de ser o mundo todo.

Muitas coisas passaram entretanto e eu já tenho os olhos cansados como os tinha o cavaleiro da história verdadeira. Os pássaros grandes ainda acordam em tantas noites para me vir buscar. E eu precisava de ter um sítio em que pudesse parar, como quando queremos sentar-nos na estrada. Tinha de ser um sítio feito de noite e de música, um sítio em que não falasse com muita gente ou pelo menos não houvesse professores e revisores de comboio. O amolador até estaria em casa num sítio assim.

Na quinta feira encontrei em Lisboa o lugar do início. É preciso dizer que foi uma amiga que é bruxa e que era também nessa noite uma princesa celta que lá me levou, mas que me disse que eu podia voltar sempre que quisesse. Voltei. E hei-de lá ir sempre que precise de uma noite inteira.


4.5.04

B(l)ack to business

Lisboa outra vez, devagarinho. Não tive tempo para fazer muitas coisas além de dormir. Mas entre dormir e ir pensando, algumas decisões de Maio. Uma delas, a mais feliz, é a de manter esta Ribeira mesmo sem saber muito sobre ela. Não foi fácil escrever sempre fora de casa, e sei agora que só terei uma casa instalada no fim de Junho. Já faltou mais. Outra, ou outras, referem-se ao meu trabalho, e ao papel que o trabalho tem (e terá) na minha vida. E às coisas que se tornam impossíveis por causa dele. Mas a decisão maior não é uma decisão. É uma espécie de balanço, ou uma espécie de "visto" no fim de uma folha de rascunho cheia de contas confusas. A minha vida tem sido feita de muitas coisas, e eu durante muito tempo pensei que um dia elas iam fazer-se uma única coisa maior. Mas pensando bem acho que gosto de uma vida feita de muitas coisas. Uma manta de retalhos pode ser uma coisa bonita. E nos retalhos da minha vida, afinal, o pano de fundo tem sido sempre a companhia da noite.

Estes dias fora daqui foram dias bons principalmente porque foram dias quietos. Voltei a ver a noite com as suas estrelas. E na minha Galiza encontrei um dia todo feito de nevoeiro, que é como se fosse um dia com saudades da escuridão. Meiga Galicia.

Às vezes a noite é feita de gritos. E os que a vivem sabem que a noite é um tempo de alargar. Mas cada vez mais a noite é em mim um grito calado. Dizem que Nero, ao morrer, exclamou "que artista o mundo perde comigo!". E que outro imperador, mais tarde, disse as últimas palavras que podiam ser minhas: "que espectador o mundo perde comigo."

1.5.04

Notas de andar

Uma das minhas bisavós era filha de um cigano sevilhano. Talvez por isso viajar e vadiar são para mim as boas maneiras de estar comigo. Trouxe três livros e uma camisola para se houver frio (e há), e estou bem. Por outro lado sinto raízes fundas, mas são mais ligadas a coisas do que a pessoas.

Na primeira viagem de comboio uma rapariga deixou-me preso. Não me pareceu que muita gente a visse; dois lugares à frente (percebi mais tarde) havia outra mais feita de luzes, uma loira que ria alto, tinha um telemóvel que não se calava e acabou a beber cervejas com um jogador de andebol. E eu pude ficar preso sem ninguém dar por ela. Já a tinha visto na estação: vestia de outono, uma saia comprida cor de vinho, um lenço ao pescoço que parecia tingido de folhas secas, um saco indiano. Duas mochilas enormes como as que trazem os estrangeiros em férias. E andava como se tivesse muita pressa mas não soubesse onde estava, e as mãos e os tornozelos eram mais um gesto que outra coisa. Não sei se era muito bonita porque não sabia olhar para ela pela mesma razão que não sei olhar o sol. Mas pude ver que tinha uns olhos negros e que um bocadinho do cabelo não se deixava prender nas fitas que para ele ia inventando. E estava-me a ler com toda a atenção, sublinhando palavras com uma caneta vermelha como se tivesse exame amanhã. Estava-me a ler porque estava a ler (em francês, fi-la logo bretã ou québecoise...) o Narciso e Goldmundo, o belíssimo romance a que pedi emprestado - há muito tempo - o nome que aqui trago (e o outro também, mas essa é uma outra história). Ficou horas sentada quase ao meu lado, e fiquei horas a olhá-la como se a estivesse a ler também. Tudo nela era a força, e a doce tranquilidade da força. E tudo nela era a fragilidade, e a inconsciente alegria da fragilidade. Podia estar no dia mais feliz da vida ou podia estar no dia seguinte a ter acabado o mundo dela. Não sei, e ninguém saberia só por a olhar. Como se houvesse nela uma distância entre os gestos e o corpo, como se pensar fosse só o princípio de uma história maior. Por isso ela era parecida com um rosto ou com uma guitarra ou com uma história. E sei que nunca me hei-de esquecer da menina feita de outono.

Voltei ao Douro. É a pedra feita água escura. Se o Tejo é a Amália, o Douro são os Dead Can Dance. Mas os portuenses fazem barulho demais. E fui à procura de uma terra mais meiga.