29.4.04

Finalmente, a noite durante uns dias.
Vou interromper o trabalho (férias, como agora se diz). Talvez uma semana. Ler. Vadiar. Olhar. Parar. Ser inteiro. Com sorte só tenho que falar com os senhores que me vendem bilhetes de comboio, cafés e coisas pequenas. Pode ser que vá a Santiago da minha Galiza. Ou ao Douro que é igual a mim. Ou encontre coisas maiores do que as que tenho encontrado. Ou reveja amigos que me fazem falta. Talvez ainda exista o único sítio em que em tantas noites de beber e dançar estive completo. Talvez haja um trevo de quatro folhas, ou aprenda a beleza dos trevos simples de três. E pode ser que eu vá comigo.

Vou ter saudades do meu gatinho, mas sei que ele nem dará por nada. Só não sei se a Ribeira me fará falta. Vou aproveitar para a ver mais ao longe. E pensar em quem serão as pessoas que têm às vezes a ideia estranha de aqui chegar.

Desde que esta história começou tenho falado muito de mim e muito pouco das coisas do mundo. Em parte é porque sou mesmo assim. Mas em parte é porque o mundo me tem vindo a entristecer. Há cada vez mais coisas insuportáveis à minha volta, e talvez seja preciso falar delas. É outra coisa que tenho para pensar nestes dias de andar à toa. Há tanto tempo que evito combater, a pretexto de que não há ganhar a guerra...

Daqui a uns dias talvez esteja de volta. À volta das mesmas coisas, e com tantas coisas por ver à minha volta.

26.4.04

Nestes dias tenho andado ao mesmo tempo demasiado absorvido por um trabalho demorado e arreliante e demasiado disperso por coisas pequenas do mundo. Como acontece tantas vezes, deixei de me ver e deixei de me escutar. Imensas coisas chegam de fora e imensas coisas eu digo e faço, ou melhor, diz e faz, quase automaticamente, esta coisa estranha e familiar que é a minha sombra diurna. Cheguei ao ponto em que os outros me dizem que estou mais atento, e isso quer dizer para mim que ando de olhos vendados.

Deve ser extraordinário sentirmo-nos parte do mundo. Mas isso para mim é como ser mulher: será diferente, será igual? nunca hei-de saber. E porquê mulher, pensando bem? Todos os outros são abismos.

"tudo o que dizemos sobre nós próprios
(o que eu digo de eu)
ou é irrelevante ou é inconfidente"

João Bénard da Costa

23.4.04

Intense fragility

Pois. E a frase toda é "nothing which we are to perceive in this world equals the power of your intense fragility". Só um grande poeta sabe pôr as coisas assim, e só um grande poeta encontraria as palavras certas para dizer isto em português. Intensa fragilidade é nome de cocktail do Bairro Alto. Mas a frase é de um bocadinho do e. e. cummings que eu deixei aqui há umas noites.

Na altura não disse nada, porque estava mais a precisar de ouvir falar sobre isso do que a precisar de falar. E assim é que as coisas deviam ser sempre. Mas não há duas sem três, e portanto vou falar agora. Há pessoas (raras) que são ao mesmo tempo as mais fortes e as mais frágeis do mundo. Como se a própria força pudesse ser frágil. Como se a própria fragilidade pudesse ser invencível. Como se os deuses pudessem chorar. Posso dizer que gosto delas no mesmo sentido em que gosto de música. Não ando enamorado de todas elas, mas quando as encontro fico parado a olhar.

Hoje vi uma dessas pessoas (que está comigo todos os dias) entrar num momento muito mau de uma vida em que nada (penso eu) tem sido realmente bom. Eu não sei muito dela. Ou melhor, não sei muitas coisas dela, porque saber dela é muito fácil. É uma pessoa muito forte. Se fosse uma deusa era a Diana caçadora, ou Artémis a guerreira. E de repente a caçadora é também uma folha no vento, sem perder nem um bocadinho da força que a força dela tem. E é isto que me magoa, para além do que me magoa o nada poder fazer para que o sofrimento acabe já.

(E aqui vou interromper-me, para dizer a verdade. Estou a falar de uma mulher, e não faço ideia se isto se aplica também aos homens. Algumas mulheres a quem perguntei disseram-me que sim, e disseram às vezes que isso apenas quer dizer que este reconhecimento da intense fragility não é separável da atracção pelo outro sexo. Parece-me que isso leva água no bico, mas essa seria outra história. Mas a verdade é que ou não sei reconhecer isto nos homens, ou nós somos mesmo o que eu penso de nós: bons rapazes, normalmente demasiado brutos ou demasiado frágeis.)

É como se fosse a injustiça suprema. Já sei que todos nos magoamos. Que as trevas andam por aí. Que todos somos pequenos. Mas a grandeza triste faz em mim uma tristeza maior. Talvez porque a grandeza e a força são tão raras neste mundo feito da brutalidade mesquinha que é o contrário delas.

E há coisas nisto que não consigo entender. É como se estas pessoas usassem a própria força para se deixar magoar. E depois é complicado. Estou a lembrar-me de uma noite em que uma pessoa (sim, uma mulher que também era assim) me telefonou e pediu que a fosse buscar. Era uma história muito simples, uma paixão e uma zanga e uma desilusão e um desespero. Se fosse eu com essa história ficava triste e pronto, calava-me e pronto. Mas nessa noite ali fiquei eu a ouvi-la falar. Durante horas e horas (lembro-me de entrar na auto-estrada e andar sem ir a lugar nenhum durante a noite toda) falou com uma lucidez assombrosa e disse tudo até ao fim e no fim de dizer coisas que só alguém que nunca desvia o olhar sabe dizer era frágil e invencível como a primeira noite do mundo. E que podia eu dizer-lhe, e que podia eu ser perante as coisas terríveis?

Há uma história zen que tudo isto me faz lembrar: "o que acontece quando uma força irresistível encontra uma rocha inabalável?". Sim, o que é um anjo sem asas?

22.4.04

A Primavera não faz uma andorinha

Soube hoje que apareceu um ninho de andorinhas na parede da casa dos meus filhos. Vantagens de uma cidade pequena, e de uma cidade bonita. Aqui em Lisboa não me lembro de ver nenhuma (quanto mais ninhos), embora quando vagueio a pé durante a noite ouça galinhas em sítios impensáveis. E passam semanas sem que dê, sequer, pelo pôr-do-sol. Mas quando era miúdo sabia distinguir, pelo voo e pelo canto, pássaros de que agora já nem do nome me recordo.

E no entanto as cidades grandes têm vantagens. Não falo de compras e de consumo, a noite é diferente e vaguear é diferente também. Eu, tal como sou, prefiro viver na cidade grande. Mas numa cidade pequena, ou numa aldeia, mudaria o suficiente para não querer sair de lá (e não me digam que a vida é asfixiante; se for - e é, ou pode ser - o caminho é para o deserto australiano, as florestas do Canadá ou as praias do Brasil, não para aqui!).

Isto eu sei, mas não sei muito bem o que isto quer dizer. Adapto-me a qualquer sítio? Talvez, até agora só me senti mesmo infeliz durante a tropa (bem, a recruta, que saudades... mas isso fica para outra altura). Não me adapto a sítio nenhum? Penso que seria feliz em qualquer lado onde pudesse dormir e ter livros (mas tenho medo de bichos pequenos). E já me disseram que isso é o maior sintoma de inadaptação: estou bem, ou menos mal, desde que não tenha de interagir.

Sim, vou estando bem aqui em Lisboa, e duvido que venha alguma vez a viajar pelo mundo; mas tenho pena que não baste a Primavera para ter comigo uma andorinha.



21.4.04

O que acho mais estranho nesta experiência é não poder pôr aqui silêncio.

Hoje dei um grande passeio pelo mundo dos blogs. Não costumo fazer isso, geralmente vejo sempre os mesmos e não preciso de ver mais. Não sei porquê mas as novidades nunca me chamaram. Mas hoje devo ter entrado em dúzias deles.

Será uma primeira impressão errada? Pareceu-me que os podia ordenar mais facilmente do que aos meus livros (hesito sempre entre a ordem alfabética e a arrumação por assuntos...), como se fossem um arco-íris.

Numa ponta estão os blogs negros, que têm a forma de um grito. Às vezes o fundo é negro também, mas nem sempre. As palavras estão ali porque foi preciso pô-las lá. Se forem bons não me apetece sair de lá (tenho de fazer a ligação para dois ou três...).

Depois os roxos, feitos de tristezas pequenas que não souberam juntar-se numa tristeza só. São os das pessoas que acham que a vida está a correr mal, como se pudesse correr bem, como se corresse. São blogs de indecisão, o que sairá dali?

Vêm depois os azuis. São blogs muito importantes. Falam como quem sabe. Todos os políticos estão aqui. Estão cheios de soluções, de ideias, de novidades. Não sabemos se quem os fez estava triste ou contente. Deve estar contente, porque se estivesse triste não tinha se calhar escrito nada. São importantes, mas não gosto deles. Parecem os dicionários, não apetece levá-los para a cama embora façam falta.

Depois os verdes. São blogs contentes. São blogs feitos de pequenos recortes. "hoje o dia correu bem, estive com os meus amigos". Não sabemos nada do que se passa para lá dos recortes. Temos de voltar aos azuis para saber que andam a matar focas no Alasca, mas é nos verdes que encontramos os olhos da foca bébé. Gosto muito deles, mesmo que não tenha nada a dizer. Às vezes são pintados de negro, mas é um negro que há-de passar. Não sabia que havia tantos.

E de repente estamos nos amarelos. Também são recortes, mas são recortes esquisitos. São os blogs da ironia, que é das coisas de que eu menos gosto no mundo. Às vezes parecem-me pepinos, e eu não gosto de pepinos. Mesmo que façam rir, e às vezes fazem rir muito. São os blogs de quem pensa na raiva (porque se sente a raiva, já estamos no vermelho, que vem a seguir). São feitos de denunciar. Eu fiquei com a ideia de que denunciar era feio, mas quando era pequeno não sabia muitas coisas. Na maior parte deles denuncia-se a Igreja, e às vezes denuncia-se Deus. Fazem-me lembrar os quadros da Paula Rego, os livros do Saramago. Deus os denuncie aos comités Nobel (e pronto, a ironia é contagiosa, é por isso que não gosto dela).

E na outra ponta os blogs vermelhos, feitos de raiva. Às vezes a raiva tem razão. São sítios de olhar o mundo com olhos de quem o quer mudar. Normalmente destroem. Tudo está em saber se um dia fecharão, ou se passarão antes para o amarelo, ou para o negro. O negro também olha, mas não quer mudar.

E talvez não seja bem assim, pensando bem. Deve ser porque hoje estou num dia verde.

20.4.04

Nunca comecei um post com a sensação de ser tão difícil. Vamos ver.

Tive, na generalidade, uma adolescência tranquila depois de uma infância muito estranha. Em criança vivi sempre sozinho, e habituei-me a viver assim. Quando pude começar a sair, aproximei-me de algumas pessoas como aqueles cãezitos que abanam a cauda, e fui quase sempre bem recebido. De modo que não passei por "crises" e "revoltas". Era politicamente radical (muito) mas era um intelectual afável. O bicho estava vivo cá dentro, no entanto: coisas como o divórcio dos meus pais, a que quase não liguei, deixaram coisas por dizer, e coisas por sentir.

Aos dezasseis anos, sempre tranquilamente, arranjei uma namorada (ou ela arranjou-me para ser mais preciso). E o mundo tornou-se o lugar mais bonito do mundo, que era ela. Ao mesmo tempo terminei o secundário com boas notas, e entrei para Direito, sem ideias claras sobre o que fazer (a não ser a revolução). O meu mundo era feito de uns olhos verdes, de muitos livros, de música, de árvores. E tudo numa cidade estranha chamada Porto: uma cidade que não tem muita luz, mas tem sempre pedras escuras e um rio fechado (a Ribeira Negra) e uma chuva que nos chove por dentro e um mar que é sempre um inverno. Sem dar por ela, o meu primeiro amor transformou-se na minha primeira paixão. E o amor não sobrevive onde a paixão comanda.

Devagarinho, sempre devagarinho, muita coisa aconteceu num breve ano (o ano dos meus dezassete anos, o ano perfeito). Fui a Paris, e soube que era sempre o mesmo. Fui ao fim da noite, e soube que a noite é a mesma todos os dias. O mundo tornou-se inquieto em mim, como se as pedras quisessem gritar. Se fosse hoje era talvez mais fácil, há muitas músicas e muitos filmes (há menos livros). Mas nessa altura só talvez os Joy Division falavam do que eu queria ouvir. Ou talvez houvesse outros, não os encontrei. E não encontrei ninguém parecido comigo.

Uma tarde (eu tinha voltado de Paris) junto ao mar de Agosto que era à mesma feito de inverno, tive pela primeira vez na vida vontade de chorar, de gritar, de fugir. Começava talvez a ser um miúdo normal. Mas não tinha ninguém para mo dizer, e assustei-me, e a menina que era o meu mundo todo assustou-se também (e eu não sei se era o mundo todo ela, ainda hoje não sei). O que eu sentia era a imensa fragilidade de tudo quanto tinha, e o fim possível de todas as coisas (de mim, de nós) estava de repente à flor da pele como se fosse um destino. Dei-lhe a mão como se fosse a última vez. Falei-lhe como se fala a uma recordação esbatida. Olhei-a (e fechei os olhos para não a ver mais) como se ela tivesse já ido embora. Como se as coisas todas tivessem ido embora. E nunca gostei tanto de alguém como dela nesse dia. Pouco depois tudo isso aconteceu.

A vida continuava, por entre uns livros de direito tão aborrecidos que não chegavam a ser importantes e o dinheiro com que os pais divorciados tentam compensar culpas que não tinham. Se me perguntassem, teria dito que era feliz. Fiz novos amigos entre aquela tribo estranha que se chama a si própria "gente bem". Percorri muitas cerimónias de iniciação. Mas eu estava treinado a olhar as coisas à minha volta, e a imitar as pessoas que desde muito pequeno só via de longe e de vez em quando. E continuei a portar-me bem.

Vagamente achei que as emoções eram uma coisa complicada. E era fácil para mim andar sorrindo. Tinha tantas paixões e tantos amores fechados nos meus livros, ali mesmo à mão, que não achei que precisasse de mais um. Achei que podia viver com qualquer pessoa que tivesse um bom coração (ainda acho). Casei. Tinha vinte e dois anos, estava a um ano do fim do curso, pensava que o mundo ia sorrir para mim, porque eu tinha sorrido primeiro.

Era, e sentia-me, um "vencedor", mas um vencedor de uma suave guerra. Tinha milhares de planos. Ia fazer tudo em todos os lugares. Eu era a flor culminante de tanto esforço de tanta gente. Tinha notas muito boas e empregos prometidos. Ia ter um filho. A noite tinha sido apenas um sonho mau, e ia viver no dia eterno.

Por uma razão a que sou absolutamente estranho (e que não quero contar) tudo isso acabou numa tarde de chuva e de Outubro. Tudo isso pelo menos na parte material. Não havia empregos. Não havia ouro para colher. A noite afinal espreitava. A tropa também (e nesse tempo era mais tempo).

Umas atrás das outras as coisas não correram bem. Para encurtar esta história, recordo só uma tarde em que a minha filha pequena foi ao médico comigo (estava mesmo doente), enfiou uma bota num buraco na rua e não foi possível tirá-la (à bota, também não foi assim tão mau :) ). E pura e simplesmente não havia dinheiro para comprar outro par. Não era uma questão de não o ter ali, ou de ter de o ir pedir à minha mãe. Não havia. Quebrei. Não era esta a história que me tinham contado, e não era a história que eu queria contar. Não ia ser capaz de mais. E não fui.

Fiz todos os disparates do mundo depois disso. Achei que não devia ter nascido. Revivi a vida toda à procura de erros meus, dos outros, do destino. Culpei toda a gente, e culpei-me a mim. Entrei numa greve geral de viver. E por essa altura estava mergulhado num mundo feito de pessoas ambiciosas e importantes, um mundo feito de poder e de negociação, um mundo feito de adultos sérios. Achei o jogo imbecil e quis virar o tabuleiro. Mas não fui capaz de dizer aos meus filhos, "desculpem, afinal quero ser punk". Não fui capaz de dizer nada. Ainda hoje muito pouco digo.

Já falei há dias dessa fase, não quero voltar a ela. Falta dizer que tentei fazer batota. Começar coisas de novo como se essa primeira vida não tivesse valido. Em parte foi bom, conheci outras pessoas que me ensinaram muito e deixei de ser arrogante como era sem saber. Aprendi que o mundo é enorme, e a vida e a morte também. Aprendi que a noite tem sempre a última palavra. E com isso aprendi a ouvir as coisas caladas. Mas aprendi também que neste jogo não damos duas voltas. A primeira vida era já a valer.

O que eu sou agora é isto com mais uns anos em cima. Para muitas coisas é tarde demais. Quem me conhecer só agora, pode achar que estou bem. Quem me conhece há muitos anos acha que alguma coisa se quebrou em mim, e por delicadeza não mo diz, salvo uma ou duas grandes amigas. Sim, nas coisas materiais é a sorte que manda, não o talento ou a vontade. Somos folhas no vento.

Se tiverem visto o Daredevil (não me lembro do nome em português) lembram-se da chuva que revela por instantes o rosto dela a quem é cego para o mundo dos outros e vê os outros mundos que os outros não vêem (se não viram, vejam o filme só por causa dessa cena). Chorei ao ver isso (não é grave, eu até chorei na Fuga das Galinhas). Passo os dias à procura de um pouco dessa chuva, e é talvez por isso que estou aqui agora.

Não sei muito bem o que quero dizer com isto tudo. Não disse, mais uma vez, o que queria dizer quando comecei. Talvez que o que nos acontece não é muito importante. Importante é o que acontece aos outros à nossa volta. Não ser importante não quer dizer que não nos ouçamos com atenção. Temos muito a dizer para nós. Gritos, recriminações, zangas, tudo isso anda cá dentro e andará sempre. Não devemos fechar as portas de dentro. Já basta o mundo ser tão mau. Mas não devemos adorar-nos (no sentido religioso da palavra) nem odiar-nos. Devemos ser, talvez, o primeiro dos nossos filhos, mesmo se outros não tivermos. Amar, educar, escutar, ajudar. E dizer "agora sossega", "agora eu estou aqui", "dorme". E tentar perceber que no fim de contas quase nada tem importância, excepto o bem que podemos fazer.

E quero dizer outra coisa. No meio disso tudo encontrei uma pessoa que era, sem dúvida nenhuma, a "certa", por todos os critérios de todas as paixões do mundo. Também tinha olhos verdes. Também foi o mundo todo. Também foi feita de instantes e de acabar. Ou seja, fui feliz por algum tempo, o que me ensinou que é possível ser feliz. Ninguém mais me pode dizer "a tua vida mostra que isto é tudo uma fraude". Não é. Eu posso ser, mas a felicidade, a beleza, a verdade, existem no mundo. Eu vi-as, eu toquei-as. Não serão para mim, não tem muita importância. Ainda bem que são para alguém, se forem.

E aqui estou. Não vivo cada dia como se fosse o primeiro nem cada dia como se fosse o último. Vivi este dezanove de abril como se fosse o dezanove de abril. Em cada hora passa uma hora. Não sei o fim que isto vai ter. Ainda gostava de ver coisas, de fazer coisas, de viver coisas. Não sei se as terei. E depois acredito que isto acabará para começar uma coisa que pode ser mais bonita se eu tiver, agora, compreendido o mínimo. Não consigo (e tentei tantas vezes) imaginar um mundo tão incompleto como eu. No meio disso tenho problemas grandes, trabalho demais, tenho pouco dinheiro (tenho imenso, comparado com outros), não gosto da minha profissão. Durmo pouco, fumo. Sim, e há coisas para ver e amar e aprender e sentir e largar e perder.

E há começar todos os dias. A sério, há começar todos os dias. Mesmo no último há-de haver começar de tantas coisas.

19.4.04

Outro dia, o mesmo

Um intervalo no trabalho, para jantar. E, como sempre, passei aqui. Tenho sempre a dúvida de saber se gostava ou não de ter uma grande quantidade de comentários. Primeiro pensei que preferia que não: queria escrever o que me apetecesse, sem saber quem lê e o que parece isto escrito. Mas aí pensava que isso - o que vem a ser estas coisas - seria claro para mim. Não tem sido. Cada vez mais as coisas que deixo aqui têm outras coisas por trás. São respostas a perguntas que eu fiz, ou que alguém fez,

É muito difícil (sempre foi para mim) falar das coisas que acontecem, ou pelo menos das que aconteceram hoje. Daqui a dez anos devo ter imensas coisas a dizer sobre a altura em que experimentei fazer um blog. Assim, em cima, não faço ideia de nada.

Acho que sinto demais, e digo de menos. Escrevo aqui coisas enroscadas como se fosse um novelo que ninguèm vai desfazer. Não sei se isto está a correr bem. Mas também não sei que mais podia ter havido. Porque eu não sou uma pessoa que em vez de "se mostrar" fala de coisas inúteis. Eu sou isto que aqui tem estado: umas frases que não são minhas, umas imagens, a saudade de coisas que só vi tarde demais, às vezes um mau poema. Obsessões, sonhos, andar à volta como quando a água não desce do lavatório. Uma tendência estranha para gostar dos outros. Calar para não falar, falar para não gritar. Entrar e sair de tudo (sou eu que faço a maior parte das visitas, tenho a certeza...). Sentir sempre as coisas ao longe. Desesperar porque as coisas ficam ao longe. Querer ver com os meus próprios olhos. Querer ver com os olhos dos outros. Esperar um milagre. Não esperar as coisas mais evidentes. Não fazer ideia se estou bem ou mal. Ter sempre a sensação de que há demasiadas cores, demasiado barulho, demasiada vida. Adorar a vida. Gostar de músicas pesadas, e cantar coisas alegres. Não acreditar que cheguei a isto. Isto tudo sou eu, e acho sempre que tudo contado é pouca coisa.

Gostava que alguém me dissesse a verdade. Sobre quê? O amor, claro. "Tell me the truth about love".


Agora mesmo, pela terceira vez desde que comecei este diário, escrevi muitas coisas importantes que se perderam num pequeno gesto menos feliz. Devo ter carregado numa tecla errada, ou apanhei uma falha técnica qualquer. E coisas que nunca tinha dito voltaram a adormecer, como invocações do aprendiz de feiticeiro.

Podia tentar reescrevê-las. Recordo perfeitamente o tema (é impossível resumi-lo) e recordo até duas ou três frases mais exactas ou mais frias. Mas aprendi a não ter saudades dos amores antigos. Talvez um dia elas regressem, como quando sonhamos que já tínhamos sonhado. Talvez não fosse o momento apropriado. Talvez fosse o momento certo, e a partir de agora seja tarde demais para redimir a minha vida. Talvez um outro as esteja a escrever agora no seu quarto fechado. Talvez tu (porque é sempre para ti que eu tenho escrito) já não precises que te diga mais nada.



Ao longe o dia



Não há outro hoje que este que em mim faço,
pois eu não abandono e nunca tardo:
sob o bronze tebano guardo e aguardo.
(Ao longe, o dia escorre o seu cansaço)





somewhere i have never travelled, gladly beyond
any experience, your eyes have their silence:
in your most frail gestures are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near
nothing which we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility: whose texture
compels me with the colour of its countries,
rendering death and forever with each breathing

e.e. cummings

17.4.04

Sangue da Terra

Há tantas coisas nos livros. Lembrei-me agora, por causa de coisas que se enlaçam umas nas outras, de um livro que tem uma capa de ficção científica e que é uma história grande antes de ser outra coisa qualquer. Sangue da Terra. Já não me lembro do nome do autor. A tradução portuguesa deve ser dos anos 50 ou 60.

A história começa com um planeta que era habitado por uma espécie de galinhas com asas curtas e inteligência mesquinha. Os restos de um império galáctico em ruínas, como os bairros velhos das grandes cidades. Sujidade, crime, coisas más. No meio havia esse planeta das galinhas, e havia uma gente a quem chamavam humanos e que eram a escória da galáxia. Eram feios, porcos e maus. E havia também um rapazito, que crescera pobre no meio das galinhas. As galinhas (enfim, os filhos das galinhas, seriam frangos galácticos?) riam-se dele, "nem asas tens", "nem sabes voar". E cacarejavam contentes. E o rapazito sentia-se a escória do bairro.

Depois é uma história politicamente incorrecta, e por isso mesmo muito bonita (só que o livro nunca mais há-de ser reeditado...): o rapazito sentia a falta de muita coisa, e não sentia bem consigo próprio. E achava que era uma galinha defeituosa, com uma espécie de erro de fabrico. Não tinha asas. Não era sequer um "humano" normal, uma escória normal. Porque os outros humanos eram muito diferentes dele. Já percebeste que é o patinho feio, claro. Pois é.

O rapazito foge, e por isso viaja, e lembro-me (já me lembro tão mal) de um circo onde há monstros exibidos, havia o Roberto-de-Ferro que era uma espécie de Incrível Hulk e havia uma rapariga albina de cabelos de prata. Presos, acorrentados, exibidos. São os primeiros amigos dele. E as galinhas cacarejavam cada vez mais. O rapazito vai descobrindo coisas, já não me lembro como, descobre que os outros "humanos" eram mutantes (sim, a história pode ter uma leitura racista, tudo pode ser visto com esses olhos), descobre o que é ver um amigo morrer e descobre que era do sangue da Terra.

A Terra era uma lenda em que nenhuma galinha de bom senso acreditava. O planeta que tinha inventado as naves e as viagens nas estrelas e o império galáctico de que só havia ruínas. O planeta que tinha inventado a arte. O planeta dos Homens que não eram feios, porcos e maus. Que voavam pelo universo como galinha alguma seria capaz, e sem cacarejar ainda por cima. Claro que era uma lenda.

Depois há um fim muito triste. O rapazito apaixona-se pela menina de cabelos de prata e acaba por encontrar a Terra. E a Terra não era nada do que ele tinha sonhado. Eram os descendentes decaídos dos homens que tinham inventado a arte e a viagem e a grandeza e o império. Na noite em que ele chega ia haver uma festa: iam destruir a Vénus de Milo (ou seria a Vitória de Samotrácia?). Iam quebrá-la para que fosse uma noite inesquecível: tu estavas lá? Eu estava. Demos cabo daquilo tudo. O rapazito que tantas vezes acreditara ter a maldição de ser diferente, era mesmo diferente. De todos, de quase todos.

Sangue da Terra. Às vezes custa não saber cacarejar.


Tindersticks

Hoje foi noite de saber o que já sabia. Tindersticks no Coliseu, e ainda por cima muitas das músicas antigas, e não pode haver outras melhores. É uma música estranha, uma música parada. Como aquelas gaivotas que ficam paradas contra o vento, a planar. Tão bonito!
Fez-me bem ter ido, porque tenho andado triste e já não me apetece calar-me tanto. Mas não deixei de estar lá com um sabor estranho. E lembrei-me de uns versos antigos: un seul être vous manque, et tout est dépeuplé.

16.4.04

Um jogo de mergulhar


Conheces a história da música no Pólo Norte? Deixa-me contá-la para ti.

Sabes? Quando eu era rapazito tinha um atlas com uma capa preta. E um jogo que fazia muitas vezes era o jogo de mergulhar. Era assim, abres o atlas numa página qualquer. Saiu por exemplo a Mongólia. E na Mongólia olhas para um sítio qualquer. É um bocadinho do mapa, e é um sítio onde há-de haver alguma coisa, não é? Pode ser uma montanha. Imagina essa montanha, e começas a mergulhar. Ela está pequenina, como a vês no atlas, e isso quer dizer que estás a voar muito alto. E desces. Desces como se fizesses "zoom", sempre a direito. Como se fosses a flecha e o falcão. E tens de estar sempre a olhar a montanha. E já distingues o rio. Desce. A água. Não faz mal se for noite, a água está lá na mesma. Desce. Já vês a margem, e as pedras da margem. E esta pedra. E vês esta erva junto desta pedra. Pequenina. Quer dizer que chegaste. E pensa muito depressa, "fui a primeira pessoa a chegar aqui, sou a única pessoa do mundo que sabe que esta erva existe junto desta pedra. Mas já haveria erva antes de eu descer? Ou só havia a página do atlas? E que será dela se eu me for embora? E onde estou? Se não fosse esta erva eu não sabia onde estava."

Bem, a história da música no Pólo Norte é isto ao contrário, imagina primeiro o Pólo Norte. O gelo, o que quiseres, desce, desce. Escolhe um sítio. Já chegámos? Estás num sítio do Pólo Norte onde nunca esteve ninguém. Tudo branco, que é como quem diz tudo negro. Bom, só que agora levaste um leitor de CD e levaste por exemplo o Nick Cave. Murder Ballads, pode ser. Pronto, põe a tocar. E agora depressa vamos embora. Sobe, sobe. O Pólo Norte é outra vez aquela rodinha branca no cimo do mapa.

E ficou um sítio no Pólo Norte. Branco a perder de vista. Gelo. Noite. Ninguém outra vez. Menos o Cave, não é? Even God's little creatures... A música (essa forma do tempo, dizia Borges) e o nada à volta dela. Pois. É aqui que a história começa. Não ficou música nenhuma. Porque só há música se houver escutar, e nós viemos embora, não foi? Leste o meu último post? Os homens foram embora, e as coisas choram... Sim, mas choram em silêncio porque nós não estamos lá. O CD funciona, o laser está lá, e os sulcos no disco, e os impulsos eléctricos. E as vibrações no ar. Estão os corpos todos. Mas tu eras a alma deles. Falta a outra parte da história, a vibração do ar nos teus ouvidos, os impulsos eléctricos em ti, alguma coisa a que chamamos consciência... Sim, ...must die, ainda apanhamos as últimas palavras, bom. A música outra vez.

E agora tenta perceber ainda mais, põe isto outra vez ao contrário. Devagarinho. Tu és o Pólo Norte. E agora estás aterrada com o silêncio, embora tenhas em ti o corpo inteiro. Os sulcos estão aí, claro. E nada mais. Mas lembras-te de ter havido música. Então alguém esteve junto de ti, porque alguém teve de ir embora para se fazer silêncio. (Sim, há quem chame Deus a este Alguém que dá forma à música que é a forma do tempo que é a tua alma. E talvez seja isso.)

E agora vou direito ao assunto.

Vivemos num mundo em que as palavras andam perdidas. Não sei quem as perdeu, mas sei o que perdemos com isso. E tudo o que posso fazer é apanhar algumas para ti. Todos os dias eu ouço, ou vejo, ou leio, "ama-te a ti próprio", "perdoa-te a ti próprio". Eu sei o que sou eu próprio, e já não é fácil. Mas sei o que é o amor, e o que é o perdão? É que se pensares em paixões andas tão perdida como as palavras. Mas estas são as palavras mais difíceis. Não há outras assim. E por isso te contei a história do Pólo Norte e da noite e do falcão e da música e de deus, devagarinho. Tanta coisa. Mas repara, não se trata de fazer nada. Ou melhor, fazer, essa é a parte fácil, lembras-te? Descer, descer, subir, subir. Nem precisas do meu atlas de capa preta. Amor e perdão são aquilo que acontece quando há escutar, e ser escutado. E por isso lhes chamamos música. E não mistures isto com a paixão, e não mistures isto com o desejo. Se me apaixonar só vejo em ti a perfeição que os meus olhos inventarem. Se te amar escuto a canção de seres imperfeita. E não me venhas dizer que não há nenhuma canção em ti. Não havia, até eu te amar.

Murder ballads. Um jogo de mergulhar.

15.4.04

As coisas choram

Talvez a frase mais triste em mim seja a que uma vez encontrei num livro de história da idade média: "porque os homens vão embora, e as coisas choram". Quem a escreveu falava de um túmulo abandonado, tinha quase oitenta anos, e não deve ter dado por ela. Deixou-a ali, como eu às vezes deixo um bilhete de cinema a marcar as páginas de um livro. Lembrei-me disso porque estive a ler Bruce Chatwin, e o que ele diz sobre a afeição pelas coisas (está a falar do espírito do coleccionador) ser o resultado de em criança não ter podido haver a afeição pelas pessoas: as coisas não nos traem. Quando tinha dezanove anos escrevi na primeira página de um diário, que foi a única e que acabei por saber de cor: "sou um coleccionador de almas". E sempre reparei nos sorrisos, nos gestos, nas palavras que por um momento fixam, como se fossem uma fotografia, coisas que as pessoas não sabem que trazem consigo. Talvez essas coisas sejam a alma. Talvez essas coisas sejam a coisa que chora em mim quando vejo coisas sozinhas. Ainda tenho no bolso de um casaco dois pedacinhos de pau que apanhei numa praia da Galiza e que depois não consegui abandonar: eu já não estava no mesmo sítio e eles ficariam sozinhos. Eu sei que isto é uma loucura, e que já abandonei coisas muito maiores. Mas a verdade é que quando li essa frase no livro de história não me senti o homem a ir embora. Senti-me a coisa a ficar.

O filme da semana



always with that melancholic smile...

A música da semana

Tiny tears

You've been lying in bed for a week now
Wondering how long it'll take
You haven't spoken or looked at her in all that time
For that was the easiest line you could break
She's been going round her business as usual
Always with that melancholic smile
But you were too busy looking into your affairs
To see those tiny tears in her eyes

Chorus:
Tiny tears make up an ocean
Tiny tears make up a sea
Let them pour out, pour out all over
Don't let them pour all over me

How can you hurt someone so much you're supposed to care for
Someone you said you'd always be there for
But when that water breaks you know you're gonna cry, cry
When those tears start rolling you'll be back

Chorus

You've been thinking about the time, you've been dreading it
But now it seems that moment has arrived
She's at the edge of the bed, she gets in
But it's hard to turn the opposite way tonight

14.4.04

Tindersticks

Os Tindersticks vêm a Lisboa. Conheço mal os seus últimos álbuns. Não garanto que sejam muito bons. Mas fui vê-los há uns anos, e não hei-de esquecer essa noite. É verdade que eu estava feliz, é verdade que comigo tinha ido a pessoa certa. Mas não é por isso que essa noite foi noite de inacabar. Foi porque eles sabem mostrar a beleza absoluta da imperfeição do mundo. Era uma música do meu tamanho. Não era a alegria, nem a revolta, nem a raiva, nem o génio. Era o gesto pequeno em que os olhos se te prendem. E as coisas pequenas são às vezes tudo o que podemos ter. Tocavam coisas tristes, e coisas de desespero, mas era como se também dissessem "sossega", e como se também dissessem "eu sei". Eu quase nunca sei falar e nunca soube dizer "sossega", mas guardei-os como se guardasse uma prenda de criança.

Sexta Feira, no Coliseu.

The end (II)


Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


Sophia de Mello Breyner



The end (I)


Não há barca não há mar
não há segredo
Há só o vento a passar
há só o medo

Não há mãos para tocar
não há sorriso
Não há ninguém a escutar
e era preciso

13.4.04

Talvez um dia

Ela fazia-me lembrar o Bairro Alto, disse ele baixinho, como se se desculpasse. Ou talvez não, talvez fosse ao contrário. Talvez fosse tudo ao contrário. E um sorriso rápido passou, e pousou outra vez a mão na chávena de café vazia.

Ela olhava para baixo, como se o não estivesse a ouvir. Chegaste a conhecê-la, então.

Não vais perceber, pensou ele. Não vais perceber ou eu não vou ter tempo de te contar a história toda. Porque por mais atrás que eu vá, já a história vai a meio e já é tarde para a mudar. Tenho fome e queria sair daqui. Queria não ter de falar, não voltar ao mesmo.

Nunca a vi, já te disse. Não a cheguei a ver. Foi tudo tão rápido, pensou, meu Deus alguém me tire daqui. Não a cheguei a ver, repetiu, não sei muito sobre ela. Ou sei mas...

Então foi uma ilusão, dizia ela a sorrir. Uma ilusão à distância, nada foi real.

(Meu Deus, o Bairro Alto não é real? O Douro não era real? Eu sou real, eu? É real o quê, estar a envelhecer como se entristecesse por fora, estar triste como se envelhecesse por dentro, é real estar aqui sentado à tua frente?)

Não foi uma ilusão, disse ele, e mordeu os lábios e voltou a entornar a chávena de café. Dá-me um cigarro.

Tu sempre foste assim, dizia ela. E eu conheço-te bem. Sou até a única pessoa que te conhece bem. Tu gostas das pessoas enquanto não as conheces, porque então elas são o que tu querias que fossem. Um desenho bonito. Um desenho forte.

Aí vem o sermão, pensou ele. Como na historinha que eu escrevi, "não era essa a pergunta que devias ter feito. E nem sei se devias ter feito alguma pergunta.". É por me conhecer bem que ela não percebe nada. Só conhece o outro que eu sou.
Quero outro café. E aqueles ali não podiam falar mais baixo?

Bem, eu vou-lhe explicar.

Ouve, disse ele. E ficou calado.

Diz.

Abriu a boca como se fosse falar, e depois sorriu como se tivesse ouvido alguma coisa.

Estou a ouvir, disse ela. E tu estás a falar só para ti, como sempre fazes. Não querias um café?

No Ano Novo tive um sonho, sabes? disse ele. E era bom começar por contar uma história antes de falar. Sim, um café. Tive um sonho durante a tarde. Fiquei a dormir na meia-noite, e depois fui sair e à ultima hora não me apeteceu ir ver toda a gente. Mas só voltei a casa quando era dia, e ainda li um bocadinho. Sonhei que havia uma casa muito grande, tão grande que no meio de cada corredor passava um rio que se tinha de passar de barco. Escadas tão grandes que paravas entre dois andares para comer. Num canto havia um vagabundo, não me lembro bem. E a certa altura estava com uma rapariga, tinha a cara de uma amiga minha mas não era ela, só a cara. Não era ela. Tínhamo-nos conhecido ali. Nem nos conhecíamos. Mas havia uns tipos que eram bandidos e tinham pistolas apontadas.

Os teus sonhos são sempre estranhos, e ela sorriu. Eu só sonho que estou a cair.

Tinham pistolas, repetiu ele muito depressa. E ela estava ali há muito tempo, e vinha de um outro andar onde eu já tinha estado, onde havia cavalos. Um corredor enorme com um rio preto no meio, e cavalos pretos. Ia dar a um sítio qualquer. E de repente abriu-se um elevador, daqueles grandes todos em metal. E saíram dois homens e uma mulher. A rapariga que estava comigo teve medo, não sei como soube disto porque ela não disse nada mas achou que os das pistolas iam disparar. Estávamos sentados num sofá, com um lugar no meio vazio. E um dos homens sentou-se aí, um dos que tinham vindo. E eu olhei para eles e soube que eram... que eram deuses. Eram enormes, aí uns três metros, vestidos de preto como punks mas ao mesmo tempo com jóias feitas de osso e de prata. Como deuses bárbaros. Não tinham sequer reparado em nós, sabes? Estavam... estavam absorvidos na sua própria beleza. Uma beleza terrível. De um deles saíam coisas vivas do peito. As mãos dela eram brancas como se fossem de gelo. E muito devagarinho começaram a perceber que estava ali mais alguém. Não viram os das pistolas, viram a rapariga. Ela tinha qualquer coisa que eles queriam, e estava vestida de preto também. E eu dei-lhe a mão e levantei-a e puxei-a atrás de mim e atirei-me pelas escadas. E ela disse "tão grande, vamo-nos perder", e disse como se tivesse pena. E eu gritei "a única hipótese é perdermo-nos juntos".

E ficou aí? disse ela. Eu sempre gostei das tuas histórias. Mas o que tem a ver com a... como é que lhe chamas? Esta que não conheces.

Não lhe chamo, disse ele. Não lhe chamo. Já te disse que não a conheço, nunca a vi. E não sei se a vou ver. Mas sempre me fez lembrar o Bairro. A noite no Bairro. E é insuportável o que ela diz. É um grito, sabes? Um grito do tamanho dos deuses todos. E era ela a do sonho. Não é uma ilusão. É perdermo-nos juntos.

Talvez um dia, disse ela devagar.

12.4.04

Diamanda Galás: os mortos, nós


Não vos admireis com isto: vem a hora em que todos os que repousam nos sepulcros ouvirão a sua voz e sairão. (Evangelho de João, 5:28)

Este Sábado passei-o com Diamanda Galás, e foi um Sábado como nunca tinha tido. Defixiones. As ordens dos mortos aos que ainda se crêem vivos. A última - e a maior - obra da maior de todas as vozes. Com ela passei o Sábado de Trevas, e não sei se a cheguei a ouvir. Diamanda não se ouve. Se tens ossos e sangue e carne eles ouvi-la-ão por ti, onde quer que a tua cabeça ande. E percebes que neste mundo a morte tem de ter um rosto e um nome, e que a insuportável presença da morte nos diz que isto que em nós chamamos vida não é a Vida.
Este Sábado passei-o com Diamanda Galás, e há muito tempo que não sentia os olhos tão abertos. A morte prende os que não a querem enfrentar.



Meditação para o tempo das trevas



Na Sexta Feira à nona hora tudo acabou. Consummatum est. A cruz ergueu-se no coração do mundo. Sobre os mortos estende-se agora mais um morto, sobre o sangue derramou-se sangue outra vez. Um homem chamou pelo seu Deus e como sempre os anjos não desceram a libertá-lo. Porque me abandonaste? Chegámos ao fim da história, a mesma história terrível que se conta desde o momento da fundação do mundo. Morte. The end. Nada.

E agora? Agora, se quiseres e só enquanto quiseres, a proposta mais espantosa que alguma vez foi feita, e não interessa quem a fez, a proposta de continuar a história e de ver neste fim o mais alto princípio. E aprendes que tudo, mas tudo mesmo no mundo é um princípio que não sabes como vai ser. É um absurdo? É sim. O que te propõem é fazer do absurdo a tua crença, do incompreensível a tua certeza, do invisível os teus olhos.

Mistério, claro. Diz o João Bénard da Costa: Os mistérios só são mistérios porque ninguém os percebe e porque é estulto aquele que os tenta perceber. Cristo na Cruz, para qualquer cristão, é um mistério. Mas Cristo ressuscitado também. E, na esfera do mistério, não cabe o maior nem o menor. Quando não percebo, não posso perceber o tamanho do que não percebo. Se abro a porta para uma escuridão total, nunca poderei saber se essa escuridão é imensa, ou atravessável em sete passos. A não ser que me enfie nela, o que não posso fazer, pois que não tenho sustentação possível.

Não temos sustentação possível, não. Mas não é a morte sempre insustentável? Então a escolha abre-se diante de ti como o abismo. E a escolha está junto de ti, mesmo que feches os olhos. Vou-vos dizer um mistério, diz S. Paulo: nenhum de nós morrerá, seremos transformados. A morte foi submergida na vitória. Ó morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?

Não sei se esta história é verdadeira. Não vi, não toquei, não senti, não morri ainda. Mas sei que esta história faz do mundo uma história sem princípio nem fim. A morte é tudo o que há no mundo. Mas uma parte de mim não é daqui, não é do mundo. E se eu, que sou feito de erro e mentira e morte e trevas, posso ver isto, como será o esplendor da verdade?

9.4.04

Eu, Deus e Memnoch o Demónio (I)
(só um cheirinho, que hoje não dá para mais)


Cinco coisas antes do resto

1. Tenho andado triste como a noite. Pela primeira vez só consegui escrever quando pus o fundo do écran a preto (Lá estou eu com as cores). E não vou sequer tentar dar a volta ao texto e transformar isto em coisas bonitas.

2. Há um livro chamado Memnoch o Demónio, de Anne Rice. Se o não leste, lê o que a Gotika escreveu no blog dela, aqui. É por causa do que a Gotika disse do Memnoch, e do que o que o Memnoch disse da Gotika, que estou aqui a dizer estas coisas.

3. Não interessa o que penso disto tudo, ou seja, o facto de eu acreditar em Deus, nas teorias da Anne Rice, ou até na teoria dos ovos azuis é absolutamente irrelevante como argumento (conhecem a teoria dos ovos? nos anos sessenta na América havia um iluminado que escrevia uns livros terríveis: nós na realidade somos ovos azuis com antenas, o resto é alucinação nossa. E de facto, conseguem provar que isto está errado?). Mas, só para perceber desde já: eu acho que Deus nos faz uma proposta, e fá-la por meio do seu filho o Cristo. A todos, não só aos católicos. Acho que os católicos (na grande maioria) não perceberam isto. Acho que os padres católicos (na sua maioria) não perceberam de todo, ou fingem que não perceberam. Acho que muitos que desconfiam da Igreja Católica (como se diz no livro Memnoch, muitos dos que já não estão na fase de ignorar Deus, mas na fase de o odiar) sentem que tem de haver uma proposta, para que o mundo não seja um manicómio. Uma proposta séria, mesmo que fosse uma proposta difícil. E penso que Deus gosta muito dessas pessoas. Embora na realidade lhes faça uma proposta, esteja à espera de que a aceitem e saiba que, se a aceitarem, deixarão de ter razões para o odiar. Ou seja, gosta de nós mas não nos quer assim.

4. Quando se fala de Deus do ponto de vista católico toda a gente acha que já sabe o suficiente. Falam de avós, de mães, de padres, de catequeses. Às vezes foram até ler a Bíblia. Poucas vezes leram mais coisas (também é verdade que encontrar bons livros católicos é mais difícil que encontrar uma agulha num palheiro). E depois começa a confusão. Se começarmos a ler descobrimos coisas espantosas. Se começarmos a pensar no que lemos com o coração e não só com a cabeça (afinal é isso que fazemos quando nos apaixonamos) acontecem coisas mais espantosas ainda. Mas nós queremos o milagrezinho. Queremos a prova definitiva, com manual de instruções cheio de bonecos. No tal livro "Memnoch" aparece uma doida, que é apresentada como "santa", que vivia à espera do tal milagrezinho e que, ainda por cima, o recebe no fim. A Anne Rice pode ter andado na catequese, mas não faz a menor ideia do que é ser santo. É compreensível: o diabo não pode perceber o Bem, senão não era o diabo. Mas isto é uma longa história. O que eu quero dizer é que, a partir deste texto, vou dizer-vos o que é que os católicos na realidade dizem que são as regras do jogo. Isto vai ser aos bocadinhos, conforme puder e tiver tempo e for sabendo. E o que eu possa dizer não são coisas como "Deus existe porque sim", ou "sou tão esperto que descobri a verdade". Posso dizer coisas que li, e coisas muito sérias que vi, em mim e nos outros. Isto no entanto não é também um milagrezinho nem um livro de receitas. O que dizem os Evangelhos que Jesus Cristo dizia quando lhe perguntavam o que era aquilo tudo? Não se punha com grandes tretas filosóficas. Dizia "vem comigo e vê". Alguém foi?

5. Para pôr as coisas de uma forma que possa ser compreendida por todos, eu não sou católico. Ainda não, pelo menos. Não aceitei as regras do jogo. Mas isso não quer dizer que fique calado quando me dizem que há batota. E é por dizer que há batota que estou zangado com o Memnoch (o do livro e o verdadeiro). Prefiro um satanista honesto que diz que Satanás é forte e que já ganhou a guerra, e prefere estar do lado dos vencedores. Aliás, a primeira afirmação é verdadeira e a segunda é quase. Para dizer a verdade, também estou zangado com o que aconteceu à volta do filme "The Passion". Há uns dias jantei num restaurante muito "espiritual", desses alternativos, e uma mulher na mesa ao lado dizia, sem ter visto o filme, claro, "não deviam deixar os católicos falar de Jesus Cristo". Ok, então eu posso falar.

E eu no meio disto?

Fui educado por uma mãe católica, e fui baptizado em criança. Em adolescente andei cá e lá, como tantos. Mais para lá do que para cá, talvez. Aos vinte anos converti-me docemente, e tive fé durante algum tempo. Depois perdi-a por completo. E há anos que vivo naquilo a que os católicos chamam "pecado mortal". Viver em pecado mortal não quer dizer que faça coisas más (embora as faça). Quer dizer que, por minha livre vontade, virei as costas a Deus para ficar sozinho no mundo, com o meu orgulho. Deus não nos bate nem nos castiga quando viramos as costas. Não precisa de escravos nem de prisioneiros. Deixa-nos ir. E eu fui. O mundo é muito grande, e tenho andado por muitos lados. Sem dar muito nas vistas e muitas vezes quase sem sair de casa. Vivi, como se costuma dizer. Em toda a parte encontrei o mesmo sofrimento. Apaixonei-me (mais do que devia). Apaixonaram-se por mim (muito menos do que era preciso). E as paixões chegaram e acabaram. Comi, bebi, fumei, dancei. Fiz coisas do arco da velha e vi coisas que não lembram ao diabo. A princípio pensava que ia ser sempre mais ou menos o mesmo. Depois aconteceu-me uma coisa invulgar, deixei de conseguir fechar os olhos. E consegui abri-los um bocadinho para mim. Percebi que aos dezasseis anos era apenas um rapazinho, e que aos vinte anos era já um idiota. Percebi que as coisas podiam ter sido diferentes, e mais bonitas. Percebi que quando somos muito pequenos não é só nos joelhos que nos magoamos. Percebi que somos sempre muito pequenos.
Sempre gostei de ler e de pensar. Procurei explicações para o mundo, e encontrei muitas. Entrei em igrejas vazias e entrei em casas de bruxas. Durante dois anos estudei astrologia e aprendi coisas assombrosas. Tive sonhos estranhos. Como o Hamlet, conversei com o meu Pai morto. Vi fantasmas e outras coisas inquietantes, de uma delas já falei aqui (a mais pequena). Estive em lugares santos, e conheci santos verdadeiros, vivos. Fugi a correr de sítios mortos onde ainda podes sentir deuses pagãos à espera de sacrifícios. Andei (ainda ando às vezes) no meio dos poderosos do mundo: conheci políticos, que foi como conhecer hienas, e milionários, que foi como conhecer ursos; conheci um imperador e um rei (ambos destronados), que foi como conhecer uma aguarela; conheci homens cujo poder se mantém na sombra, que foi uma maneira de conhecer a sombra. Vi pessoas a quebrarem-se de dor e a enlouquecer consigo próprias, e uma vez pelo menos fui eu que causei essa dor. Vi pessoas que se alimentam da dor dos outros, e às vezes foi da minha que se alimentaram.
A certa altura tudo o que eu tinha desapareceu. Como naqueles filmes em que o herói cai num alçapão quando ia prender o bandido. Desapareceu o alto conceito que tinha de mim (eu admirava-me imenso). Desapareceu a vontade de acordar, e a vontade de dormir. Afastei-me dos amigos e das pessoas de quem gostava. Fiquei doente, de corpo e principalmente de alma. Manter os olhos abertos fazia-me doer, mas continuava a não os conseguir fechar. Continuava a ver o Bem e o Mal, e tinha dado tudo para que se confundissem em nevoeiro. Mas não, havia o Bem e o Mal, nos outros e em mim também. Vivi muito tempo como se fosse um lobisomem: durante o dia trabalhava um bocado porque precisava de dinheiro (nessa altura tinha um trabalho que não me ocupava muito tempo) e logo a seguir ia a correr beber ou dormir ou andar pela noite como um morcego.
Houve uma noite em que tive que andar quinze quilómetros a pé para ir dormir a um quarto vazio onde só tinha um colchão, e era Inverno e estava a chover e tinha um tornozelo deslocado e sete escudos eram todo o dinheiro que tinha. Sabia que os dias a seguir iam ser muito piores (e foram). No meu caminho estava a ponte de D. Luiz, que é uma ponte antiga, toda em ferro, sobre o Douro, no Porto em que nessa altura vivia. E se nunca viram o Douro à noite não sabem o que é a noite a chamar-nos. E ali fiquei muito tempo, no meio da ponte e no meio da chuva, a pensar que por um instante podia fazer com que as coisas acabassem ali. Pensei em atirar-me. Pensei que não queria que se perdesse um chapéu preto que pertencia ao meu filho pequeno e que eu tinha trazido (vinha de casa dele) porque não tinha guarda-chuva. Pensei em mais três ou quatro coisas idiotas, e uma delas era a de que toda a vida tinha estado parado no meio de uma ponte. E de repente percebi que ainda tinha coisas para ver (no livro Memnoch - eu não me esqueci que é dele que quero falar - Deus manda o anjo Memnoch ao mundo não para interferir, mas para ver.). E que ver era mais importante do que ser feliz, gostar da vida, não ter uma perna magoada. Porque um dia alguém me ia perguntar o que é que tinha visto, e da resposta dependia a minha salvação.
No meio disto tudo também tive coisas boas, claro. As coisas foram sossegando, talvez um dia explique como. E aqui estou.
Este sou eu, ou antes esta tem sido a minha vida. Nada de especial, nem melhor nem pior que a dos outros. Ando por aí, faço coisas e não consigo deixar de olhar para as coisas à minha volta.

E uma coisa no fim de hoje

Hoje estamos na noite de Quinta para Sexta Feira da Paixão. Já acabou a última ceia há muito tempo. À hora a que estou a escrever isto, ou talvez um pouco mais tarde, Cristo está a ser procurado, num lugar chamado "Horto das Oliveiras", onde se tinha escondido para rezar uma última vez. Está a ser procurado por um traidor e por um grupo de soldados. Está com três amigos. A única coisa que lhes pediu (pediu-lhes tantas vezes) foi "vigiai". Em linguagem de hoje diria "Olhem. Olhem à volta. Vejam tudo o que há para ver. Não desviem o olhar e não fechem os olhos. Desconfiem se os olhos se vos fecharem. Talvez alguém queira que eles se fechem.". Quando os soldados chegarem os três amigos estarão a ressonar alto.
Uma das coisas que os católicos dizem é que o Natal e a Páscoa não são festas de comemorar. Acontecem todos os anos, como se o mundo inteiro nascesse de novo. Por isso digo "está a ser procurado". Sim, neste instante preciso. Não vai "fazer anos" que a cruz se ergueu. A cruz vai-se erguer amanhã. (querem um pormenor gótico? Vai-se erguer sobre dois túmulos tão antigos que estão esquecidos, os túmulos dos primeiros homens). A madeira vai ser cravada no coração do mundo. Sabem o que isso faz a um vampiro?
Boa Páscoa, para os bons e para os maus.

Alto Astral

Venho agora do Bairro Alto, expulso como um cão. Tinha-me esquecido do que é aquilo nas noites em que toda a gente sai. Logo na primeira rua, o caminho barrado por duas raparigas vestidas de roxo, amarelo, verde e sei lá que mais. Tentei passar por um lado. "Desejo-te sexualmente mas odeio-te", dizia uma. Entrei num bar que me pareceu vazio e com uma luz tolerável. A música era própria para a festa de casamento do pai Simpson. Mas pelo menos não havia mais ninguém. Chegaram dois bêbados que me quiseram oferecer um copo, e saber se eu era do Benfica. Lá se foram embora, e eu fui para outro sítio: quatro estagiários do "Público" ou do "Expresso", não percebi bem, acharam que se podiam sentar quase ao meu colo enquanto explicavam uns aos outros que o "chefe" tem uma qualidade, é muito "agressivo". Lembrei-me de um sítio que talvez fosse melhor, e onde nunca tinha ido. Estava fechado. Cada vez se ouvia falar mais espanhol. E gargalhadas em espanhol é mais do que me apetece aturar hoje.

8.4.04

O sítio mais frágil

Disse uma vez o Miguel Esteves Cardoso, porque antes disso o Padre António Vieira o tinha dito também, que são os olhos o sítio mais frágil do mundo: porque por eles hão-de caber em nós todas as coisas de entrar, mas deles só hão-de sair as lágrimas em que cá dentro as coisas todas se mudaram. E é por isso que dizemos desfazer em lágrimas, sem reparar sequer que não somos nós quem se desfaz, mas que nos desfazemos delas para que outras coisas se metam pelos olhos dentro e assim nos façam um pouco maiores. Até ao dia em que os olhos façam a desfeita de se desfazer outra vez.

7.4.04

A única hipótese é perdermo-nos juntos

Lembro-me de ter gritado isto num sonho que tive no dia de Ano Novo. O sonho acabou logo a seguir, mas acordei com a certeza de que se me lembrasse de alguma coisa importante sobre ele me lembraria também de muitas outras coisas.

The Burial of the Dead

April is the cruellest month, breeding
Lilacs out of the dead land, mixing
Memory and desire, stirring
Dull roots with spring rain.
Winter kept us warm, covering
Earth in forgetful snow, feeding
A little life with dried tubers.
(...)
I read, much of the night, and go south in the winter.

What are the roots that clutch, what branches grow
Out of this stony rubbish? Son of man,
You cannot say, or guess, for you know only
A heap of broken images, where the sun beats,
And the dead tree gives no shelter, the cricket no relief,
And the dry stone no sound of water. Only
There is shadow under this red rock,
(Come in under the shadow of this red rock),
And I will show you something different from either
Your shadow at morning striding behind you
Or your shadow at evening rising to meet you;
I will show you fear in a handful of dust.
(...)

I had not thought death had undone so many.
(...)


T. S. Eliot

Damn (II)

Hoje - pela primeira vez desde que tenho a Ribeira comigo - estou parecido com o que quase sempre sou. Uma espécie de maré baixa. Não é tristeza, é ver os sentimentos como se fossem coisas encontradas na areia sem me apetecer apanhá-las. Não é solidão, é sentir os outros perto demais, estando eu o dia todo num quarto em que não está ninguém. Não querer nada do que gosto (talvez música, se a pudesse ouvir aqui). É uma geral inesperança, que não é a mesma coisa que o desespero. E que nem sequer é inesperada em mim.
Há dias disseram-me, brincando, que "os escritores românticos escreviam para se deprimir; depois, os realistas para se desoprimir; os modernos para se exprimir, e os de agora para se imprimir". Não quero nada disto, e então o que faço aqui? Talvez reprimir. Ou suprimir. Ou subir isto tudo, até à nascente de todas as coisas.
Vou ver se consigo ver hoje o que me diz o meu mapa astral (há muito tempo que não sei como anda). Se houver coisas com interesse digo-as aqui. Talvez fizesse sentido pôr aqui coisas do dia a dia, mas eu nunca soube contar coisas que aconteceram, mesmo quando invento uma história. "Fui almoçar e estava uma luz terrível"?!

6.4.04

Ribeira 13

Eu vejo isto um bocadinho de fora, o que talvez queira dizer que é outra vez a mim que me ando a ver. Mas a Ribeira (fiz agora as contas) vai já no décimo terceiro dia, que é um dia bom para fazer contas, e para ajustá-las. Ou para fazer de conta que tenho coisas para contar.

Ainda não posso escrever em casa, e ainda não sei quando poderei (de facto, estou praticamente sem casa). Em casa quer dizer, também, pela noite dentro. Posso escrever, claro, noutros sítios, e às vezes em sítios em que ando até muito tarde. Mas dou por mim a escrever pela noite fora, e a noite fora não é como a noite dentro. Uma das diferenças é que não me livro de uma espécie de arrogância de que não gosto muito. A não ser que o dia tenha sido muito bom, ou muito mau.

E porque estes foram os primeiros comentários que tive, respondo a cada um. Não sei se me vai apetecer responder sempre, o que não tem nada a ver com gostar de os receber.

Sou do www.tapornumporco.blogspot.com. Vou voltar com mais tempo para te mandar umas bocas. aparece pelo tapor tb... Mefistófeles

Disse logo no princípio que isto ia ser a história verdadeira. E deve ser, porque afinal a primeira visita foi a do diabo, e as histórias verdadeiras são sempre uma história dos diabos. Mas antes nas bocas do diabo que nas bocas do mundo, que a vocês já conheço de gingeira (ou de ginginha?). Vamo-nos vendo, cá e lá.

Forjar...evoca a força de um conteúdo sólido em contraposição ao nosso mundo de aparências e isso pode assustar. LuaDeCristal

Pois é. Mas assustares-te não te assusta mais?

um homem. que conseguisse forjar o mundo. que voasse. que tivesse a chave de todas as fechaduras do mundo. de todos os males. que tivesse gestos de ar (...) João

Prefiro deixar isso a deus ou ao diabo. Forjar-me a mim mesmo já é trabalho para a vida toda.

Forjar, contra o mundo que estamos seria uma insanidade, num mundo de perfeições e julgamentos. Mas gostei, pelo menos por escrever ninguém é criticado.. ainda (...) MissLadyMystery

Tudo o que somos se faz contra o mundo em que estamos, Milady. Estar no mundo, mas não ser do mundo.

ainda não tive oportunidade de ler tudo, porque estou doente e tenho de voltar para a cama, mas como sou obcessiva e começo debaixo para cima, tal como foi escrito, já li os 6 primeiros posts. (...) sonia

Ena :) Espero que te ponhas bem muito depressa. E isto não é para que venhas ler o resto todo :)

Damn

Acontece
a toda a hora
la comtesse
foi-se embora

De resto
I will stay
não presto
já sei
O filme da semana



Take me away from all this death

A música da semana

SONG TO THE SIREN

On the floating, shipless oceans
I did all my best to smile
til your singing eyes and fingers
drew me loving into your eyes.
And you sang "Sail to me, sail to me;
Let me enfold you."
Here I am, here I am waiting to hold you.
Did I dream you dreamed about me?
Were you here when I was full sail?
Now my foolish boat is leaning, broken lovelorn on your rocks.
For you sang, "Touch me not, touch me not, come back tomorrow."
Oh my heart, oh my heart shies from the sorrow.
I'm as puzzled as a newborn child.
I'm as riddled as the tide.
Should I stand amid the breakers?
Or shall I lie with death my bride?
Hear me sing: "Swim to me, swim to me, let me enfold you."
"Here I am. Here I am, waiting to hold you."


5.4.04

O rosto alado da Vitória



Podia olhar-te e dizer que não passas de uma pedra quebrada. Mas escolho ver em ti o esboço proposto à terra por tudo o que pode ser verdade. Juventude do bronze! Foi preciso o naufrágio para que nascesses, mas não me cabe lamentar a sorte dos marinheiros. É verdade que eu podia ser um deles, porque como eles vou morrer. Não se trata porém de preservar os corpos, mas de guardar o gesto que forja a alma inacabada. E foi contigo que aprendi o rosto e a ternura imensa do rosto, e aprendi a devolver-te em cada olhar ao mesmo poema maior.

Os deuses só nos falarão face a face quando nós próprios tivermos um rosto. (John Buchan)

4.4.04

Notas para mais tarde (II)

Há uma palavra que deixou de ser usada para falar do que cada um de nós pode ser: forjar. Há cem, ou ainda há cinquenta anos, qualquer um entenderia se quisesse entender: a tarefa de cada homem é forjar uma alma. Talvez a Igreja nunca tenha gostado dela, e talvez tenha sido muito usada por gente má. Mas é uma palavra que faz falta. Forjar evoca o fogo e a noite e a espada e a mão inteira. Forjar evoca a nobreza e o gesto puro. E por tudo isso tem pouco lugar num mundo feito para coisas fofas. Eu sei que precisamos de ternura, e que é por isso que enchemos o mundo de coisas fofas. Mas são coisas falsas e breves, e não é disso que precisamos. Gostava de escrever uma história em que um homem soubesse forjar no fundo de si toda a ternura do mundo.


Todas as cores da noite escura

Não tinha reparado, até agora, como são importantes as cores nas coisas que aqui vou dizendo. Só na história da menina que não era feita de cinzento foi mesmo pelo verde que tudo começou, e começou assim porque quando a fiz foi também uma história verdadeira, e portanto era mesmo disso que eu queria falar. Mas se não tinha reparado nas cores, já sabia que o meu mundo era um mundo-de-olhar. Quando gosto de alguém não me apetece tocar-lhe, apetece-me saber ver de mais perto e poder ver o tempo todo. E o momento de tocar, se houver, é em mim só o momento de saber outra vez o que já sabia. Não sei se há isto em mais alguém.
Há pelo menos livros que são assim. No belíssimo "La carta esferica", o marinheiro Coy enamora-se de Tanger Soto (e eu enamorei-me também como nunca voltou a acontecer em livro nenhum) e durante o tempo quase todo não percebe bem o que lhe acontece, só sabe que lhe quer contar cada uma das sardas da pele, conhecê-las e nomeá-las uma a uma (pero tiene miles de ellas) para a poder conhecer inteira. E tem medo dela, porque ela primeiro olhou-o como se o não visse e depois olhou-o como se o visse por dentro e nunca teve medo nenhum (Hei-de falar mais deste livro, para que escutes o grito desta Tanger Soto na noite em que o amor e o medo e o mar foram da mesma cor assombrosa. Prometo que hei-de falar). E Borges era assim também, mas talvez porque estava a ficar cego e tinha de guardar lá dentro o mundo inteiro, e guardá-lo era olhar finalmente as coisas uma a uma.
As cores. Ontem aprendi que Leonardo da Vinci foi o primeiro a pintar as sombras a azul, em vez de o fazer a preto. E também os poetas (embora muito mais tarde) passaram a falar da noite azul em vez da noite negra. Mas acho que não é disso que se trata. Eu falo das cores porque as vejo como coisas que não estão em mim senão quando as ponho cá dentro. Sei que o mundo tem muitas cores, e sei que para tantos mundos ando cego. Mas nas coisas à minha volta, nas coisas todas dos outros, não sei ver senão todas as cores da noite escura.

2.4.04

A Madrinha, pela primeira Páscoa

Devo ao improvável encontro de dois góticos e um imperador esta coisa que lês feita de mundos roubados (e aqui roubei um espelho, e roubei uma enciclopédia). Devo-o também a um chapéu e a um leopardo, a uma noite de andar vadio e a uma palavra que não existe. Eram coisas demais para não me deixar ir por aí fora, coisas demais para não chamar outras coisas. E de qualquer modo já é tarde. Madrinha, sim, e ainda bem.
Era uma vez um imperador chamado Bonaparte, que conquistara o Egipto para conquistar o coração dos franceses, e era uma vez uma menina que escrevia para rasgar a luz. Se esta história fosse minha o imperador tinha ficado quietinho porque o Egipto estava a dormir, mas estou só a contar como tudo aconteceu. E portanto era uma vez um imperador que fez muitas coisas, e era uma vez muitas coisas que a menina escreveu.
As coisas que o imperador fez não interessam muito, menos uma delas que foi inspirar um escritor que deu vida a um leopardo que deu vida a um homem. É uma história passada no Egipto no tempo em que esse imperador por lá andou. No princípio há um soldado aprisionado que foge e tenta atravessar o deserto, sem perceber que trazia o deserto atravessado em si há muito tempo. Depois esse homem adormece num sítio que estava no meio do deserto mas que parecia uma praia junto ao mar para que ele parecesse um náufrago, e ao acordar no silêncio da noite percebe que o silêncio dessa noite vive e tem a forma de um leopardo. E podia ter sido a última noite mas não foi, foi o princípio de uma noite que lhe foi entrando por dentro (ele que só sabia da noite de fora) ao mesmo tempo que o leopardo se ia tornando o seu mundo.
Eu não sabia se a menina tinha lido essa história, e na verdade não sabia sequer que havia uma menina para a ler, e por essas e outras coisas ser lida. Li essa história porque ela estava num livro na feira da ladra e porque não estava a olhar para os livros mas para um puto que fazia lembrar um elfo perdido. Vestia de preto e de prata e andava devagar, como se se tivesse esquecido e como se o meio-dia não fosse com ele. "Olha um gótico", pensei eu. E olhei para o livro que ele não chegou a comprar e trouxe a história para casa como quem traz um gatinho com fome.
Não sabia se a menina tinha lido essa história. Mas na noite em que a li eu, uma noite que em mim foi noite de andar vadio por fora e por dentro, entrei por acaso no mundo dos outros (normalmente não me interesso pelo mundo dos outros) e no mundo dos outros estavam as coisas que ela escreveu.
E vou deixar muito por contar para que não contes muito comigo. Devo ao encontro improvável de dois góticos e um imperador esta coisa que lês feita de mundos sentidos; mas nas coisas que ela escreveu há coisas mais improváveis, e há mundos com mais sentido. Lê a Gotika, para saberes como a noite conta.

Everybody hurts

Disse no princípio que isto era uma história verdadeira, e afinal parece que não estou a contar história nenhuma. Vais ter de esperar mais um bocadinho. Já te tinha dito, gosto de contar histórias, que é a única forma de contar comigo. E também já te disse que não gosto muito de falar. Preferia ficar a ver e ouvir, que é o que sempre tenho feito; mas por mais que quisesse não conseguia ouvir a história verdadeira, e portanto tenho que ser eu a contá-la. Mesmo que seja devagarinho, como devagarinho vai tudo dentro de mim. E não digas que estás às escuras, afinal é a Ribeira Negra e o que é que esperavas, luz?!
Agora presta atenção.
Eu não sou uma criança como as outras. As outras, até, só soube delas neste dia de chuva em que o Pai me levou ao Colégio a primeira vez. E ainda não sei como são. Gritam e não estão quietas e (como é que conseguem?) portam-se como se nenhum Crescido ali estivesse. E andam ligadas umas às outras, estes começaram a esmurrar-se como se se conhecessem muito bem e aqueles conversam. Talvez tenham estado aqui ontem a ensaiar e o Pai se tenha esquecido de me trazer. Aqueles senhores ali são Padres, uma vez li que é pecado olhar para trás na missa, e eu olhei. Os sapatos é que me apertam.
Se nunca tinha visto crianças? Claro que sim, então?! Quando chego ao Doutor a sala está cheia. Não gosto. Há bébés de cara vermelha ao colo de mães sentadas que falam baixinho quando eles não estão a chorar. Há também uns do meu tamanho, e até mais crescidos. Destes gosto, fingem que eu não cheguei e fazem isso porque já não querem ser do meu tamanho. Mas os do meu tamanho não querem que eu me sente aqui ou ali ou que faça como eles ou que olhe para os carrinhos que trazem. Ah, e não sei porquê uma vez bati num que me estava a magoar e que tirou do sítio o vaso grande. Uma bofetada pequena, igual à que a Mãe dá quando não quer barulho por causa das dores de cabeça, mas foram todos ter comigo para ralhar. "Numa menina não se bate nem com uma flor. Senta-te aqui." Uma menina. Como é que ia saber? Não é nada parecida com a Mana, mas deve ser porque a Mana está no Liceu e eu tenho três anos. E foi no Doutor também que o Senhor do jornal me deu uma caneta linda porque não acreditou que eu lia o jornal porque as letras estavam ao contrário. Só não soube ler "Washington" que é uma palavra dificil, atrapalhei-me logo no W e li M mas mesmo assim ele deu-me a caneta e disse com três anos e já lê. Eu ia dizer eu ainda não leio muito mas ele pegou-me ao colo e deu-me a caneta. Onde é que o Pai a terá posto? Queria vê-la outra vez.
No Colégio já não tenho três anos claro, tenho seis e fiz anos em Março, estamos em Outubro. Tenho uma pasta com cadernos e um livro muito bonito cheio de letras. Já o li todo ontem à noite. Mas aula só tenho amanhã. Não sei como é que vou aprender a ler porque já sei, se não disser nada e a Professora descobrir? Se calhar põe-me de castigo. Eu quero portar-me bem, vou fazer tudo como fizerem as outras crianças. E pode ser que não me ponham os sapatos apertados.

1.4.04

A história da menina que não era feita de cinzento e
do rapazito que não era feito de mais nada

Era uma vez uma menina que não era feita de cinzento. De resto era uma menina como as outras: acordava de manhã e fazia coisas, e normalmente sabia muito bem o que fazia. Mas não sabia de que cores ela era feita, nem de que eram feitas as coisas que ela fazia.
A menina que não era feita de cinzento adorava andar pela praia: deixava as ondas tropeçar nos seus pés e fingia que as conchas que ia encontrando eram brinquedos perdidos pelas filhas das sereias. Adorava fazer isso, mas não fazia ideia de que quem a visse, mesmo de longe, percebia logo que o que ela fazia era feito de verde e prata... Outras vezes a menina estava muito contente (por exemplo quando comia um gelado), e nessa altura havia nela as cores do sol em Granada e da lua em Veneza (o que era visto por qualquer um, mesmo por aqueles que nunca foram a Granada ou a Veneza; qualquer um, menos por ela).
Um dia, a menina que não era feita de cinzento andava na praia quando ouviu uma voz:
— Olá! — disse a voz.
A menina que não era feita de cinzento olhou à volta mas não viu ninguém.
— Olá! — disse a voz outra vez — Porque é que não és feita de cinzento?
— Quem és tu? — perguntou a menina — Onde estás?
— Diz-me porque é que não és feita de cinzento! — insistiu a voz, como se não a tivesse ouvido.
— Que pergunta tão estúpida! Não era essa a pergunta que devias fazer. Aliás não sei se devias fazer alguma pergunta. O que é isso de cinzento? Aparece, que eu estou a falar contigo!
Mas ninguém apareceu, e a menina ficou sem resposta.
A menina que não era feita de cinzento hesitou (o que era raro nela) e nem reparou numa onda que a veio beijar, como se o mar quisesse dizer que aquilo não tinha importância nenhuma. E então viu que na areia, atrás dela, estava um barquinho todo pintado de branco, com uma risca azul e outra vermelha, muito alegres, a toda a volta. O barquinho estava virado ao contrário, e não se via nada do que estava debaixo dele.
— Já sei onde estás! — gritou a menina, e começou a correr para o barquinho — Pensavas que me assustavas? Vais-me já explicar essa história do cinzento!
Por baixo do barquinho ouviu-se um barulho, como se alguém estivesse a tentar escapar-se para o lado oposto àquele por onde a menina que não era feita de cinzento espreitava.
— Deixa-me estar! — suplicou a voz — Não te queria assustar. Agora és tu que me estás a assustar! Só queria saber porque é que há em ti tantas cores: todas, menos o cinzento!
Mas era tarde. A menina que não era feita de cinzento empurrava já o barquinho com toda a força. Estava furiosa, o que quer dizer que naquele momento era feita quase toda do sol de Granada e quase nada da lua de Veneza, e que os seus olhos (que eram sempre feitos de verde) atraíam para si todo o verde que havia à volta: o mar e as algas e os pinheiros em frente à praia foram perdendo todo o verde que tinham, como se fosse uma maré vaza, e o verde foi ficando inteiro nos olhos da menina furiosa, como se fosse uma maré alta.
Com tanta força empurrou o barquinho que ele se virou, e descobriu um rapazito magro que gatinhou rapidamente para fora. Vestia uma roupa que a menina achou esquisitíssima, sem saber muito bem porquê. Tinha um cabelo engraçado, que parecia feito de caracóis a fingir que eram cabelo liso, e uns olhos grandes, muito abertos, que não fingiam coisa nenhuma e se fixaram nos olhos feitos de verde da menina que não era feita de cinzento como se fossem os primeiros olhos do mundo.
— Porque é que fizeste uma pergunta tão estúpida? — gritava a menina — Nunca te vi aqui na praia. Esta praia é minha. Devias ter começado por perguntar...
— Os teus olhos são feitos de verde e os teus gestos são feitos de prata — interrompeu o rapazito, mas muito devagar, como se falasse consigo próprio — Dentro de ti brincam o sol de Granada e a lua de Veneza como se fossem duas borboletas num jardim de Verão. Isso eu sei, e isso eu não precisava de perguntar. Só queria saber porque é que não és feita de cinzento. Todas as pessoas que eu já vi são feitas de alguma coisa. Mas tu não és feita de alguma coisa: não és feita de cinzento...
A menina hesitou (e já era a segunda vez naquele dia).
— Nunca ninguém me disse que os meus olhos são feitos de verde — respondeu, ao fim de algum tempo, também como se falasse consigo própria— As pessoas dizem que os meus olhos são verdes, mas isso é diferente, não é? Também nunca ninguém me disse que os meus gestos são feitos de prata; dizem que eu sou bonita, mas não é a mesma coisa, pois não? ... Como é que te chamas, rapazito?
— Não sei se tenho nome — respondeu o rapazito, tentando pentear o cabelo com a mão — Nunca ninguém tinha falado comigo, nunca ninguém me chamou nome nenhum... As estrelas riem-se quando eu falo nisso, mas não respondem nada. Mas foram elas que me disseram que não és feita de cinzento.
— Os meus gestos são feitos de prata... — repetiu a menina muito baixinho — Os meus gestos são as coisas que eu faço? De onde é que tu vens?
E a menina que não era feita de cinzento nem reparou que uma onda veio até muito pertinho dos seus pés, como se o mar quisesse saber o resto daquela história.
— Venho dali — respondeu o rapazito impaciente, apontando o céu — De onde é que havia de vir?! E tu não fazes coisas; pois não sabes que são as coisas que te fazem a ti, em cada gesto?
— E tu sabes o que é o cinzento? — perguntou a menina, e agora era ela que falava como se não tivesse ouvido — E tu já viste as estrelas a rir?
— Eu estou farto de brincar com as estrelas — respondeu o rapazito — São muito simpáticas e gostam muito de mim, mas sinto a falta de qualquer coisa. E as estrelas disseram-me que procurasse uma menina que não fosse feita de cinzento, e que se tivesse juízo lhe podia pedir para brincar comigo. Eu olhei para ti e soube que eras tu a menina, porque eu vi tudo o que tu és e não és feita de cinzento. Claro que sei o que é o cinzento...
— Rapazito — disse a menina muito séria — Gosto de ti. Brincas com as estrelas e dizes coisas que nunca ninguém me disse. Já estive em Granada e não reparei no Sol, já estive em Veneza e não reparei na Lua. Não sei se era como tu dizias, mas as coisas que tu disseste fizeram em mim outras coisas. Sim, eu sou as borboletas num jardim de Verão. Mas agora que sei de que sou feita, quero aquilo de que não sou feita. Rapazito, dá-me o cinzento! Se eu sou feita de tanta coisa, se eu trago em mim tantas cores, posso-te dar em troca o que quiseres... Já sei: de que é que tu não és feito?
O rapazito, que a ouvia atentamente, ficou de repente muito triste, e uma onda veio bater-lhe com força nos pés, como se o mar o quisesse avisar de alguma coisa. Mas o rapazito não deu por nada.
— Não sei — respondeu ele, com os olhos fechados — de que é que não sou feito. Quando as estrelas me falaram de uma menina que não era feita de cinzento, eu perguntei-lhes de que é que eu não era feito. Sabes? É uma coisa de que eu nunca ouvi falar, que não vem no dicionário e que eu nunca encontrei em ninguém... as estrelas responderam: "tu és feito de cinzento, rapazito, e não és feito de mais-nada". Também gosto de ti. Diz-me, menina que és feita de tanta coisa e não és feita de cinzento, tu sabes o que será o mais-nada?
E agora, querido leitor, diz-me depressa se vais querer um final triste ou um final feliz para a nossa história. Porque senão eu não posso continuar a falar da menina que não era feita de cinzento nem do rapazito que — tal como esta história — não era feito de mais-nada...